ACÓRDÃO DO RECURSO PENAL
【刑 事 上 訴 裁 判 書】
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PROCSSO DO RECURSO Nº (上訴卷宗編號): 999/2009
【Nº do processo da 1ª Instância: CR1-06-0264-PCC】
ESPÉCIE: Recurso penal
DATA DE ACÓRDÃO: 15-12-2009.
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* RECORRENTE:
A (A)
* RECORRIDO:
TRIBUNAL “A QUO” (1ª Instância).
* OBJECTO DO RECURSO:
ACÓRDÃO CONDENATÓRIO DE 1ª INSTÂNCIA.
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S U M Á R I O 【裁判要旨】
1 - Enquanto objecto material de crime de falsificação de documentos, este consubstancia-se na própria declaração, independentemente do material em que esteja corporizada, como representação de um pensamento humano. Trata-se, pois, de um crime de perigo abstracto e formal, quando considerado o resultado final.
2 - A folha da presença, assinada pela própria arguida que tem por objectivo controlar a pontualidade e assuidade, não tem a virtude de comprovar o facto de que a assinante permanecesse, durante o certo período de tempo, nos serviços a que a mesma pertence, nem o de que a mesma se ausentasse de serviço antes da hora da saída regularmente indicada.
3 - A mesma folha de presença, quando assinada pela própria arguida, comprova que, no momento da assinatura, ela estava no local (de serviço) onde se encontra colocado o livro de ponto para os respectivos efeitos.
4 - Assim, não pratica o crime de falsificação de documento, a arguida que, pela sua mão, deliberada, livre e conscientemente, assinou a folha de presença, tendo declarado, por esta forma que saía do serviço à hora certa , porque este suporte material em si não comprova que a arguida saísse mais ceda ou mais tarde do serviço.
5 - Se, feito isto, a arguida saísse mais ceda ao serviço, sem autorização superior, nem motivos legalmente admissíveis, o ilícito praticado seria o de ausência injustificada, que pode configurar um outro tipo penal ilícito, quando reunidos os respectivos requisitos legalmente exigidos, mas não o crime de falsificação de documento.
6 - De realçar que a declaração de sair do serviço, constante da folha de presença inveridicamente produzida, não é idónea para constituir, modificar ou extinguir a relação jurídico-administrativa pública que a arguida/assinante mantem com a Administrativa Pública, logo insusceptível de ser subsumido no conceito de “facto juridicamente relevante”, exigido pelo artigo 244º/1-n) do CPM.
O relator,
Fong Man Chong
PROCSSO DO RECURSO Nº (上訴卷宗編號): 999/2009
【Nº do processo da 1ª Instância: CR1-06-0264-PCC】
ESPÉCIE: Recurso penal
DATA DE ACÓRDÃO: 15-12-2009
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* RECORRENTE:
A (A)
* RECORRIDO:
TRIBUNAL “A QUO” (1ª Instância).
* OBJECTO DO RECURSO:
ACÓRDÃO CONDENATÓRIO DE 1ª INSTÂNCIA.
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ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO:
1. No processo acima referido do 1º Juízo Criminal do Tribunal Judicial da Base, após julgamento em processo comum e perante tribunal colectivo, julgada a acusação parcialmente procedente por provada, foi a arguida A (A) condenada, no que ora releva, pela prática de um crime de falsificação de documento, p. e p. pelo artigo 244º/1-b) do CPM, na pena de 18 meses de prisão, cuja execução foi suspensa, pela período de 2 (dois) anos, com a condição de indemnizar a RAEM no valor de MOP$6,000.00 no prazo de um mês contado a partir da data de trânsito do acórdão condenatório.
2. Inconformada, a arguida interpôs recurso do aresto, tendo oferecido as seguintes conclusões:
(1) O aresto recorrido padece dos vícios da falta de fundamentação e de erro de direito.
(2) O princípio da fundamentação das sentenças penais e o grau de exigência delas impõem, na sua aplicação adaptada ao caso concreto a enumeração dos factos provados e a exposição sucinta mais completa dos motivos de facto e de direito que fundamentam a decisão.
(3) A sentença recorrida é nula por não conter as menções referidas no nº 2 (...) do artigo 355º do C.P.Penal.
(4) Na decisão recorrida não existe um padrão mínimo de fundamentação da condenação da recorrente pelos imputados crimes de falsificação de documento do artigo 244º do C.Penal.
(5) Não permite conhecer o iter cognoscitivo seguido pelo tribunal recorrido para a condenar.
(6) A vaga e imprecisa remissão para as declarações da arguida, das testemunhas B, C, D, E, um agente do CCAC e uma testemunha da defesa prestadas na audiência não integra um padrão mínimo de fundamentação da decisão.
(7) Apenas a fundamentação racional e lógica, que possa fazer compreender a intervenção e o sentido das regras da experiência, permite formar uma convicção motivada e apreensível, afastando as conclusão que sejam susceptíveis de se revelar como arbitrárias.
(8) Passando-se em revista os depoimentos para que remete o acórdão recorrido, através do registo magnético contendo a prova produzida em audiência, constata-se que não foi produzida prova testemunhal que pudesse permitir a condenação da arguida, antes eles apontando em sentido oposto, isto é, no sentido da sua absolvição.
(9) A uma ponderação global dos factos, importa fazer reflectir a personalidade profissional da arguida, a qual prestou serviços de enfermagem à RAEM durante trinta e três anos, tendo visto os seus serviços ser objecto de um reconhecimento pela Direcção de Enfermagem dos Serviços de Saúde de Macau.
(10) De tal sorte assim foi que, caso raro, porventura único em Macau, já depois de aposentada, veio a ser alvo de um convite para voltar a prestar serviço no Hospital Central Conde de S. Januário, como Técnica de Diagnóstico e Terapêutica.
(11) Esse novo período de trabalho foi marcado por graves doenças de pai e mãe da arguida, a qual, solteira desde sempre, tinha uma muito particular relação com os pais, ambos residentes em Hong Kong, havendo seu pai, em consequência de doença grave que o acometeu, vindo a falecer em Hong Kong, onde residia.
(12) Desse facto resultou que a arguida tenha, ela própria, sido afectada na sua saúde.
(13) O Meritíssimo Procurador, nas suas alegações orais finais, pediu a absolvição da arguida de todos os crimes que lhe foram imputados.
(14) Contra a arguida foi instaurado um processo disciplinar pelos mesmos factos, o qual veio a ser arquivado.
(15) Tal facto consubstanciou uma demissão da Administração da faculdade de punir a arguida, por uma infracção que é, tão só, uma infracção administrativa de natureza disciplinar a que não faz sentido, perante tal demissão da Administração, atribuir relevância criminal.
(16) O crime de falsificação do artigo 244º do C.Penal de Macau na modalidade imputada à arguida, consubstancia um crime de falsificação intelectual que só adquiriria dignidade criminal se a declaração de facto falso juridicamente relevante, o que não é o caso.
(17) A alínea b) do artigo 244º do CP não contempla qualquer falsificação de documento, mas sim uma falsa declaração em documento regular, só sendo punida se se tratar de uma declaração de facto falso que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica.
(18) Para mais, como resultou demonstrado através da prova testemunhal produzida e supra transcrita, era generalizada a irrelevância das folhas de ponto nas unidades e departamentos hospitalares ao tempo dos factos imputados à ora recorrente, anárquico o seu preenchimento, inexistente o seu controlo, o que tornou irrelevante o comportamento da arguida quer em sede de direito administrativo/disciplinar quer em sede do direito criminal.
(19) Ainda que assim se não entendesse e se admitisse a relevância criminal do comportamento da arguida ora recorrente (determinativa da sua condenação neste processo), esta não era possível por inverificação do elemento subjectivo to tipo, o dolo.
(20) Na verdade, como igualmente resulta das transcritas declarações da arguida, quer na fase de inquérito quer de julgamento (e foi reforçado pela prova testemunhal que se deixou transcrita), a arguida não agiu com dolo, isto é, com intenção de causar um prejuízo.
(21) Para mais, a situação de incumprimento generalizado e de falta de controlo do livro e folhas de ponto ao tempo da prática dos factos pode ser entendido como um consentimento presumido da Administração, situação que o artigo 37º do Código Penal, em conjugação com o artigo 38º, considera uma circunstância excludente da ilicitude do facto.
(22) Entendimento que é corroborado pela demonstrada demissão da Administração em responsabilizar disciplinarmente a arguida, que se deixou demonstrada documentalmente nos autos.
(23) A decisão recorrida violou, ao proceder à sua aplicação, a norma do artigo 244º, alínea b) do CP, num quadro que impunha a sua desaplicação.
(24) Violou, ainda, o artigo 355º do CPP.
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3. Admitido o recurso, o Digno Magistrado do MP apresentou resposta, sustentando a revogação do acórdão recorrido, absolvendo-se a arguida (fls. 527 a 536).
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4. Nesta Instância, o Exmo. Procurador-Adjunto pronunciou-se no sentido de provimento do recurso (fls. 547 a 548).
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5. Realizado o exame preliminar e colhidos os vistos, prosseguiram os autos para audiência, a qual se realizou com observância do formalismo legal, tendo sido produzidas alegações orais, que se mantiveram no âmbito das questões postas no recurso.
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II – FUNDAMENTOS:
São essencialmente 2 questões colocadas neste recurso que este Tribunal há-de resolver:
a) Falta de fundamentação do acórdão recorrido;
b) Insusceptibilidade de subsumir o quadro fáctico assente (imputada à arguida) à figura de falsificação de documento p. e p. pelo artigo 244º/1-b) do CPM.
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Comecemos por esta última que constitui uma “questão prévia” (em sentido impróprio), uma vez julgada procedente, determinará a absolvição da arguida.
Nestes termos, o quadro factual assente, que nos interessa para já, é o seguinte:
“(...)
6. Entre 2/2000 e 11/2001, a arguida A, na falta de autorização do superior hierárquico, ausentou-se antecipadamente do seu posto de trabalho ou faltou ao serviço, mas mesmo assim, assinou o livro de ponto dos funcionários dos Serviços de Saúde como fosse a entrada e saída do serviço pontual conforme o horário de expediente (sublinhado e realçado nosso).
7. Tais situações ocorreram nos dias seguintes: 4/2, 17/2, 6/4, 19/4, 26/4, 15/5 (faltou ao serviço), 21/6, 5/7, 25/7, 12/9, 4/12 (falto ao serviço), 14/12 e 18/12 do ano de 2000 e 26/2, 13/6, 24/10 e 11/12 do ano de 2001.
8. A arguida bem sabia que as horas por si assinadas no livro de ponto não correspondiam às horas reais de entrada e saída do serviço, assinando falsamente as horas no livro de ponto, com o objectivo de ocultar o facto de ser ter ausentado antecipadamente ou faltado ao serviço, desse modo enganando a entidade pública onde trabalhava para receber uma retribuição indevida.
9. A arguida agiu livre e voluntariamente (...).
(...)
10. É aposentada, recebendo mensalmente MOP$23,000.00 do Fundo de Pensões, a título de reforma.
11. É solteira e tem a mãe a seu cargo.
12. Negou os factos e é delinquente primária.”
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Ora, o tipo legal chamado pela entidade acusatória e pelo Tribunal “a quo” é o do artigo 244º do CPM, que tem a seguinte redacção:
“1. Quem, com intenção de causar prejuízo a outra pessoa ou ao Território, ou de obter para si ou para outra pessoa benefício ilegítimo,
a) fabricar documento falso, falsificar ou alterar documento ou abusar da assinatura de outra pessoa para elaborar documento falso,
b) fizer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante, ou
c) usar documento a que se referem as alíneas anteriores, fabricado, falsificado ou alterado por outra pessoa, é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. A tentativa é punível.”
1. Documento e declaração nele consignadas:
O conceito de documento – elemento normativo do tipo de ilícito objectivo – é dado pela al. a) do artigo 243º do CPM.
Documento, no que ora releva, é a declaração corporizada em escrito, inteligível para a generalidade das pessoas ou para um certo círculo de pessoas que, permitindo reconhecer o emitente, é idónea para provar facto juridicamente relevante, quer tal destino lhe seja dado no momento da sua emissão quer posteriormente.
Documento é pois a declaração de um pensamento humano que deverá esta corporizada num suporte.
Enquanto objecto material do crime de falsificação de documentos, o documento é a própria declaração, independentemente do material em que está corporizada, como representação de um pensamento humano. O que permite integrar na noção de documento não só o documento autêntico ou autenticado do direito civil, com força probatória plena, mas qualquer outro que integre uma declaração idónea a provar facto juridicamente relevante.
O nº 1 do artigo 244º do CPM, ao nível do tipo objectivo de ilícito, comporta diversas modalidades de acção, ou seja, diversas modalidades de falsificação, descritas nas suas alíneas.
Ao caso interessa apenas a modalidade de conduta da al. b) – “fabricar documento falso”, na modalidade de “fazer constar falsamente de documento facto juridicamente relevante”.
Nesta modalidade de falsificação o crime consuma-se quando o agente forja, na íntegra, um documento falso. Fabrica-se, desde a origem, um documento que não existia.
Integra-se no acto de fabricar um documento falso a feitura ex novo e ex integro de um documento.1
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Os Professores Figueiredo Dias e Costa Andrade, em seu parecer – “O Legislador de 1982 optou pela Descriminalização do crime Patrimonial de Simulação” (in CJ de 1983, tomo III, pág. 23), afirmam: “O que acima de tudo define os crimes de falsificação é o respectivo bem jurídico-penal, que, com Schönke/Schröder, podems caracterizar como «a segurança e a confiança do tráfico jurídico, especialmente do tráfico probatório». Ainda segundo os dois conhecidos comentadores germânicos, a falsificação «não protege o património, nem sequer a confiança na verdade do conteúdo do documento». Noutros termos, o que o crime de falsificação protege é a verdade intrínsica do documento enquanto tal. Em primeiro lugar, a verdade no que toca à autenticidade e genuidade da sua origem e proveniência, que será frustrada com a chamada falsidade material, falsidade que, no caso vertente, está todavia por inteiro fora de causa. Em segundo lugar, a verdade necessária à função probatória específica do documento, isto é, a correspondência entre o documento e o que é documentado, independentemente da verdade, coerência, ou lógica no inteiro das expressões da vida que constituem o conteúdo ou o objecto do documento. E fala-se a este propósito de falsidade intelectual ou ideológica.”
Mais adiante, entendem os ilustres Professores:
“Mas nada menos exacto do que pretender que a formalização do negócio simulado implica qualquer abuso da respectivo forma, da escritura publica por exemplo, e redunda em detrimento da sua credibilidade. Pelo contrário, a constatação da existência da simulação – para efeitos penais ou civis – através da respectiva escritura, mais não significa que o reconhecimento implícito que este documento mantém integra a sua validade e verdade probatórias. Em síntese, e como bem refere Cavaleiro de Ferreira: «Os documentos emanados do notário certificam a verdade dos factos perante ele passados, isto é, as declarações das partes, narrando a verdade dessas declarações, que podem ser simuladas sem que o alcance probatório do documento seja afectado, pois que se destina a provar a verdade do facto da declaração, não a verdade do conteúdo da declaração. O conteúdo do documento é a verdade do facto da declaração; a verdade do conteúdo da declaração não constitui conteúdo do documento».2
Em síntese, fazer constar fielmente de escritura pública os termos de um contrato simulado é coisa radicalmente distinta de fazer constar de documento que B é filho de B se tal não é verdade, ou que A possui determinadas qualificações juridicamente relevantes se tal não se dá. Entre as duas situações medeia, com efeito, a diferença entre a verdade «ideológica» de um documento e a falsificação «ideológica» do outro. (...)”
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2. Facto juridicamente relevante:
Voltemos ao caso dos autos, pergunta-se, o livro de ponto é um documento para efeitos penais? A aposição da assinatura pela arguida nele com a finalidade de se declarar sair do serviço na hora de saída regulamentarmente fixada, constitui um facto juridicamente relevante para efeitos de incriminação da conduta da arguida a título de falsificação de documento?
O livro de ponto, concretamente, a folha de presença inserida no mesmo livro em causa, pode integrar-se no conceito de documento, antes analisado, com as características que permitem assegurar a função de perpetuação (declaração enquanto representação de um pensamento humano), e a função de garantia (declaração que permite reconhecer o emitente) que são exigidas ao documento enquanto objecto material do crime de falsificação de documentos.
Quanto à função probatória (declaração idónea a provar facto juridicamente relevante), já temos alguma dúvida, questão esta que veremos mais adiante.
Consubstancia uma declaração, enquanto representação de um pensamento humano, corporizada em papeis que certificam a presença de quem a rubrica, idóneo a provar um facto, que permite reconhecer o emitente e narrando um acontecimento ocorrido no mundo físico.
Mas, no caso vertente, pergunta-se a declaração feita pela arguida, constante de folhas de presença, é um facto juridicamente relevante para efeitos do artigo 244º/1-b) do CPM?
Ora, o que atestam as folhas de presença assinadas pela arguida? Não mais do que ela, arguida, declarou que saía de serviço nas horas indicadas nas próprias folhas de presença. O facto de arguida sair mais ceda ou mais tarde do serviço já não constar da folha de presença, ou seja estas não são idóneas para demonstrar o facto de arguida sair ou não sair do serviço durante certo período de tempo, situação esta que só pode ser provada por outros meios.
A propósito do conceito de “facto juridicamente relevante”, a penalista Helena Moniz escreve (in Código Penal, Comentário Conimbricense, Tomo II, pág. 683):
“Distinto de tudo isto é falsidade em documento ou a narração de facto falso juridicamente relevante: “fazer constar falsamente facto juridicamente relevante”. E apenas nestes casos se pode considerar que existe uma falsidade em documento. Aliás, tal como referiu FIGUEIREDO DIAS, a al. b) “não contempla qualquer falsificação de documento, mas sim uma falsa declaração em documento regular. A ficar, tornar-se-á necessária uma interpretação restritiva, papel a desempenhar pela doutrina” (Actas 1993 298). Segundo este rumo a falsidade em documentos – é punida quando se tratar de uma declaração de facto falso, mas não todo e qualquer facto falso, apenas aquele que for juridicamente relevante, isto é, aquele que é apto a constituir, modificar ou extinguir uma relação jurídica (cf. art. 255º §11). Além disto, não é toda e qualquer falsa declaração que pode ser punida à luz deste dispositivo, mas apenas aquela que uma vez incorporada no documento acrescente algo mais à ilicitude da conduta que a simples declaração oral (cfr. supra § 9).
§ 27 - A al. b) abrange apenas os casos de narração de facto falso compreendendo apenas os casos de documentos narrativos. É claro que mesmo nos documentos narrativos terão que estar preenchidos todos os pressupostos exigidos pela noção de documento (cf. art. 255º §11 s), nomeadamente deverá tratar-se de uma declaração de facto falso juridicamente relevante, o que não significa que haja uma pretensão de limitar a falsificação de documentos a documentos declarativos. No entanto, quando se trata de documentos narrativos a exigência de que seja uma narração de facto falso juridicamente relevante também se verifica (ou seja, dizer-se que a orientação consagrada nesta alínea “deve estender-se a todos os tipos de falsificação de documentos” – MAIA GONÇALVES 744 – é no mínimo pretender limitar o crime de falsificação de documentos aos documentos narrativos ou então demonstrar que o legislador foi repetitivo pelo que aquela alínea seria desnecessária).”
Estas considerações doutrinais valem perfeitamente para o caso em exame. No caso dos autos, o que se pode fazer é imputar à arguida a prática eventual de outro ilícito penal, mas certamente não é o crime de falsificação de documento nos termos descritos pela acusação pública, porque a declaração feita pela arguida na folha de presença não é idónea para constituir, modificar ou extinguir a relação jurídica que a mesma vinha a manter com a Administrativa Pública.
Ora, são bem claros e convincentes o raciocínio e os fundamentos do parecer do Digno. Magistrado do MP (fls. 533 e seguintes), onde afirmou:
“Salvo o devido respeito por opinião diversa, entendemos que o caso em apreço se encaixa, como uma luva, nas doutas considerações doutrinais que, com a devida vénia, transcrevemos.
- A assinatura de um “livro de ponto” é um “facto juridicamente relevante”?
- “Cria, modifica ou extingue uma relação jurídica”?
- E constitui “meio de prova”?
- Será que o preenchimento incorrecto ou mesmo falso de um “livro de ponto”, merece tutela penal? Tem “carência punitiva”?
Em nossa opinião a resposta a estas perguntas só pode ser NÃO.
E como qualificar o acto do superior hierárquico da arguida que apôs no referido livro de ponto um visto de conformidade (“Visto. Está conforme”)?
E alguém compreenderia que, por exemplo, a um guarda nocturno de um condomínio que fosse obrigado, por dever funcional, a fazer periódicas rondas, e a anotar em livro próprio essas rondas e as horas a que são feitas lhe fosse imputado um crime de falsificação de documento se se viesse a provar ter anotado tais rondas sem de facto as ter feito?
Mereceria tal comportamento “tutela penal” ou demonstrava “carência punitiva”?
Qual a diferença objectiva entre o “livro de ponto” da arguida e o “livro de rondas” do exemplo dado?
Para nós nenhum.
Não deve ter relevo especial para o caso o facto de a arguida ser uma funcionária pública.
Se a falsa declaração constasse de um “livro de ponto” de uma empresa privada também seria penalmente punível?
Mesmo que a empresa não sancionasse disciplinarmente o seu trabalhador?
A lei não distingue as situações, logo não pode o aplicador distinguir ...
O aplicador do direito também não pode ignorar a realidade.
E a realidade é que é de todos conhecida a falta de fiabilidade dos chamados “livros de ponto”, os quais assinados mecanicamente “quando calha”.
Também por essa razão estão a ser substituídos pelos chamados “relógios de ponto”, dada a sua maior fiabilidade.”
Em face do expendido, não se pode imputar à arguida a prática do crime de falsificação de documento conforme os factos descritos na acusação e provados em audiência.
Quanto mais, poderia imputar-se à arguida a prática de outro tipo penal, mas para tal é necessário preencher todos os requisitos legalmente exigidos e observar os trânsmites processuais legislativamente consagrados.
Tudo visto e ponderado, resta decidir.
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III – DECISÃO:
Face ao exposto, acordam os juizes deste Tribunal em conceder provimento ao recurso, revogando o acórdão recorrido e absolvendo-se a arguida do crime por que tinha sido condenada na 1ª Instância.
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Sem custas.
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Macau, aos 15 de Dezembro de 2009.
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Fong Man Chong
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Vencido nos termos da declaração de voto de vencido
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
Processo nº 999/2009
Declaração de voto de vencido
Vencido nos termos seguintes:
Sinteticamente falando, ficou provado que a arguida ora recorrente assinou o livro de ponto nos dias em que se ausentou antecipadamente ou faltou ao serviço, tendo todavia feito constar no mesmo livro menção da sua presença pontual no serviço.
O livro do ponto em si não pode deixar de integrar no conceito definido no artº 243º-a) do Código Penal, por se tratar de declaração corporizada em escrito.
É um documento o livro de ponto.
O que a arguida fez constar desse documento não corresponde à verdade.
O facto de ser presente ou ausente do serviço é sem dúvidas o facto juridicamente relevante, nomeadamente para efeitos remuneratórios e de assiduidade.
Tanto no processo penal como no processo disciplinar, sem prejuízo das normas expressas que dispõem o contrário, vigora o princípio da liberdade de prova, pois em regra a lei não limite os meios de prova para a comprovação dos factos irrelevantes para fixação da matéria de facto com vista à boa decisão da causa.
Assim, o livro de ponto pode servir-se de um meio de prova.
Se a presença e a ausência do serviço forem factos juridicamente relevantes pelo menos para efeitos remuneratórios, a conduta da arguida de ter feito constar do livro de ponto menção da sua presença ao serviço no tempo em que efectivamente ausentava, conduta essa que não pode deixar de ser demonstrativa da intenção por parte da arguida de obter benefícios ilegítimos, que são remunerações correspondentes ao serviço que não prestou.
Estão assim preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de falsificação de documento p. e p. pelo artº 244º/1-b), pelo qual a arguida foi condenada em primeira instância.
Eis as razões que me levaram a não acompanhar o decidido no Acórdão antecedente.
RAEM, 15DEZ2009
O 2º juiz adjunto
Lai Kin Hong
1 Leal Henriques e Simas Santos, Código Penal Anotado, Rei dos Livros, 2ª ed., 2º Vol., pág. 730.
2 Cavaleiro de Ferreira, Depósito Bancário: Simulação, Falsificação, burla», Scientia Jurídica, 1970, p. 299.
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Pº: 999/2009-falsificação-doc-absolvição