Processo n.º 606/2007
Recorrente : A
Recorrido: Secretário para a Segurança (保安司司長)
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da R.A.E.M.:
A, 1º Oficial, da carreira administrativa, de nomeação definitiva, interpôs recurso contencioso de anulação do Despacho do Exm° Senhor Secretário para a Segurança, de 24 de Agosto de 2007 (cfr. fls. 375 a 377 dos autos), que o puniu com a pena disciplinar de aposentação compulsiva, alegando que:
1. O Despacho recorrido dá como verificados factos que não ocorreram, qualifica erradamente os factos que dá como provados, para além de fazer interpretação e aplicação errada de vários preceitos legais;
2. O despacho Recorrida dá especial destaque na sua motivação à publicidade dos actos sendo que esta não pode ser imputada ao ora Recorrente;
3. O acto sexual consentido ocorreu num local recatado e arredado do “público”, o que se diz tendo em conta o local propriamente dito e a hora em que ocorreu;
4. Em termos de privacidade, o acto sexual considerado nos presentes autos podia ter ocorrido no remanso de um quarto do Recorrente e mesmo assim se ter verificado o referido procedimento criminal;
5. A publicidade dos fatos imputados ao arguido decorrente da audiência de discussão e julgamento não pode ser imputada ao arguido, em termos de servir de fundamento à efectivação da sua responsabilidade disciplinar;
6. A publicidade da audiência de julgamento constitui também, senão mesmo fundamentalmente, uma verdadeira garantia do arguido e esta não se pode volver num prejuízo para o mesmo, principalmente quando o arguido foi absolvido do crime que lhe foi imputado;
7. Publicidade dos factos imputados ao arguido decorreu ainda da conferência de imprensa que a Polícia Judiciária deu, no dia 23/11/2006, no dia seguinte ao da audiência de julgamento do ora Recorrente.
8. Nessa conferência foi afirmado o arguido, na sequência de processo disciplinar que lhe foi movido, por ter molestado colega do sexo feminino, foi transferido, por razões de segurança das colegas de sexo feminino, para um local onde só trabalhavam elementos do sexo masculino;
9. Este conteúdo foi amplamente difundido por todos os órgãos de comunicação social presentes, incluindo a TV;
10. A PJ nunca deveria ter dado esta conferência, dado que partia de um relato do que eventualmente terá sido alegado pelo arguido na audiência de julgamento, sabendo-se que o arguido não tem a obrigação de responder com verdade e fundamentalmente porque se estava perante um julgamento, de que se aguardava a sentença, em que o arguido respondia pelo crime de violação, desde logo e até para se evitar o condicionamento do Tribunal;
11. O conteúdo transmitido na conferência de imprensa era susceptível, objectivamente, de poder condicionar a decisão do Tribunal que se aguardava;
12. O arguido não pode ser responsável pela publicidade que, pela conferência de imprensa, foi dada a esses factos;
13. É censurável a actuação que se traduz, por um lado, em a PJ fomentar ou ampliar abundantemente a publicidade dos factos e depois, por outro lado, vir o despacho recorrido exigir responsabilidades do arguido pelo facto o mesmo ter exposto a PJ à《censura moral dos cidadãos》 ou de ter abalado《o prestígio e a dignidade institucional da Polícia Judiciária...》;
14. O despacho recorrido erra nos pressupostos de facto quando aplica a pena de aposentação compulsiva ao ora Recorrente por considerar que o mesmo foi responsável pela publicidade decorrente dos seus actos;
15. Sem conceder, o despacho recorrido padece do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de direito onde considera que o ora Recorrente violou《o dever de contribuir para o prestígio da administração pública;
16. Todo o funcionário não pode deixar de estar vinculado por deveres de conduta na vida privada, sendo que a questão fundamental é saber qual a amplitude desses deveres e qual a respectiva intensidade;
17. No que respeita à Administração Pública, o que assume relevo não é a especial proeminência da entidade ou da organização, mas antes a especificidade dos interesses que se pretende ver satisfeitos pela Administração Pública;
18. Devem apenas relevar disciplinarmente aqueles deveres na vida privada que prejudiquem de forma grave e directa as funções cometidas à Administração Pública;
19. A evolução em matéria de deveres na vida privado foi no sentido da restrição da sua amplitude justamente para evitar abusos de intromissão na esfera íntima;
20. A norma da 2ª parte da alínea o) do n.º 2 do artigo 315º deve ser interpretado no sentido de apenas dar relevância aos deveres na vida privada que prejudiquem de forma grave e directa as funções cometidas à Administração Pública;
21. A real afectação do funcionamento do serviço e/ou da imagem da Administração Pública apenas pode resultar da maior ou menor publicidade que as faltas privadas revistam e considerando-se a maior ou menor importância das funções exercidas pelo funcionário em questão;
22. Os factos imputados ao arguido ora Recorrente não são susceptíveis de integrar a fattispecies da norma da 2ª da alínea o) do n.º 2 do artigo 315º do ETAPM, dado que a publicidade dos actos não pode ser imputada ao arguido ora Recorrente, este era um mero funcionário administrativo da PJ, com o acto do ora Recorrente não foram postos em causa os próprios fins que a PJ prossegue, para além de que a prostituição é amplamente tolerada em Macau;
23. O despacho recorrido faz uma interpretação fundamentalista e ferroviária da norma da 2ª parte da alínea o) do n.º 2 do artigo 315º do ETAPM dado que não atende às circunstâncias referidas;
24. Na vasta jurisprudência portuguesa e de Macau consultada e transcrita no texto das alegações não se encontra um único espécimen que tenha alguma analogia com o caso dos presentes autos;
25. Sem conceder, o despacho recorrido se apresenta viciado por erro nos pressupostos de facto e de direito, por violar as normas da 2ª parte da alínea o) do n.º 2 e do n.º 1 do artigo 315º do ETAPM;
26. A aplicação da pena de aposentação compulsiva sempre exigiria que se desse por demonstrada a inviabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional do ora Recorrente, o que não acontece;
27. Os factos são de 9 de Maio de 2004, a o órgão competente optou por suspender o processo disciplinar até ao trânsito em julgado da sentença criminal e não foi aplicada ao arguido a medida da suspensão preventiva;
28. Desde os factos até ao momento do despacho recorrido o ora Recorrente sempre exerceu funções na PJ, do que decorre que, objectivamente, se não verifica a aludida inviabilidade da manutenção da relação jurídico-funcional do ora Recorrente;
29. Sem conceder, o despacho recorrido se apresenta viciado por erro nos pressupostos de direito, ter feito aplicação errada da circunstância agravativa da alínea b) do n.º 1 do artigo 283º do ETAPM;
30. Os alegados prejuízos para serviço público não podem deixar de fazer parte da hipótese normativa da norma da 2ª parte da alínea o) do n.º 2 do artigo 315º do ETAPM;
31. Verificar-se-ia uma dupla valoração da mesma circunstância;
32. A dupla valoração de circunstâncias é expressamente proibida em matéria de direito sancionatório, tal como o é em direito penal;
33. Sem conceder, a pena disciplinar aplicada apresenta-se objectivamente como despropositada e injusta;
34. O despacho recorrido violou a norma do artigo 279º, n.º 1, por não se aplicar ao caso dado que apenas se refere a deveres funcionais ou profissionais e não a deveres extraprofissionais ou extrafuncionais com o é o dever em causa no processo disciplinar ora em apreço;
35. O despacho recorrido violou as normas do artigo 279º, n.º 1, 315º, n.º 1 e n.º 2, alínea o), 283º, n.º 1, alínea b), 300º, n.º 1, alínea a) e 304º do ETAPM e o princípio da proporcionalidade.
Termos em que e contando com o muito douto suprimento desse Venerando Tribunal, deve o presente recurso ser julgado procedente, anulando-se, pelas apontadas ilegalidades resultantes do vício de violação de lei por erro nos pressupostos de facto e de direito, violação das normas relativas às circunstancias agravativas da responsabilidade do arguido e por violação dos princípios da proporcionalidade e da justiça.
Requer-se a citação da autoridade recorrida para contestar, querendo, e enviar o competente processo disciplinar.
Citada a entidade recorrida, esta contestou, pugnando pelo não provimento do recurso, por não ter verificado os vícios invocados.
Não houve alegações facultativas.
Nesta Instância, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou o seu douto parecer que se transcreve o seguinte:
“Vem A impugnar o despacho do Secretário para a Segurança de 24/8/07, que, em sede disciplinar, o puniu com pena de aposentação compulsiva, assacando-lhe vícios de violação de lei, mais concretamente erro nos pressupostos de facto e de direito, bem como afronta dos artºs 279º, n.º 1, 315º, n.º 1 e 2, al o), 283º, n.º 1, al b), n.º 1, al a) e 304º do ETAPM, bem como do princípio da proporcionalidade, argumentando, em síntese, terem sido dadas como verificadas circunstâncias que não ocorreram, tal como a publicidade dos factos, que lhe não pode ser imputável, qualificando-se, de todo o modo, erradamente esses factos, efectuando-se interpretação e aplicação jurídicas indevidas, mostrando-se, finalmente, inconformado com a pena aplicada, que considera desproporcionada, por, além do mais, se não ter demonstrado a inviabilidade da manutenção da sua situação jurídico/funcional.
Cremos, contudo, não lhe assistir razão.
Desde logo, não se nos afigura que a publicidade que os factos mereceram, no sentido em que a mesma agravou a conduta do recorrente, tenha advindo do normal conhecimento aquando da audiência de julgamento em processo crime, ou de conferência de imprensa dada pela P.J. a propósito do sucedido: a publicidade a que o acto se reporta cinge-se, como é óbvio, e normal, ao conhecimento público adquirido pela população, designadamente através dos “media”, circunstância que, aliás, bem se compreende, atentas as circunstâncias específicas do caso, a pequena dimensão da Região e a qualidade profissional do recorrente.
Ou seja: essa publicidade existiu e existiria independentemente daqueles acontecimentos anunciados pelo recorrente como escapando ao seu controlo, sendo inequívoco que tal publicidade, não provocada, denegriu a imagem da corporação que aquele servia, razão por que não faz sentido esgrimir, a tal propósito, com anunciado erro nos pressupostos factuais em que a decisão assentou.
Tem, de seguida, razão o recorrente ao afirmar que, para os efeitos da 2ª parte da al o) do n.º 2 do art.º 315º, ETAPM, “Devem apenas revelar disciplinarmente aqueles deveres da vida privada que prejudiquem de forma grave e directa as funções cometidas à Administração Pública”.
Só que, foi precisamente o que sucedeu: torna-se evidente que, pese embora no domínio da sua vida privada, os actos levados a efeito pelo recorrente, com a repercussão pública que os mesmos assumiram, repercussão pública, repete-se, não provocada ou forçada por qualquer forma por terceiros, mas antes derivada dos contornos de escândalo da situação em si, da pequena dimensão da Região, da normal cobertura dos “media” e da qualidade profissional do recorrente, prejudicaram de forma grave e directa o prestígio, dignidade e consideração da corporação que servia, afectando e denegrindo a imagem da mesma, acrescendo que os factos, por si só considerados, revelam inequívoca indignidade e falta de idoneidade moral para o exercício das funções, pelo que aquela integração plenamente se justifica.
Por outro lado, não faz também sentido esgrimir com errada aplicação da circunstância agravativa da al b) do n.º 1 do artº 283º ETAPM, por, alegadamente, constituir dupla valoração da mesma circunstância relativamente à já aludida integração da conduta do recorrente no preceituado na al o do n.º 2 do artº 315º daquele diploma legal: encontramo-nos perante realidades jurídicas diferentes e diferenciadas, reportando-se a 1ª a circunstância agravativa relativa à “produção efectiva de resultados prejudiciais ao serviço público ou ao interesse geral...” e a 2ª a enumeração de conduta típica de aplicação de pena expulsiva derivada de revelação de “indignidade ou falta de idoneidade moral para o exercício das funções”, não se vendo que se reportem à mesma realidade e onde ou como se sobreponham.
Já quanto à invocação, pelo acto, do preceituado no n.º 1 do artº 279º, ETAPM, a mesma nos suscita sérias reservas, por duas ordens de razões:
- Por um lado, a norma reporta-se, expressa e claramente aos deveres dos funcionários e agentes “no exercício da função pública”, o que manifestamente não é o caso;
- Por outro, pretendendo-se, de todo o modo, como tudo aponta, acentuar a falta de dignidade do recorrente com a sua conduta, na sua vida privada, mas contendendo com a dignidade da Corporação, então estará tal situação já contemplada pela submissão à parte final da al o) do n.º 2 do artº 315º do diploma em questão, pelo que, aqui sem, se poderia falar de integração jurídica indevida da mesma conduta do recorrente em duas realidades jurídicas distintas.
Trata-se, contudo, a nosso ver, de mera questão de subsunção jurídica não relevante, já que a decisão se justificará plenamente pelo restante subsumido, razão por que, em obediência ao princípio do aproveitamento do acto, se não mostra o mesmo, por tal motivo, afectado na sua validade.
Nesta sede, pretende ainda o recorrente que se impõe, pelo menos um juízo menos severo que adira com justiça à culpa concreta apurada.
Ora, no que respeita à apreciação da integração e subsunção dos factos na cláusula geral punitiva a actividade da Administração está sujeita à sindicabilidade do Tribunal, o mesmo não se pode dizer quanto à aplicação das penas, sua graduação e escolha da medida concreta., existindo, neste âmbito, discricionaridade por parte da Administração, a qual passa pela opção entre emitir ou não o acto sancionatório e ainda pela escolha entre vários topos e medidas possíveis.
Neste último campo, não há controlo jurisdicional sobre a justeza da pena aplicada dentro do escalão respectivo, em cuja fixação o juiz não pode sobrepor o seu poder de apreciação ao da autoridade investida do poder disciplinar.
Com fundamento no princípio da separação de poderes, a intervenção do juiz, o controlo jurisdicional fica apenas reservado aos casos de erro grosseiro, ou seja, àquelas contingências em que se verifica uma notória injustiça ou uma desproporção manifesta entre a sanção infligida e a falta cometida (cfr. neste sentido, acs do S.T.A. de Portugal de 14/7/92, Rec 30.126 e autores aí citados, de 22/5/90, Rec 27. 611, de 3/4/90, Rec 26475, de 5/6/90, Rec 27.849 e de 3/11/92, Rec 30.795), dado não poderem ser legitimados, em nenhuma circunstância, comportamentos da Administração que se afastem dos princípios da justiça e da proporcionalidade que necessariamente devem presidir à sua actuação.
No caso vertente, não se verifica a referida desproporção ou manifesta injustiça quanto à pena de aposentação compulsiva concretamente infligida ao recorrente, pelo que não tem o tribunal de intervir nessa actividade da Administração, verificada que está a correcta integração dos factos na cláusula geral punitiva e a proporção e justiça da medida aplicada.
A pena em questão, tal como a demissão, é de aplicar quando a gravidade da conduta do arguido inviabiliza a manutenção da relação funcional.
Para a apreciação desse conceito de inviabilização de manutenção da relação funcional, a Administração goza de grande liberdade de apreciação, não se devendo aquela relação manter sempre que os actos praticados pelo arguido, avaliados e considerados no seu contexto, impliquem para o desempenho da função prejuízo de tal monta que irremediàvelmente comprometa o interesse público que aquele deveria prosseguir, designadamente a confiança, o prestígio e o decoro que deve merecer a actuação da Administração, de tal modo que o único meio de acudir ao mal seja a ablação do elemento que lhe deu causa.
Ora, afigura-se-nos evidente que inviabiliza a manutenção da relação funcional a actuação de um agente da P.J. que, nas circunstâncias anunciadas, mantém relações de sexo consentidas e remuneradas com uma mulher, no patamar de um edifício de habitação, com os incidentes que constam da matéria de facto dada como provada em sentença proferida no PCC CR-04-0230 do TJB e a fls 361 a 373 do instrutor apenso, da autoria do Director da P.J., mantendo-se, a tal propósito o já referido em sede de suspensão de eficácia, que se repisa: “Ora, a tais factos, independentemente da consideração de os mesmos se reportaram à vida privada do requerente, foi, designadamente através dos “media” da Região, dada grande repercussão e alarido, precisamente, por neles se encontrar envolvido um agente da Polícia Judiciária, instituição que, como é evidente, ficou exposta à censura moral dos cidadãos, tornando-se evidente que, independentemente do tempo já decorrido sobre os factos – 9/5/04 – (sendo certo que, o requerente se manteve suspenso da suas funções até ao trânsito em julgado da decisão absolutória do crime de violação que pôs termo ao processo criminal, tendo-se o processo disciplinar reiniciado a partir dessa altura), a suspensão da execução do acto punitivo e consequente regresso do requerente à instituição seria passível de causar grande impacto muito negativo na imagem e prestígio públicos da corporação, precisamente vocacionada para a defesa e manutenção da ordem, segurança e estabilidade sociais da Região, sendo certo que a pena disciplinar aplicada é indiciadora também, quer quanto à gravidade da conduta imputada ao requerente, quer quanto à inviabilização da manutenção da sua relação funcional.”
Razões por que, por não ocorrência de qualquer dos vícios assacados, ou de qualquer outro de que cumpra conhecer, somos a pugnar pelo não provimento do presente recurso.
Cumpre conhecer.
Foram colhidos os vistos legais.
É seguinte o acto recorrido:
“No processo disciplinar n° 6/2004 da Polícia Judiciária, instaurado contra o seu funcionário, A, 1.º Oficial, da carreira administrativa, titular do BIRM XXXXXX(X), melhor identificado nos referidos autos, apuraram-se os seguintes factos:
No dia 9 de Maio de 2004, cerca das 02H20 da madrugada, o arguido fez-se acompanhar de uma mulher identificada como B, até ao Edf.° XXX (X.° bloco), sito na Avenida de XXX da XXX, a fim de, como haviam previamente combinado, manterem relações sexuais cujo preço foi acordado em MOP$ 500.00, que o arguido deveria pagar à sua companheira de ocasião. Naquele edifício, o arguido conduziu-a ao patim superior da escadaria, que do XX.º andar dá acesso ao terraço exterior, tendo, em seguida, iniciado um acto sexual consentido, caracterizado pelos incidentes que constam da matéria dada como provada na sentença proferida no processo comum colectivo n.º CR2-04-0230-PCC do Tribunal Judicial de Base, junta aos autos de fls. 165 a 178, e cuja descrição consta do Despacho do Director da Polícia Judiciária de fls. 361-373, o qual se dá por inteiramente reproduzido e aqui integrado.
Da publicidade que veio a ser dada aos factos provadamente praticados pelo arguido, resultou, pese embora a sua absolvição do crime de violação de que fora acusado, um impacto social negativo para a instituição onde exerce funções, a qual, atentas as suas atribuições, tem que estar acima de qualquer suspeição cerca da idoneidade moral, integridade e adequação comportamental dos seus funcionários.
Quem mantem um vínculo laboral com a Polícia Judiciária deve, por dever de cautela pessoal e por dever institucional, cuidar de se abster de condutas que possam pôr em risco a imagem da corporação. Aquilo que poderia constituir facto da estrita vida privada tomou-se em “aberrante” facto público que denegriu a imagem da Polícia Judiciária, não sendo comportável o convívio da instituição com quem a expõe à censura moral dos cidadãos, ou, pelo menos, à suspeição da contaminação do seu “todo” pela predisposição de qualquer dos seus funcionários para idênticas condutas.
A ética do funcionário não se confina aos “muros” do seu local de trabalho e o arguido tem o dever de se abster de comportamentos que potencialmente possam abalar o prestígio e a dignidade institucional da Polícia Judiciária que serve, não devendo olvidar que facilmente o consequente juízo de valor negativo se pode estender a toda a administração pública em geral.
O arguido com a sua conduta violou de forma muito grave o dever de contribuir para o prestígio da administração pública, revelando falta de dignidade e idoneidade moral para o exercício de funções públicas, dever inerente à sua qualidade de funcionário público como decorre do disposto no n.º 1 do art.º 279.° e alínea o) do n.º 2 do art.º 315.°, ambos os normativos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro (ETAPM), e em relação aos quais se constituiu em infracção.
Agrava a conduta do arguido a circunstância da alínea b) do n.º 1 do art.º 283.° daquele Estatuto prejuízo para o serviço público, previsível como consequência dos actos praticados, sendo que milita em seu favor atenuante da alínea a) do art.º 282º do mesmo diploma (10 anos de classificação de serviço BOM).
Ponderada, assim, a gravidade da falta, que é elevada, a culpa que é igualmente grave face ao juizo de censura ético-jurídico gerado pela conduta e, bem assim, as circunstâncias que a atenuam e agravam, aplico ao arguido, A, 1.º Oficial da carreira administrativa da Polícia Judiciária, a pena de Aposentação Compulsiva presvista nos art.ºs 300, n.º 1 alínea a) e 304.°, do citado ETAPM, porquanto, sendo inviável a manutenção do arguido em funções públicas se valoriza o facto de o mesmo ter mais de 15 anos de serviço, para efeitos de aposentação, o que faço nos termos da competência que me advem do disposto no artº 322º, do mesmo diploma e da Ordem Executiva n.º 13/2000.
Notifique, anexando ao presente despacho cópia das peças processuais que o integram, designadamente as de fols. 165 a 178 e 361 a 373.
Aos 24 Agosto de 2007, O secretário para a Segurança, … ”
O recorrente impugnou o despacho recorrido pelos seguintes vícios:
- Erro nos pressupostos de factos, por terem sido dadas como verificadas circunstâncias que não ocorreram, tal como a publicidade dos factos, que lhe não pode ser imputável;
- Violação da lei por erro nos pressupostos de direito quando considerou o recorrente violou o dever de contribuir para o prestígio da administração pública, argumentando que, por um lado, o despacho tinha qualificado erradamente esses factos, efectuando-se interpretação e aplicação jurídicas indevidas;
- Erro nos pressupostos de facto e de direito por violar a norma da 2ª parte da alínea o) do n.º 2 do artigo 315º do ETAPM, por a aplicação da pena de aposentação compulsiva sempre exigiria que se desse por demonstrada a inviabilidade da manutenção da situação jurídico-funcional do reocrrente, o que não aconteceu;
- Erro nos pressuposto de direito, por ter feito uma dupla valoração da mesma circunstância aquando a aplicação da circunstância agravativa da alínea b) do n.º 1 do artigo 283º do ETAPM, pois, os alegados prejuízos para serviço público não podem deixar de fazer parte da hipótese normativa da norma da 2ª parte da alínea o) do n.º 2 do artigo 315º do ETAPM; e
- A pena disciplinar aplicada apresenta-se objectivamente como despropositada e injusta, violando as normas do artigo 279º, n.º 1, 315º, n.º 1 e n.º 2, alínea o), 283º, n.º 1, alínea b), 300º, n.º 1, alínea a) e 304º do ETAPM e o princípio da proporcionalidade.
Vejamos.
A priori, vejamos os imputados erros nos pressupostos de facto e de direito, por, por um lado, ter dado como provados factos que com efeito não existia (a publicidade do facto provado no processo penal que lhe é imputável), por outro, ter interpretado erradamente as normas (aquando considerou o recorrente ter violado o dever de contribuir para o prestígio da administração pública).
Como podemos ver, o recorrente foi imputado essencialmente pela violação ao dever de contribuir para o prestígio da administração pública, revelando falta de dignidade e idoneidade moral para o exercício de funções públicas, dever inerente à sua qualidade de funcionário público como decorre do disposto no n.º 1 do art.º 279.° e alínea o) do n.º 2 do art.º 315.°, ambos os normativos do Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública, pela prática do facto cuja publicidade se deu e “que resultou, pese embora a sua absolvição do crime de violação de que fora acusado, um impacto social negativo para a instituição onde exerce funções, a qual, atentas as suas atribuições, tem que estar acima de qualquer suspeição cerca da idoneidade moral, integridade e adequação comportamental dos seus funcionários”.
Tudo se desencadeou do seguinte facto: “No dia 9 de Maio de 2004, cerca das 02H20 da madrugada, o arguido fez-se acompanhar de uma mulher identificada como B, até ao Edf.° XX (X.° bloco), sito na Avenida de XXX da XXX, a fim de, como haviam previamente combinado, manterem relações sexuais cujo preço foi acordado em MOP$500.00, que o arguido deveria pagar à sua companheira de ocasião. Naquele edifício, o arguido conduziu-a ao patim superior da escadaria, que do 33º andar dá acesso ao terraço exterior, tendo, em seguida, iniciado um acto sexual consentido, caracterizado pelos incidentes que constam da matéria dada como provada na sentença proferida no processo comum colectivo nº CR2-04-0230-PCC do Tribunal Judicial de Base (no qual o arguido fora absolvido do imputado crime de violação).”
A entidade recorrida, perante o facto provado constante daquele processo penal, considerou que a publicidade que se deu resultou “um impacto social negativo para a instituição onde exerce funções”.
Digamos que, independentemente de saber se foi o próprio facto de ter mantido relações sexuais remuneradas oferecidas por uma senhora no lacal “quase privado” que foi considerado censurável ou se foi o facto de ter deixado publicada essa ocorrência que foi considerado censurável, o juízo de ter o facto ou a publicidade do facto provocado “impacto social negativo” não está no poder discricionário da Administração, por não depender da sua escolha ou vontade, mas a sua conclusão depende de factos concretos e objectivos que a revela. Nesta parte, podemos ter intervenção.
Infelizmente, dos autos não resultaram provados quaisquer factos concretos para concluir esse juízo de provocação do “impacto social negativo”. Por um lado, tal como a própria entidade omitiu, o facto em si não tinha sido disciplinarmente censurado por constituir a “estrita vida privada”, a sua publicidade também não o fez perder a natureza de “estrita vida privada”; por outro lado, se o facto se tomou “em aberrante facto público que denegriu a imagem da Polícia Judiciária”, teria ter suportos dos factos concretos, tais como as relações da sua vida privada com as suas funções públicas. As reacções, de contornos negativos, dos membros desta comunidade quanto ao acontecimento desse facto que foi qualificado como “facto aberrante”, quer sobre o próprio funcionário quer sobre a entidade em que o funcionário trabalhava.
Simplesmente pela falta destes factos para chegar aquela conclusão retirada no acto punitivo, incorreu este no erro nos pressupostos de direito, pelo erro na qualificação jurídica dos factos, erro esse que se reconduz à violação de lei nos actos vinculados1.
Pois, sabemos que, se o orgão administrativo julga que o pressuposto do seu acto é um, dando como ocorridos factos que, efectivamente, não ocorreram, há violação de lei, uma vez que o momento da verificação dos factos é sempre vinculado.2
A vontade da Administração tem de ser esclarecida sendo, contudo, irrelevantes os vícios de vontade quando se trata de acto predominantemente vinculado.
É de anular o acto recorrido.
Apreciadas estas questões, ficou prejudicada a apreciação das restantes, pois a apreciação das restantes pressupõe a improcedência das primeiras apreciadas.
Pelo exposto acordam neste Tribunal de Segunda Instância em conceder provimento ao recurso interposto por A, anulando o acto recorrido.
Sem custas por não serem devidas.
RAEM, aos 15 de Julho de 2010
Choi Mou Pan
(Relator)
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Neste sentido vide entre outros o acórdão deste Tribunal de 27 de Janeiro de 2000 do processo n° 1176.
2 Cfr. Prof. Marcello Caetano, in “Manual de Direito Administrativo” I, 467.
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TSI-606/2007 Página 1