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Processo n.º 735/2008 Data do acórdão: 2010-7-29
Assuntos:
– acção penal por acidente de viação
– pedido cível
– erro notório na apreciação da prova
– violação de legis artis
S U M Á R I O
1. Estando em causa um pedido cível enxertado na acção penal e aí julgado conjuntamente com a causa penal, pode, de facto, a demandada civil arguir, na sua alegação de recurso interposto da decisão final da Primeira Instância, o vício de erro notório na apreciação da prova, materialmente previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal de Macau.
2. Verifica-se o erro notório na apreciação da prova, nomeadamente quando for manifesto a qualquer homem médio colocado na situação do julgador que após examinados todos os elementos constantes dos autos, o resultado de julgamento de factos a que chegou o julgador não seja compatível com as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quando for patente que esse resultado de julgamento de factos tenha sido obtido com violação de legis artis.
3. Tratando-se de um montante relativamente não pequeno, mas sim de valor elevado, é evidente que o Colectivo a quo violou legis artis na valoração da prova então feita a respeito do montante mensal que o ofendido demandante tinha deixado de auferir como condutor de veículos de transporte de mercadorias, no período de tratamento das lesões sofridas no acidente de viação, ao ter o mesmo Colectivo fundado a sua livre convicção exclusivamente nas declarações da mulher e da filha do próprio ofendido, para dar totalmente provado tal montante mensal de MOP$35.000,00.
4. Padece, pois, o acórdão recorrido, na parte em questão, do erro notório na apreciação da prova.
O relator,

Chan Kuong Seng

Processo n.º 735/2008
(Autos de recurso penal)
  Recorrente: A
Recorrido: B
Tribunal a quo: 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base



ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I - RELATÓRIO
A, demandada já melhor identificada no pedido cível de indemnização enxertado nos autos de processo penal comum com intervenção de tribunal colectivo n.º CR3-06-0230-PCC do 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, veio recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), do acórdão final aí proferido na parte respeitante à quantia arbitrada em MOP$135.333,30 para indemnização dos lucros cessantes (perdas do rendimento durante os 116 dias de cura das lesões físicas) do demandante B vítima do acidente de viação em causa (vide o teor desse acórdão, a fls. 269 a 275v dos presentes autos correspondentes, cujo teor se dá por aqui totalmente reproduzido para todos os efeitos legais).
Pediu, pois, a seguradora recorrente a sua absolvição da dita indemnização de lucros cessantes peticionada no enxerto cível do demandante, devido à inexistência de documentação que suportasse a alegação do demandante no sentido de auferir ele MOP$35.000,00 por mês, ou, caso assim não se entendesse, a fixação dessa indemnização com recurso ao juízo de equidade à luz do art.o 560.o do vigente Código Civil, por causa da incerteza na determinação do respectivo montante exacto (cfr. o teor da motivação de recurso de fls. 291 a 300 dos autos).
Ao recurso, não foi oferecida nenhuma resposta pela parte autora do pedido cível.
Subido o recurso, o Ministério Público junto desta Segunda Instância declarou em sede de vista que não tinha legitimidade para emitir parecer, por estar em causa um recurso relativo à indemnização civil.
Em sede de exame preliminar feito em seguida pelo relator, foi exarado despacho no sentido de poder o presente recurso, como interposto no âmbito do acórdão penal condenatório em processo emergente de acidente de viação na parte referente exclusivamente ao pedido cível enxertado na acção penal, ser julgado directamente em conferência, na esteira do entendimento já assumido nos processos n.os 266/2004, 285/2004 e 294/2004 do TSI.
E corridos depois os vistos legais, cumpre agora decidir.
II - FUNDAMENTAÇÃO
Desde já, cabe afirmar que o recurso vertente, dados os termos pelos quais foi interposto pela seguradora, pode efectivamente ser directamente julgado em conferência tal como o que acontece em outros recursos civis em geral, por razões já expostas no referido despacho liminar do relator.
E voltando agora ao cerne do recurso em apreço, é de relembrar os seguintes argumentos nuclearmente esgrimidos pela recorrente para assacar ao Tribunal recorrido o erro notório na apreciação da prova por violação do princípio da livre apreciação da prova do art.o 114.o do vigente Código de Processo Penal (CPP):
– a prova produzida nos autos é insuficiente para conduzir à fixação da matéria de facto provada nos termos em que o foi;
– dos autos não constam quaisquer documentos comprovativos nem da profissão do ofendido, nem dos rendimentos mensais alegadamente auferidos;
– para dar como provado que o ofendido auferia a quantia mensal de MOP$35.000,00 como condutor de veículo de transporte de mercadoria e consequentemente condenar a recorrente ao pagamento de uma indemnização no montante de MOP$135.333,30 pela perda dos rendimentos, o Tribunal recorrido baseou-se, unicamente, nas declarações da mulher e da filha do ofendido, as quais não podem ser consideradas isentas;
– é pouco credível, e perfeitamente desajustado da realidade das remunerações pagas em Macau aos profissionais do ramo do ofendido que este pudesse auferir mensalmente a quantia de MOP$35.000,00;
– na apreciação da prova o tribunal é livre de formar a sua convicção, mas não pode essa apreciação contrariar as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos;
– se há factos que podem ser considerados provados ou não provados unicamente com base em prova testemunhal, outros há que para se aferir da sua veracidade necessitam de prova mais experimentada;
– a prova dos rendimentos não pode ser baseada em meras declarações, desprovidas de ciência;
– existem meios idóneos para provar a existência de rendimentos, como contrato de trabalho, recibo de ordenado ou declaração de rendimentos;
– a verba fixada na decisão recorrida padece de erros manifestos na sua quantificação, combinados com a omissão de outros factos essenciais para o seu cálculo.
Pois bem, ficou provado no acórdão recorrido que o ofendido trabalhava como “condutor de veículo de transporte de mercadorias e auferia a quantia mensal de cerca de MOP$35,000.00” (cfr. o segundo parágrafo da página 5 desse texto decisório, a fl. 271 dos autos), facto provado esse que corresponde ao alegado pelo ofendido no ponto 22 da petição do seu pedido cível a fl. 120, no sentido de que à “data dos acontecimentos, o ofendido trabalhava como o condutor de veículo de transporte de mercadorias e auferia a quantia mensal de cerca de MOP35,000.00”, alegação fáctica essa que chegou a ser concretamente impugnada pela seguradora ora recorrente nos art.os 30.o e 31.o da sua contestação então apresentada (a fls. 169 a 178) ao pedido cível.
Em síntese, a seguradora só discorda da livre convicção formada pelo Colectivo a quo sobre o montante do rendimento mensal do ofendido à data do acidente.
Tratando-se de um pedido cível enxertado na acção penal e aí julgado conjuntamente com a causa penal, pode, de facto, a demandada civil arguir, na sua alegação de recurso, o vício de erro notório na apreciação da prova, materialmente previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
E como se sabe, verifica-se este vício, nomeadamente quando for manifesto a qualquer homem médio colocado na situação do julgador que após examinados todos os elementos constantes dos autos, o resultado de julgamento de factos a que chegou o julgador não seja compatível com as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, ou quando for patente que esse resultado de julgamento de factos tenha sido obtido com violação de legis artis.
In casu, consta da acta de julgamento então realizado na Primeira Instância (de fls. 267 a 268v) que chegaram a prestar declarações a mulher e a filha do ofendido demandante, sendo aquela a dona, e também motorista, de uma companhia de carros de reboque, e esta a contabilista da companhia, e que embora, na audiência então realizada, a Ilustre Patrona Oficiosa do ofendido demandante tenha requerido a junção aos autos de um livro de contas da companhia, essa pretensão acabou por ser indeferida devido à oposição oferecida pelo Ilustre Defensor do arguido e pela Ilustre Advogada da demandada seguradora. Por outro lado, o Colectivo a quo afirmou no penúltimo parágrafo da página 7 do texto da sua decisão ora recorrida (a fl. 272) que a sua convicção sobre os rendimentos perdidos pelo ofendido por causa das lesões sofridas no acidente de viação se fundou nas explicações detalhadas dadas na audiência pela mulher e pela filha do ofendido.
Ora bem, tratando-se de um montante relativamente não pequeno, mas sim de valor elevado, é evidente que o Colectivo a quo violou legis artis na valoração da prova então feita a respeito do montante mensal que o ofendido demandante tinha deixado de auferir no período de tratamento das lesões sofridas no acidente de viação, ao ter o mesmo Colectivo confiado nas declarações daqueles dois familiares do próprio ofendido, para dar totalmente provado tal montante mensal de MOP$35.000,00.
Padece, pois, o acórdão recorrido, na parte em questão, do erro notório na apreciação da prova.
Como a recorrente não chegou a requerer a renovação da prova neste TSI, é de reenviar o processo para novo julgamento, a ser feito pelo ora recorrido 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, com nova composição do Tribunal Colectivo, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, mas relativamente tão-só ao montante mensal de rendimento que o ofendido demandante civil terá deixado de auferir nos já provados 116 dias de tratamento das lesões físicas sofridas por causa do acidente de viação dos autos, a fim de decidir de novo do objecto do pedido cível de indemnização concernente e apenas concernente aos lucros cessantes, já delimitado pela matéria alegada no ponto 22 da petição cível e impugnada nos art.os 30.o e 31.o da contestação cível.
Com o que já se torna prejudicado o conhecimento da questão subsidiária posta no recurso, relativa à fixação equitativa neste TSI do montante indemnizatório dos lucros cessantes.
Entretanto, de todo o acima relatado e analisado, decorre naturalmente já transitada em julgado (logo após completado o prazo legal de dez dias contado da notificação das duas partes civis do veredicto final da Primeira Instância), precisamente por falta de impugnação quer pela própria parte demandada quer pelo demandante, toda a remanescente decisão de facto e de direito já tomada no acórdão recorrido, inclusivamente a decisão já feita na parte em que se condenou a seguradora ora recorrente a pagar as seguintes quantias indemnizatórias ao ofendido demandante (com juros legais a contar da data do trânsito em julgado da decisão até integral e efectivo pagamento, tal como já se decidiu também pelo mesmo Colectivo a quo):
– MOP$4.902,00 (por despesas de tratamento das lesões do ofendido);
– MOP$1.060,00 (por despesas de reparação do veículo do ofendido);
– MOP$150.000,00 (por danos morais sofridos pelo ofendido).
III - DECISÃO
Dest’arte, e em harmonia com o exposto, acordam em julgar directamente em conferência o objecto do recurso, com determinação do reenvio do processo para novo julgamento pelo recorrido 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, relativamente tão-só ao montante de rendimento mensal que o demandante civil terá deixado de auferir no já comprovado período de 116 dias de tratamento das lesões sofridas por causa do acidente de viação dos autos (sendo, pois, intacta toda a remanescente decisão de facto e de direito já tomada no acórdão recorrido, nomeadamente a decisão condenatória de indemnização quanto a MOP$4.902,00 de despesas de tratamento das lesões, MOP$1.060,00 de despesas de reparação de veículo, e MOP$150.000,00 de danos morais, com juros legais a contar da perfeição do prazo de dez dias contado da notificação das duas partes civis do acórdão ora recorrido, até integral e efectivo pagamento).
Não há condenação em custas pela presente lide recursória, porquanto se encontra agora julgado provido o vício principal invocado pela seguradora recorrente, por um lado, e, por outro, o recorrido demandante não ofereceu qualquer resistência à pretensão formulada no recurso.
Fixam em MOP$700,00 os honorários, nesta Segunda Instância, da Ilustre Patrona Oficiosa do demandante.
Macau, 29 de Julho de 2010.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)



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