Processo nº 192/2010
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A (XXX), com os sinais dos autos, veio recorrer da sentença proferida pelo Mm° Juiz do T.J.B. com a qual foi condenada pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um “crime de ofensa simples à integridade física”, p. e p. pelo art° 137°, n° 1 do C.P.M., na pena de multa de 45 dias, à taxa de MOP$100.00 por dia, perfazendo a multa global de MOP$4,500.00 ou 30 dias de prisão subsidiária.
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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou apresentando as seguintes conclusões:
“1. Em 14 de Agosto de 2006, por volta das 17H30, ocorreu-se no Casino Sands um caso de agressões. Logo no dia seguinte (15 de Agosto de 2006), os três arguidos foram inquiridos no Ministério Público.
2. Ao abrigo do art.º 315º do Código de Processo Penal, com a conciliação da 2ª arguida B (XX) e do 3º arguido C (XX), a MM.ª Juíza realizou a audiência de julgamento com a ausência dos mesmos.
3. Nos termos do art.º 338º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal, foram lidos os autos de inquirição elaborados pelo MºPº à 2ª arguida e ao 3º arguido.
4. Nos termos do art.º 127º, n.º 3 do Código de Processo Penal, os arguidos não precisam de prestar juramento.
5. A 2ª arguida declarou que a recorrente apenas bateu com a mão no braço dela, entretanto, não se apurou que a recorrente atacasse a cabeça da 2ª arguida.
6. Ao submeter à análise no Centro Hospitalar Conde de S. Januário, a referida arguida alegou que tinha a cabeça lesada, tal ferida desconforma com a parte do corpo em que foi atacada pela recorrente, nos termos das declarações por ela prestadas no MºPº.
7. Além das declarações da 2ª arguida, não existem quaisquer provas, incluindo testemunhas, que possam comprovar que a recorrente feriu a cabeça da 2ª arguida.
8. Não se apreciaram na audiência as contradições e os quesitos resultantes das provas supramencionadas. A 2ª arguida alegou que tinha sofrido ataque na cabeça, mas referiu simultaneamente nas suas declarações que a recorrente tinha agredido o seu braço. Ora, será que a recorrente foi quem causou directamente lesões na cabeça da 2ª arguida?
9. Segundo as declarações prestadas pela 2ª arguida, as lesões dela foram curadas no dia seguinte, mas foram ainda avaliadas por perito como ferida resultante da ofensa simples, com 3 dias de convalescença, revelando assim a existência de contradição e quesito entre a realidade e a avaliação do perito.
10. Pelo que a recorrente considerou que neste caso existia erro notório na apreciação da prova, padecendo de vício consagrado no art.º 400º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal.
11. Por outro lado, segundo o auto de visionamento de discos compactos elaborado pela P.J., constante de fls. 25 e 26 dos autos, conjugado com as declarações prestadas pela 2ª arguida, o caso não foi provocado pela recorrente, mas sim proveniente do acto irregular da 2ª arguida, ou seja, o conflito foi resultado dum embate corporal travado pela 2ª arguida contra a recorrente.
12. Consequentemente, deve-se atenuar especialmente a pena aplicada à recorrente, ao abrigo do art.º 66º, n.º 2, al. b) do Código Penal.
13. Pelo que se verifica que a sentença acima referida padece de vício consagrado no art.º 400º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Penal.”; (cfr., fls. 166 a 168 e 197 a 200)
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Respondendo, diz o Exm° Magistrado do Ministério Público que:
“1. A recorrente entendeu que, com base nas declarações da 2ª arguida, não se comprovou que a recorrente ferisse a cabeça daquela arguida.
2. Todavia, tal como referido na fundamentação da sentença a quo, para formar a convicção e, enfim, concluir que a recorrente causou contusão nos tecidos moles na parte lateral direita da testa da 2ª arguida, o Tribunal não só atendeu às declarações da 2ª arguida mas também viu na audiência o vídeo do decurso de agressões, bem como apreciou as provas documentais constantes dos autos.
3. A 2ª arguida referiu que as suas lesões foram curadas no dia seguinte, por isso, a recorrente considerou que o parecer do perito era incompatível com a realidade.
4. Ao contrário disso, a 2ª arguida declarou que a sua cabeça, testa e ao redor do olho direito apresentavam-se inchados e equimosados por ter sido agredida pela recorrente. Portanto, como era possível que essas lesões fossem curadas apenas num dia? Diagnosticou-se por clínico de medicina legal que a contusão nos tecidos moles na parte lateral direita da testa da 2ª arguida seria convalescida em 3 dias, sendo impossível que isto fosse incompatível com a realidade.
5. Não se verifica qualquer irregularidade se o Tribunal a quo admitir o parecer do clínico de medicina legal, ao abrigo do art.º 149º do Código de Processo Penal.
6. Mais, a recorrente considera que se deve atenuar especialmente a pena que lhe foi aplicada.
7. Contudo, à luz das declarações da recorrente e da 2ª arguida, houve um embate corporal entre elas por falta de espaço, em seguida, ambas iniciaram uma troca das palavras e acabaram por entrar em agressões. A par disso, a recorrente só confessou parcialmente os factos, pelo que não se reúnem as condições exigidas pelo art.º 66º do Código Penal para atenuar especialmente a pena.
8. Assim sendo, averigua-se a inexistência do vício referido pela recorrente.”; (cfr., fls. 172 e 201 a 202).
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Remetidos os autos a este T.S.I. e em sede de vista, emitiu o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Cinge a recorrente a sua alegação a assacado erro notório na apreciação da prova, por entender não se ter comprovado que tivesse agredido a 2ª arguida na cabeça, conforme imputado, pugnando ainda por especial atenuação da pena, devido ao facto de a desavença ter sido originada por aquela, tratando-se, pois, de provocação.
Não lhe assiste, porém, como é bom de ver, qualquer razão.
Como tem sido pacificamente entendido, o "erro notório na apreciação da prova" tem de ressaltar de forma patente e evidente, em termos de ser ostensivo que os julgadores erraram ao considerarem determinado facto como assente ou como provado, ou seja, que perante a decisão, de imediato se constate que o tribunal decidiu contra o que ficou provado ou não provado, ocorrendo esse erro quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se tirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável, acrescendo que, nos termos do art° 114° C.P.P.M., "Salvo disposição legal em contrário, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente".
No caso vertente não se divisa que tenham sido dados como provados factos incompatíveis entre si, ou que se tenham retirado de tais factos conclusões logicamente inaceitáveis, não competindo a este Tribunal censurar o julgador por ter formado a sua convicção neste ou naquele sentido, quando na decisão recorrida, confirmado pelo senso comum, nada contraria as conclusões alcançadas, as quais se mostram conformes, como bem acentua o Exmo colega junto da 1ª instância, não só com as declarações da própria ofendida, como do visionamento do vídeo atinente ao decurso das agressões e das provas documentais e periciais presentes no caso, vendo-se, pois, bem que com a sua alegação pretende a recorrente manifestar a sua discordância com a matéria de facto dada assente pelo tribunal, melhor dizendo, da interpretação que este faz dessa matéria no que tange à sua própria responsabilidade, limitando-se, em boa verdade, tão só a expressar a sua opinião “pessoalíssima” àcerca da apreciação e valoração da prova, quando, manifestamente, não se vê que do teor do texto da decisão em crise, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte patente, evidente, ostensivo que o julgador errou ao apreciar como apreciou, sendo certo que, conforme é fácil descortinar na sentença em causa, o mesmo teve a preocupação de expressar, reportando-se, inclusivé, especificamente aos diversos tipos de prova carreados para os autos, quais os motivos, quais os fundamentos em que alicerçaram a sua convicção, tratando-se, pois, de convicção que, embora pessoal, é objectivável e motivável, capaz de se impor.
Analisada, a decisão recorrida na sua globalidade, constata-se, pois ser a mesma lógica e coerente, não tendo o Tribunal decidido em contrário ao que ficou provado ou não provado, contra as regras da experiência ou em desrespeito dos ditames sobre o valor da prova vinculada ou das "legis artis", não passando a invocação do erro notório da apreciação da prova de uma mera manifestação de discordância no quadro do julgamento da matéria de facto, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame de direito.
Finalmente, quanto à almejada especial atenuação da pena, carece a mesma de qualquer consistência, já que, à luz do que foi dado como comprovado e que, como se viu, nada permite infirmar, a desavença entre a recorrente e a 2° arguida ocorreu "devido à questão de ocupação do lugar" na zona do casino "Sands", que não por "acto irregular" ou "embate corporal travado pela 2ª arguida contra a recorrente", conforme por esta última pretendido, razões por que se não descortina qualquer motivo válido que, à luz do previsto na al b) do n° 2 do art° 66°, CPM, permita concluir pela anunciada provocação, a justificar a pretendida atenuação especial da pena, sendo certo que a efectivamente aplicada se revela justa, adequada e proporcionada.
Daí que se nos afigure não merecer provimento o presente recurso.”; (cfr., fls. 205 a 207).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Vem dados como provados os factos seguintes:
“Em 14 de Agosto de 2006, por volta das 17H30, A (XXX) (1ª arguida) e B (XX) (2ª arguida) encontravam-se em discussões na zona 4 do Casino Sands, devido à questão de ocupação de lugar. A 1ª arguida deu palmadas à 2ª arguida e esta reagiu-se. A 1ª arguida causou lesões à 2ª arguida.
Na dada altura, C (XX) (marido da 2ª arguida, ora 3º arguido) reparou a situação e deu logo socos na cabeça e pontapés em diversas partes do corpo de A (XXX), fazendo com que a mesma caiu no chão e sofrendo ferimentos.
Ver os relatórios dos ferimentos e os pareceres do clínico de medicina legal de A (XXX) e de B (XX), constantes de fls. 10, 11, 64 e 65 dos autos, que, para os devidos efeitos jurídicos, aqui se dão por integralmente reproduzidos.
A 1ª arguida causou directa e necessariamente contusão nos tecidos moles na parte lateral direita da testa da 2ª arguida, com 3 dias de convalescença, provocando ofensa simples à integridade física da mesma (vide parecer do clínico de medicina legal de fls. 64 dos autos).
O 3º arguido causou directa e necessariamente escoriação nos tecidos moles na parte esquerda do rosto e rompimento no lábio inferior (0,5 cm) da 1ª arguida, com 5 dias de convalescença, provocando ofensa simples à integridade física da mesma (vide parecer do clínico de medicina legal de fls. 65 dos autos).
A 1ª arguida e o 3º arguido praticaram livre, voluntária, consciente e deliberadamente, o acto de ofensa à integridade física, agindo directa e necessariamente a ofensa simples à integridade física de outra pessoa.
A 1ª arguida e o 3º arguido sabiam perfeitamente que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Existe um processo pendente contra a 1ª arguida (CR1-08-0275-PCC).
Na audiência, a 1ª arguida confessou parcialmente os factos.
Mais se apurou a situação económica pessoal da arguida:
A arguida tem como habilitações literárias o ensino secundário complementar, exercia funções de croupier, auferindo o salário mensal de MOP$14.000,00.
Tem 3 filhos a seu cargo.”; (cfr., fls. 145-v e 146 e 189 a 190).
Do direito
3. Como se consignou em sede de exame preliminar, o presente recurso apresenta-se como manifestamente improcedente, sendo pois de rejeitar.
Passa-se a expor este nosso ponto de vista.
Entende a arguida, ora recorrente, que a sentença recorrida padece do vício de “erro notório na apreciação da prova” e que, excessiva é a pena, pois que merecia uma atenuação especial.
— Quanto ao “erro notório na apreciação da prova”.
Tem este T.S.I. entendido que:
“O erro notório na apreciação da prova existe quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”; (cfr., v.g., Ac. de 14.06.2001, Proc. n° 32/2001, do ora relator).
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 20.09.01, Proc. n° 141/2001, do ora relator).
E, perante isto, bem se vê que nenhuma razão tem a ora recorrente.
De facto, provado está que a mesma “deu palmadas à 2ª arguida” e que “causou directa e necessariamente contusão nos tecidos moles na parte lateral direita da testa da 2ª arguida, com 3 dias de convalescença”.
Nesta conformidade, e tendo também presente a fundamentação pelo Tribunal a quo exposta na sua decisão – onde se afirmou que “Com base nas declarações prestadas pela 2ª arguida e 3º arguido no Ministério Público que foram legalmente lidas na audiência de julgamento, mais, tendo efectuado rigorosamente a análise e comparação das declarações prestadas pela 1ª arguida e dos depoimentos dados pelas testemunhas, bem como, tendo visto o vídeo na audiência e apreciado as provas documentais constantes dos autos, este Tribunal formou a convicção. Na audiência, a 1ª arguida alegou que os seus ferimentos eram provocados pelo 3º arguido. O vídeo foi projectado repetitivamente por várias vezes na audiência, no qual se mostrou claramente a ocorrência dos factos.” – evidente é que limita-se a ora recorrente a sindicar a forma como o Tribunal apreciou a prova, afrontando o preceituado no art. 114° do C.P.P.M..
— Da “atenuação especial”.
Nos termos do art. 66° do C.P.M.:
“1. O tribunal atenua especialmente a pena, para além dos casos expressamente previstos na lei, quando existirem circunstâncias anteriores ou posteriores ao crime, ou contemporâneas dele, que diminuam por forma acentuada a ilicitude do facto, a culpa do agente ou a necessidade da pena.
2. Para efeitos do disposto no número anterior são consideradas, entre outras, as circunstâncias seguintes:
a) Ter o agente actuado sob influência de ameaça grave ou sob ascendente de pessoa de quem dependa ou a quem deva obediência;
b) Ter sido a conduta do agente determinada por motivo honroso, por forte solicitação ou tentação da própria vítima ou por provocação injusta ou ofensa imerecida;
c) Ter havido actos demonstrativos de arrependimento sincero do agente, nomeadamente a reparação, até onde lhe era possível, dos danos causados;
d) Ter decorrido muito tempo sobre a prática do crime, mantendo o agente boa conduta;
e) Ter o agente sido especialmente afectado pelas consequências do facto;
f) Ter o agente menos de 18 anos ao tempo do facto.
3. Só pode ser tomada em conta uma única vez a circunstância que, por si mesma ou em conjunto com outras, der lugar simultaneamente a uma atenuação especial da pena expressamente prevista na lei e à atenuação prevista neste artigo.”
E, como temos também entendido, “A atenuação especial da pena só deve ocorrer em situações “extraordinárias” e “excepcionais”, ou seja quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuida que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os elementos normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.”; (cfr., v.g., o Ac. de 07.06.2007, Proc. n° 235/2007).
“In casu”, e face à factualidade provada, cremos que motivos não haviam para se atenuar especialmente a pena, que se nos mostra justa e equilibrada, e, sendo assim o recurso manifestamente improcedente, impõe-se a sua rejeição.
Decisão
4. Nos termos que se deixam expostos, e em conferência, acordam rejeitar o recurso; (cfr., art. 409°, n° 2, al. a) do C.P.P.M.).
Pagará a arguida a taxa de justiça de 5 UCs, e, pela rejeição, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n° 4 do C.P.P.M.).
Macau, aos 8 de Julho de 2010
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
João A. G. Gil de Oliveira
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