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Processo nº 540/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. No Tribunal Judicial de Base, respondeu, em audiência de julgamento, A, com os sinais dos autos, vindo a ser declarada autora de 4 contravenções ao disposto no n° 1 do art. 31° da Lei n° 3/2007 (“Lei do Trânsito Rodoviário”), e dado que pagas estavam as multas pelas mesmas, foi, nos termos do art. 98°, n° 4 da mesma Lei, condenada na inibição de condução pelo período de 1 mês em relação a cada uma das contravenções, e, em cúmulo, em 4 meses de inibição de condução; (cfr., fls. 25 a 26).

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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou para, a final, concluir nos termos seguintes:
“I. A inibição de condução prevista no n.° 4 do artigo 98.° da LTR consubstancia-se numa sanção ou pena acessória, aplicada como complemento à pena de multa principal ali estatuída;
II. As penas acessórias constituem verdadeiras penas, com a particularidade de estarem formalmente dependentes da pena principal e de serem material ou substancialmente condicionadas à existência de um conteúdo de ilícito que justifica a censura adicional ínsita na sua aplicação;
III. As penas acessórias visam, por isso, garantir uma maior eficácia na punição do delinquente em específicos tipos criminais ou contravencionais, para os quais as penas de natureza detentiva ou pecuniária são insuficientes e, só indirecta ou complementarmente, actuam ao nível da prevenção da perigosidade;
IV. Por isso, a medida concreta da pena acessória deverá ser encontrada em função dos mesmos critérios que o legislador prevê para a pena principal, mormente do disposto nos artigos 40.° e 65.° do Código Penal de Macau, aplicáveis ex vi do disposto no artigo 83.° da LTR;
V. Diferença substancial que distingue a pena do artigo 94.° da LTR das "medidas de segurança" previstas no n.° 5 do artigo 96.° e n.°s 1 e 2 do artigo 108.° da mesma Lei, para cuja aplicação e determinação concreta estão apenas em causa exigências relacionadas com a perigosidade do agente;
VI. A aplicação do sistema do cúmulo jurídico às penas acessórias é o que melhor se coaduna com os princípios da culpa, igualdade e proporcionalidade, exigido pelos princípios para-constitucionais e legais vigentes e aplicados na determinação concreta da medida da pena;
VII. Só a aplicação das regras do cúmulo jurídico evitará o risco de se atingir uma gravidade exponencial, com a aplicação de penas acessórias de inibição de condução manifestamente desadequadas e excessivas, afastadas dos limites consentidos pela culpa;
VIII. Apenas o cúmulo jurídico tem a possibilidade de apartar critérios rígidos ou regras formais, em favor de princípios de justiça material que não poderão deixar de conformar o Direito Penal moderno de Regiões civilizadas, como a RAEM;
IX. Pelo exposto, salvo melhor opinião, e sempre com muito respeito pela decisão recorrida, decidindo como decidiu, o Mmo. Juiz do Tribunal a quo não fez uma correcta interpretação da lei, violando o disposto no n.° 4 do artigo 98.° da LTR e, bem assim, nos n.°s 1 e 2 do artigo 71.° do Código Penal de Macau;
X. A suspensão da execução da pena de inibição de condução não significa a dispensa de pena, mas outrossim a sustação temporária daquela sanção;
XI. Ao determinar que a suspensão da execução da sanção fica dependente da existência de "motivos atendíveis", o legislador quis ir mais além do que meras necessidades laborais ou económicas decorrentes da titularidade da licença de condução do transgressor;
XII. De outra maneira teria feito depender a suspensão da execução, não de "motivos atendíveis", mas das suas condições laborais ou profissionais;
XIII. Na ponderação dos motivos atendíveis a que alude o n.° 1 do artigo 109.° da L TR, deverá o julgador atender, mutatis mutandis, às circunstâncias previstas nas alíneas do n.° 2 do artigo 65.° do Código Penal de Macau.”

A final, pede o provimento do recurso e, em consequência, a revogação da decisão recorrida, substituindo-a por outra que, contemplando o teor das alegações expendidas e conclusões apresentadas, reduza a pena acessória de inibição de condução, em cúmulo jurídico, a um mês, mais se determinando a suspensão da sua execução por um período de 6 meses.; (cfr., fls. 48 a 63).

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Respondendo, afirma o Digno Magistrado do M°P° que:
“1- O art. 71° no. 2 do CPM prevê que o instituto de cúmulo jurídico só aplica às pena de prisão e multa;
2- Não há qualquer outra norma que prevê a aplicabilidade do cúmulo jurídico para a inibição de condução mormente na Lei do Trânsito Rodoviário;
3- A jurisprudência entende que "Só se coloca a hipótese de suspensão da interdição da condução, caso o agente seja um motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos, até porque os inconvenientes a resultar, para o agente, da execução dessa pena acessória não podem constituir causa atendível para a suspensão da execução da mesma, posto que toda a interdição da condução irá implicar naturalmente incómodos não desejados pelo condutor na sua vida quotidiana".
Nesses termos e nos demais de direito deve Vossas Excelências Venerando Juizes rejeitar liminarmente o recurso por ser manifestamente improcedent fazendo a habitual”; (cfr., fls. 67 a 69).

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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Acompanham-se as judiciosas considerações do Exmo colega junto da 1ª Instância que, por ocioso, nos dispensaremos de reproduzir, que atestam, plenamente, a falta de fundamento do alegado e pretendido pela recorrente.
É que, por uma banda, não se descortina possibilidade legal de aplicabilidade do instituto do cúmulo jurídico para a inibição de condução, designadamente na Lei de Trânsito Rodoviário, sendo que o n° 2 do art° 71 ° CPM se reporta expressamente às penas de prisão e multa, enquanto, por outra, não se nos afigura apresentar o caso vertente da recorrente contornos passíveis de configurar os "motivos atendíveis" a que se reporta o art° 109° LTR, pois que a alegada necessidade do transporte diário dos seus filhos para a escola, da Taipa para Macau se apresenta como mero inconveniente, transtorno ou incómodo quotidiano, a resultarem, com normalidade, de toda a interdição de condução, não contendendo com o modo essencial de vida ou até com o sustento próprio ou familiar, como aconteceria se se tratasse de condutor ou motorista profissional, únicas hipóteses a que a jurisprudência tem atendido para aqueles efeitos.
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, somos a entender não merecer provimento o presente recurso.”; (cfr., fls. 76 a 77).

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Nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos descritos – e não impugnados – na sentença recorrida que aqui se dão como reproduzidos para todos os efeitos legais; (cfr., fls. 25 a 25-v).

Do direito

3. Como se colhe das alegações e conclusões atrás transcritas, pede a ora recorrente que “se reduza a pena acessória de inibição de condução, em cúmulo jurídico, a um mês, mais se determinando a suspensão da sua execução por um período de 6 meses”; (cfr., fls. 48 a 63).

Merecendo o recurso conhecimento, vejamos se merece provimento.

— Quanto ao “cúmulo jurídico”.

A questão está em saber se as penas de inibição de condução aplicadas à ora recorrente (pelo cometimento de cada uma das 4 contravenções ao art. 31° da L.T.R.) são (juridicamente) cumuláveis nos termos estatuídos no art. 71° do C.P.M..

A sentença recorrida não explicita se a pena única de 4 meses de inibição de condução imposta à ora recorrente foi o resultado de um “cúmulo jurídico” ou “material”.

Seja como for, posta que está a questão, e pretendendo a recorrente a redução da aludida pena, há que apreciar.

A tanto se passa.

Preceitua o art. 71° do C.P.M. que:
“1. Quando alguém tiver praticado vários crimes antes de transitar em julgado a condenação por qualquer deles, é condenado numa única pena, sendo na determinação da pena considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
2. A pena aplicável tem como limite máximo a soma das penas concretamente aplicadas aos vários crimes, não podendo ultrapassar 30 anos tratando-se de pena de prisão e 600 dias tratando-se de pena de multa, e como limite mínimo a mais elevada das penas concretamente aplicadas aos vários crimes.
3. Se as penas concretamente aplicadas aos crimes em concurso forem umas de prisão e outras de multa, é aplicável uma única pena de prisão, de acordo com os critérios estabelecidos nos números anteriores, considerando-se as de multa convertidas em prisão pelo tempo correspondente reduzido a dois terços.
4. As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”

Face ao assim estatuído, é o Ministério Público de opinião que viável não é a pretensão apresentada, argumentando nos termos que atrás já se deixou retratado, isto é, dado que o n° 2 do dito art. 71° se reporta expressamente às “penas de prisão e multa”.

Admitindo-se que a questão comporte outro entendimento – que se respeita – não nos parece a melhor solução.

Aliás, a matéria foi já objecto de alguma elaboração doutrinária, nomeadamente, de um estudo do Prof. José de Faria Costa que se pronúncia no sentido agora pretendido pela recorrente.

Mostrando-se-nos de acolher as considerações tecidas pelo insigne jurisconsulto, (cfr., “Penas acessórias: cúmulo jurídico ou cúmulo material”, estudo publicado na R.L.J., Ano 36°, n° 3945 Julho-Agosto 2007, pág. 323 e segs), aqui se passa a tentar justificar a opção tomada.

Ora, é sabido que a inibição de condução, sendo uma “pena acessória”, não deixa de ser uma verdadeira “pena”, consequência jurídica de factos típicos com relevância penal.

Contrapõe-se às “penas principais dado que estas são pelo legislador previstas como forma mínima de resposta a um crime, enquanto que aquelas, as “penas acessórias”, e pelo menos, em conformidade com o seu regime geral, poderão não ser aplicadas, dependendo da sua necessidade face ao caso concreto.

Dito isto, importa agora ponderar na razão de ser do preceituado no art. 71° do C.P.M. que determina o “cúmulo jurídico” (e não material ou aritmético) das penas.

Sem se querer entrar aqui em grandes elaborações hermenêuticas por não nos parecer o local próprio, (pois que os Tribunais não são Academias), diríamos desde já que o sistema do cúmulo jurídico é o que melhor permite uma visão global da personalidade do arguido, dos factos praticados, assim como do seu desvalor.

Como afirma o Prof. Faria Costa (no citado estudo), “Apenas efectuando um exame dos factos em conjunto é que podemos avaliar a gravidade do ilícito. Apenas efectuando um exame dos factos em conjunto podemos perscrutar a ligação que os factos ilícitos isolados mantêm uns com os outros. Só através do cúmulo jurídico é possível, enfim, proceder à avaliação da personalidade do agente, e dessa maneira, perceber se se trata de alguém com tendências criminosas, ou se, ao invés, o agente está a viver uma conjuntura criminosa cuja razão de ser não radica na sua personalidade, mas antes em factores exógenos, Só assim é possível chegar à pena justa. Ou seja: através do sistema do cúmulo jurídico a culpa é adequadamente valorada, e em consequência, a pena encontrada, é inquestionavelmente, mais justa.”

Com efeito, e parafraseando ainda o mesmo Autor na abordagem da questão em relação às penas acessórias, só deste modo se consegue uma “verdadeira individualização da sanção penal que não seja redutora da complexidade do caso concreto, encaminhado-se, então para uma pena acessória justa porque respeitadora dos princípios da igualdade e da proporcionalidade.”.

Na verdade, se o regime do art. 71° do C.P.M. se aplica também às “contravenções” – cfr., o n° 1 do art. 124° do C.P.M. e art. 83°, n° 1 da L.T.R., – e se aquele que é punido com penas principais parcelares pela prática, em concurso real, de vários crimes, e com o desvalor que merece, pode, ainda assim, “beneficiar” do sistema do cúmulo jurídico, motivos não vemos para que assim não suceda em relação às “penas acessórias”; (cfr., também no sentido da possibilidade do cúmulo jurídico em relação às penas acessórias de inibição de condução, o Ac. da Rel. de Lisboa de 25.06.2003, Rec. n° 2030/03, e do S.T.J. de 21.06.2006, Proc. n° 06P1914, e, G.M. da Silva in “Direito Penal Português, Vol. I., pág. 146 e segs.).

Poder-se-à dizer – como parece suceder – que o previsto no n° 4 do art. 71° do C.P.M. constitui obstáculo legal à solução encontrada, pois que aí, se prescreve que:
“As penas acessórias e as medidas de segurança são sempre aplicadas ao agente, ainda que previstas por uma só das leis aplicáveis.”

Não se nos mostra porém de subscrever tal entendimento, pois que com o assim estatuído, e em nossa opinião, mais não terá pretendido o legislador que clarificar que o cúmulo jurídico das penas principais não “absorve” (ou “consome”) as penas acessórias, não nos parecendo assim que o comando em questão impeça o cúmulo jurídico destas mesmas penas.

— Aqui chegados, continuemos, passando-se a apreciar se excessiva é a pena de 4 meses de inibição de condução aplicada à ora recorrente.

Ora, atento o estatuído no mencionado art. 71°, temos entendido que:
“Na determinação da pena única resultante do cúmulo jurídico são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente.
Na consideração dos factos, ou melhor, do conjunto dos factos que integram os crimes em concurso, está ínsita uma avaliação da gravidade da ilicitude global, que deve ter em conta as conexões e o tipo de conexão entre os factos em concurso.
Por sua vez, na consideração da personalidade – que se manifesta na totalidade dos factos – devem ser avaliados e determinados os termos em que a personalidade se projecta nos factos e é por estes revelada, ou seja, importa aferir se os factos traduzem uma tendência desvaliosa, uma tendência para a prática do crime ou de certos crimes, ou antes, se reconduzem apenas a uma pluriocasionalidade que não tem raízes na personalidade do agente.”; (cfr., v.g., o Ac. de 26.04.2007, Proc. n° 181/2007).

Tendo presente o assim considerado, que se mostra de manter, ponderando na factualidade provada, de onde se realça o facto de ter a ora recorrente efectuado o pagamento das multas respectivas de forma voluntária, atenta a moldura penal em causa – de 1 a 4 meses – e as necessidades de prevenção especial e geral, cremos que justa e adequada é a pena única de 2 meses e 15 dias de inibição de condução.

— Quanto à pretendida “suspensão da execução” desta pena única, afigura-se-nos que censura não merece a decisão recorrida.

De facto, repetidamente tem este T.S.I. afirmado que:
“Toda a interdição da condução irá implicar naturalmente incómodos não desejados pelo condutor assim punido no seu dia-a-dia.”; (cfr., o Ac. de 30.04.2009, Proc. n° 743/2008), e que, “Só se coloca a hipótese de suspensão da interdição da condução, caso o agente seja um motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos, até porque os inconvenientes a resultar, para o agente, da execução dessa pena acessória não podem constituir causa atendível para a suspensão da execução da mesma, posto que toda a interdição da condução irá implicar naturalmente incómodos não desejados pelo condutor na sua vida quotidiana.”; (cfr., o Ac. de 19.03.2009, Proc. n° 717/2008).

Nesta conformidade, inexistindo, no caso, “motivo atendível” para se decidir pela peticionada suspensão, (cfr., art. 109°, n° 1 da L.T.R.), na parte em questão, improcede o recurso.

Decisão

4. Em face do que se tentou deixar esclarecido, acordam julgar parcialmente procedente o recurso, ficando a recorrente condenada na pena (única) de 2 meses e 15 dias de inibição de condução.

Pelo seu decaimento pagará a recorrente a taxa de justiça de 3 UCs.

Macau, aos 22 de Julho de 2010

José Maria Dias Azedo
(Relator)

João A. G. Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)

Chan Kuong Seng (vencido nos termos da declaração junta).
(Primeiro Juiz-Adjunto)







Declaração de voto ao Acórdão de 22 de Julho de 2010 do
Tribunal de Segunda Instância no
Processo n.º 540/2010
Em relação ao Acórdão acabado de ser emitido hoje por este Colectivo do Tribunal de Segunda Instância no seio dos presentes autos de recurso penal n.o 540/2010, emergentes do processo contravencional n.o CR1-09-0759-PCT do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, em que é recorrente A, lavro esta declaração de voto vencido, por discordar do entendimento maioritário assumido conjuntamente pelos Mm.os Juiz Relator e Segundo Juiz-Adjunto segundo o qual há lugar ao cúmulo jurídico das quatro inibições de condução, então aplicadas pelo idêntico período mínimo de um mês a essa arguida pelo Mm.o Juiz a quo no referido processo contravencional, por cometimento, por ela, de quatro actos de condução automóvel com excesso de velocidade, p. e p. pelo art.o 98.o, n.o 4, da vigente Lei do Trânsito Rodoviário (Lei n.o 3/2007, de 7 de Maio).
Na verdade, entendo, tal como concluiu o Ministério Público nas duas Instâncias, que deve ser julgado totalmente improcedente o recurso interposto pela arguida, que preconizou principalmente, com veemência na sua motivação, a aplicabilidade do instituto de cúmulo jurídico às quatro inibições de condução em questão, a fim de pedir a revogação da sentença recorrida que lhe tinha imposto finalmente quatro meses totais de inibição de condução (como resultante do cúmulo material das quatro inibições identicamente graduadas no período mínimo de um mês em face da confissão integral e sem reservas dos factos), e a substituição dessa decisão por uma outra que reduzisse “a pena acessória de inibição de condução, em cúmulo jurídico, a um mês”, com simultânea determinação da “suspensão da sua execução por um período de 6 meses”.
É que, desde logo, e a montante falando, estou seguramente convicto de que sob a égide do direito penal actualmente positivado no ordenamento jurídico de Macau:
– 1) Só a pena de prisão e a pena de multa é que podem desempenhar o papel de pena principal criminal (cfr. o previsto no Capítulo II do Título III do Livro I do Código Penal de Macau (CP), ou seja, nos art.os 41.o a 59.o deste Código);
– 2) E só a pena de prisão e a pena de multa (incluindo a pena de multa em alternativa a que se refere, em geral, o art.o 64.o do CP, e a pena de multa cumulativa prevista em lei penal avulsa) é que podem ser objecto de cúmulo jurídico – cfr. as regras dos n.os 2 e 3 do próprio art.o 71.o do CP, em confronto com a disposição expressa do n.o 4 do mesmo artigo, segundo a qual <> (com sublinhado só agora posto).
E no sentido de saber quais as penas é que podem entrar no cúmulo jurídico sob a égide do art.o 71.o do CP, vide a tese tida por ideal pelo Professor JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, in DIREITO PENAL PORTUGUÊS – AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME, Aequitas e Editorial Notícias, 1993, págs. 289 a 290, §418, tese essa que, aliás, veio a ser posta na prática materialmente no n.o 3 do art.o 71.o do CP.
Nota-se, entrementes, que a isto não se pode opor com o argumento de que o n.o 4 do art.o 71.o não afasta, por si, a possibilidade de as penas acessórias e as medidas de segurança entrarem também no cúmulo jurídico, desde que não sejam absorvidas totalmente na pena única ou conjunta a sair do cúmulo. Não pode, de facto, proceder este tipo de argumentação, porquanto, para já, as regras concretas de cúmulo jurídico plasmadas nos n.os 2 e 3 do art.o 71.o do CP se destinam tão-só, em preto e branco, ao cúmulo jurídico entre (na 1.a hipótese) as penas de prisão apenas, ou entre (na 2.a hipótese) as penas de multa apenas, ou entre (na 3.a e última hipótese) as penas de prisão e as penas de multa (depois de estas serem, para o efeito, obrigatória e previamente convertidas em penas de prisão), e por outra banda, tal como ensina o mesmo Distinto Professor Catedrático, ibidem, pág. 292, último parágrafo, <> (com sublinhado só agora posto). E é por aí que se vê que o n.o 4 do art.o 71.o do CP tem toda a sua razão autónoma de ser.
Assente, assim, que está que somente as penas de prisão e/ou de multa criminais podem entrar no cúmulo jurídico, há que cair por terra a pretensão de possível operação de cúmulo jurídico, por alegado aval do corpo principal da regra do n.o 1 do art.o 124.o do CP, das quatro inibições de condução, todas já fixadas no seu período mínimo legal de um mês, por que vinha já condenada a recorrente pelo Mm.o Juiz a quo no âmbito do subjacente processo contravencional, por quatro actos provados de condução automóvel com excesso de velocidade: É que estando já líquido que mesmo no processo por crime, só as penas de prisão e/ou de multa podem ser objecto de cúmulo jurídico nos termos das regras ditadas no art.o 71.o do CP, a invocação, para o processo contravencional, por pretensos efeitos do dito n.o 1 do art.o 124.o do CP, das mesmas regras (sobretudo do n.o 2 do art.o 71.o) de cúmulo jurídico próprias do processo penal hoc sensu, é totalmente inócua para abonar a tese de cúmulo jurídico das aludidas inibições de condução aplicadas à arguida recorrente no processo contravencional, mas, ao invés, já ajuda, até, a sustentar ou demonstrar a impossibilidade legal de proceder ao cúmulo jurídico dessas mesmas inibições de condução.
E agora cabe afirmar, a jusante, com vista a fechar o ciclo da discussão académica sobre o assunto de cúmulo das penas no processo contravencional, que nem é possível proceder ao cúmulo jurídico das multas contravencionais, por exemplo, aplicadas por infracção ao art.o 98.o da Lei do Trânsito Rodoviário (LTR), uma vez que há realmente disposição em contrário, ressalvada na parte inicial da norma do n.o 1 do art.o 124.o do CP, a afastar a aplicação subsidiária ao processo contravencional, das regras de cúmulo jurídico das multas criminais dos n.os 1 e 2 do art.o 71.o do CP, qual seja, todo o bloco de normas especiais, por exemplo, constantes dos art.os 130.o, 131.o, 132.o e 133.o, alíneas 2), e 3), da mesma LTR, que consagram o instituto de pagamento voluntário de multas contravencionais “pelo valor mínimo cominado para a multa”, normas especiais essas que também se encontram expressamente tuteladas na parte final do n.o 1 do art.o 83.o da própria LTR.
De facto, se valesse a tese de cúmulo jurídico das inibições de condução aplicadas, por exemplo, em sede do art.o 98.o, n.o 4, da LTR, então, na economia dessa tese, já se tornaria mister proceder também ao cúmulo jurídico das multas contravencionais previstas, por exemplo, no mesmo preceito da LTR (posto que não se justificaria o não cúmulo jurídico das multas contravencionais principais, enquanto já se defenderia o cúmulo jurídico das penas contravencionais acessórias de inibição de condução). Mas, se assim fosse, então de futuro, nenhum eventual infractor confitente, por exemplo, do n.o 4 do art.o 98.o da LTR, estaria disposto a pagar voluntariamente, pelo respectivo valor mínimo, qualquer das duas ou mais multas contravencionais aí cominadas e em que teria vindo a ficar incurso, mas sim apenas disposto a ver remetidos os autos ao tribunal competente para julgamento, pois em sede do qual iria conseguir muito provavelmente o “benefício” de lhe vir judicialmente aplicada uma multa única achada em cúmulo jurídico, em montante inferior à soma matemática do valor mínimo de duas ou mais multas em questão. E nesses circunstancialismos, a gente até poderia ter também pena da própria arguida ora recorrente, que já pagou voluntariamente, pelo respectivo valor mínimo cominado, todas as quatro multas singulares contravencionais previstas no art.o 98.o, n.o 4, da LTR.
Por aí se antevê, portanto, os seguintes efeitos secundários da tese que se fez vencimento no Acórdão acabado de ser lido, naturalmente não desejados pelo legislador contravencional:
– ela irá acabar com a alicerce do instituto de pagamento voluntário das multas contravencionais, traduzida precisamente no estímulo, criado pelo legislador contravencional, e dirigido ao infractor confitente, de proceder ao pagamento voluntário da multa, em troca do inegável benefício de evitar a eventual condenação, pelo tribunal competente, em multa a final graduada em montante superior ao do mínimo cominado para a multa;
– e, às páginas tantas, se a Polícia de Trânsito levasse também essa tese vencedora até às suas últimas consequências possíveis, então haveria lugar à flagrante injustiça relativa no procedimento de pagamento voluntário da multa contravencional, entre o infractor de uma só contravenção e outro infractor de mais do que uma contravenção do mesmo tipo: ambos pagariam, na prática, e pela regra da liquidação da multa pelo seu valor mínimo legalmente cominado (“e à luz das regras de cúmulo jurídico do n.o 2 do art.o 71.o do CP”), um mesmo montante concreto mínimo a título de multa (embora para o primeiro, a título de uma só multa singular, e para o outro, a título de multa única resultante do cúmulo jurídico das multas singulares, todas elas fixadas no seu mínimo legal), o que acarretaria, por outro lado, um “estímulo” – evidentemente não desejado pelo legislador contravencional – para o potencial infractor confitente ficar indiferente quanto ao número de contravenções, já que no caso de pagamento voluntário, o infractor de mais do que uma contravenção acabaria por ter que pagar tão-só um mesmo montante total concreto do que o infractor de uma só contravenção do mesmo tipo, sendo certo que esse “benefício” – naturalmente também não querido pelo legislador contravencional – de que gozaria o infractor de mais do que uma contravenção, seria tanto maior quanto maior fosse o número de contravenções em que ficaria incurso…
E é por este outro prisma que se pode constatar lateralmente que a tese saída vencedora no Acórdão emitido no presente processo também não atendeu à seguinte máxima na interpretação de normas jurídicas, materialmente subjacente ao art.o 8.o, n.o 1, do vigente Código Civil: Quem aplica uma norma, está a aplicar todo o sistema.
Não obstante, já concordo com o entendimento de que os motivos invocados pela arguida recorrente não constituem nenhum motivo ponderoso para efeitos de almejada determinação da suspensão da execução da inibição de condução.
Em suma, opino que é de manter, na íntegra, a decisão recorrida, por estar totalmente legal e muito justa ante o direito presentemente positivado.
Macau, 22 de Julho de 2010.
               O primeiro juiz-adjunto,
                
                Chan Kuong Seng

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