Processo nº 198/2010
(Autos de recurso contencioso)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. A, portador do Passaporte da RPC n.° XXX e com os restantes sinais dos autos, veio recorrer do despacho pelo EXM° SECRETÁRIO PARA A SEGURANÇA proferido em 12.01.2010 que confirmou a decisão proferida pelo Exm° Comandante do C.P.S.P. e com a qual se determinou a interdição da sua entrada em Macau pelo período de 3 anos.
Em sede de conclusões, afirma o recorrente que:
“1. O despacho recorrido manteve a decisão do CPSP de Macau, isto é, verifica-se nos recurso contenciosos, os fortes indícios a respeito da violação das disposição sobre crime de usura pelo recorrente que foi submetido à denuncia criminal, e para isso, ordenou-se a interdição da entrada da referida pessoa na RAEM por três anos.
2. Para além de devido respeito, inconformado com o despacho recorrido, o recorrente interpôs o recurso contencioso.
3. Em primeiro lugar, tendo em conta o artigo 29.° da Lei Básica de Macau e o artigo 49.° n.° 2 do CPPM, o despacho recorrido violou manifestamente o princípio de presunção de inocência.
4. Pelo que o despacho recorrido cometeu o 'erro na qualificação do facto ilícito típico do crime imputado ao recorrente, e deste modo, padeceu do vício da violação das disposições legais. Ao abrigo do artigo 124.° do CPAM, cabe ao Tribunal declarar anular a sentença.
5. Mais, sem factos suficientes, o despacho recorrido interpretou erroneamente a noção de fortes indícios, assim cometeu o vício de violação das disposições legais. Nos termos do artigo 124.° do CPAM, compete ao Tribunal declarar a anulação.
6. Por fim, o despacho recorrido violou manifesta e grosseiramente os devidos princípios de proporcionalidade e de adequação. Isto é, violou o artigo 5.° n.° 2 do CPAM, deste modo contém o vício da violação das disposições legais. Deve, nos termos do artigo 124.° do CPAM, ser declarada anulada pelo Tribunal'”; (cfr., fls. 2 a 7 e 39 a 49).
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Em contestação, afirma a entidade recorrida o que segue:
“1.° O recorrente vem impugnar a decisão do Secretário para a Segurança, de 12/01/2010, que confirmou a aplicação da medida de interdição de entrada pelo período de 3 anos, com fundamento no perigo para a segurança e ordem públicas que nele se potencia por virtude da existência de fortes indícios da prática de vários crimes.
2.° Alegando fundamentalmente que a mesma decisão se mostra inquinada do vício de violação de lei, por ofensa do princípio da presunção da inocência (erro nos pressupostos de facto), por "erro no conceito legal de fortes indícios" e por violação do princípio da proporcionalidade.
3.° Conforme consta da participação do CPSP ao Ministério Público e da informação do Cmdt. do CPSP (no âmbito do recurso hierárquico) ambas de fls. do processo instrutor, o recorrente foi detido em flagrante e com fortes indícios de ter praticado e se preparar para a prática de diversos crimes.
4.° É inquestionável o nível indiciário elevado, forte, da prática dos imputados crimes, pelo recorrente, consubstanciado desde logo na detenção em flagrante (com evidentes actos materiais e preparatórios de crimes) e em todo o circunstancialismo e prova indiciária contemporâneos e posteriores à detenção.
5.° Indícios esses que mostram que o propósito da deslocação do recorrente a Macau não é, claramente, enquadrável nos fins (v.g. turismo, visita familiar) a que se dirige a autorização de entrada e permanência de um não residente, mas manifestamente a prática de actos, com intuitos lucrativos, por meios ilícitos e criminosos.
6.° E que potenciam na pessoa do recorrente uma manifesta ameaça para a segurança e ordem públicas e fazem com que a sociedade se sinta ameaçada e tema pela prática futura de crimes da mesma ou idêntica natureza.
7.° E por isso é aplicada a medida administrativa da interdição de entrada, nos termos consentidos pelas disposições conjugadas dos art.°s 4.° da Lei n.° 4/2003 e 11.° e 12.° da Lei n.° 6/2004 exactamente com o fim de acorrer aos casos, como o presente, em que a sociedade se vê lesada e ameaçada de forma grave e criminalmente punível.
8.° Se bem que o processo administrativo, designadamente sancionatório rectius "de segurança" encontre bastantes parecenças e inspirações no processo penal, ele não é totalmente norteado por este, nem legal nem doutrinariamente.
9.° E isto simplesmente porque pese embora a existência de assinaláveis semelhanças, são contudo manifestamente diferentes os objectivos prosseguidos por ambos e sobretudo incomparáveis as penas e as medidas administrativas "de segurança", em termos de política social, penosidade e quanto aos seus fins.
10.° E daí que em sede de processo administrativo a lei (disposições conjugadas dos art.°s 4.°, da Lei n.° 4/2003, e 11.° e 12.° da Lei n.° 6/2004) permita a aplicação das medidas quer por factos a que não correspondem tipos legais de crime quer por apenas indícios da prática de factos criminosos quer ainda por indícios da preparação/intenção da prática de crimes na RAEM.
11.° Donde se conclui, pacificamente aliás, pela inaplicabilidade ao caso em apreço do princípio da presunção da inocência nos termos e com os efeitos com que o mesmo é valorizado em matéria processual penal.
12.° O acto administrativo impugnado, em face das circunstâncias do caso aqui e no processo instrutor descritas, é adequado uma vez que se mostra apropriado para a prossecução do interesse público consubstanciado na defesa da segurança e ordem públicas.
13.° É igualmente necessário uma vez que se traduz no único meio (aliás legalmente consagrado para esse fim) de prosseguir a defesa do interesse público da forma menos inconveniente para o interesse individual privado.
14.° E é também proporcional em sentido estrito porque totalmente contido nos limites, que são amplos, da "justa medida" para o alcançar dos fins pretendidos.
15.° Concluindo-se, pelo exposto, não ser assacável ao acto administrativo recorrido qualquer dos vícios alegados pelo recorrente, devendo por isso considerar-se o mesmo inteiramente válido e eficaz”; (cfr., fls. 23 a 26).
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Oportunamente, juntou o Exm° Representante do Ministério Público douto Parecer pugnando pela improcedência do recurso; (cfr., fls. 54 a 55).
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Consideram-se assentes os seguintes factos com interesse para a decisão a proferir:
– por despacho do Exm° Comandante do C.P.S.P. decidiu-se interditar a entrada em Macau de, A, ora recorrente, por um período de 3 anos;
– em sede do recurso hierárquico do assim decidido, elaborou-se a seguinte:
“INFORMAÇÃO
ASSUNTO: Recurso Hierárquico
RECORRENTE: A
TERMOS LEGISLATIVOS: Artº 159º do CPA
1. O recorrente, turista/visitante da RPC, titular à altura dos factos do SC nº XXX, vem impugnar o despacho através do qual lhe foi aplicada a medida de interdição de entrada na RAEM por 3 anos, juntando em síntese para o efeito, os seguintes fundamentos:
2. Que ainda não há acusação ou pronúncia sobre o seu caso; E que também o acto violou o disposto no nº 2 do artº 5º do CP A - Princípio da proporcionalidade,
3. requerendo assim, a suspensão do acto e a revogação do mesmo.
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4. Conforme consta da Participação nº 8995 do C3, de 21.AGO.09 e Participação nº 2600 do SACO/Dinfo com a mesma data, apurou-se o seguinte:
5. Que a vítima, de nome B, pediu a intervenção de policial que estava junto ao hall do Hotel Rio, participando que um dos indivíduos de um grupo que apontou, detinha a sua mala que continha de entre outras coisas, os seus documentos de identificação e viagem.
6. Dessa intervenção policial (do agente que se encontrava ali em patrulha gratificada) resultou a detenção de dois indivíduos (os restantes fugiram) : O recorrente e um outro indivíduo de nome C.
7. Nas instalações do DINFO, a vítima veio a denunciar que tinha perdido o seu dinheiro a jogar no Casino Sands, e que posteriormente fora abordada por dois indivíduos que lhe propuseram um empréstimo para jogo : HKD$ 20.000, que só lhe entregaram 19.000 e + 15% por cada jogada efectuada, e ficaram com a sua mala detida.
8. Por volta das 11.00 horas da manhã do dia 21.AGO.09, a vítima acabou por perder todo o dinheiro, e grupo de indivíduos levaram-lhe para o hall do Hotel Rio, para a vigiar e que tratasse de arranjar forma de pagar a dívida.
9. Até que às 15.00 horas, já não aguentando mais a vítima pediu a referida intervenção policial.
10. O recorrente negou as acusações de acompanhamento da Vítima nas jogadas no casino e vigilância no hotel, o que é desmentido pelas fotografioas extraídas das câmaras de vigilância junto aos autos, mas o seu camarada de trabalho (também detido e que interceptado com a mala da vítima), afirmou que o seu patrão lhe ordenara a ele e ao recorrente que vigiassem a vítima.
11. Assim, perante estes fortes indícios de comparticipação na prática do crime de usura e tentativa de sequestro consubstanciada na retenção dos documentos da vítima, decidiu-se a aplicação da presente medida de interdição, a qual é proporcional aos efeitos que se querem atingir - o afastamento da RAEM por um determinado período, de um visitante que tinha a plena consciência que a sua conduta era ilegal e que estava a violar os termos da autorização de permanência que lhe foi concedida.
12. Assim, além da medida de interdição ser proporcional aos fins acima que se querem obter com ela, e ser um meio de reacção das autoridades contra aqueles que a coberto de vistos para turismo aqui se deslocam para desenvolver actividades ilícitas,
13. considera-se igualmente que o despacho que a aplicou, não sofre de qualquer vício que possa levar à sua anulabilidade, e assim não deve ser concedido provimento ao recurso interposto, mantendo-se a medida em vigor.
14. Por outro lado, também não deve ser concedida a suspensão da eficácia do acto, uma vez que a medida se encontra em vigor e pelos motivos expostos causaria grave prejuízo ao interesse público se agora se autorizasse a presença do recorrente, que como se viu põe em risco a ordem e a segurança públicas.
15. À consideração de V.Exa..
CPSP, aos 21 de Dezembro de V. Exa..
– apreciando o referido recurso, proferiu o Exm° Secretário para a Segurança o seguinte:
“DESPACHO
Assunto: Recurso hierárquico necessário
Reqte.: A
Concordo com o despacho e a informação do Cmdt. do CPSP de 16/11/2009 e 21/12/2009, respectivamente, que aqui dou por reproduzidos, pelo que mantenho a decisão recorrida, negando provimento ao presente recurso; (sendo este o acto ora recorrido).
Do direito
3. Vem A impugnar o despacho do Exm° Secretário para a Segurança atrás referenciado com o qual se confirmou anterior decisão do Exm° Comandante da P.S.P. que o interditou de entrar em Macau por um período de 3 anos.
Entende que o dito despacho viola o “princípio da presunção da inocência”, padecendo também de “erro nos pressupostos” e ofensa ao “princípio da proporcionalidade”.
Vejamos, então, se tem razão.
— Mostra-se de começar pelo assacado “erro nos pressupostos”.
Aqui, questiona o ora recorrente a existência de “fortes indícios” da sua prática dos crimes de “usura” e “sequestro”, (na forma tentada) pela entidade administrativa considerados como verificados.
Vejamos.
Como já o entendeu o Vdo T.U.I.:
“Fortes indícios é um conceito impreciso de natureza jurídica. A sua natureza vaga ou imprecisa pode ser ultrapassada através das técnicas interpretativas, não carecendo de um juízo valorativo por parte do intérprete-aplicador. O processo de interpretação deste tipo de conceitos indeterminados é legalmente vinculado cuja legalidade é susceptível da fiscalização jurisdicional.
Entende-se por fortes indícios os sinais de ocorrência de um determinado facto, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que o facto foi praticado pelo arguido. Esta possibilidade razoável é uma probabilidade mais positiva do que negativa, ou seja, a partir das provas recolhidas se forma a convicção de que é mais provável que o arguido tenha praticado o facto do que não o tenha praticado. Aqui não se exige uma certeza ou verdade como no julgamento criminal.”; (cfr., v.g., o Ac. de 27.04.2000, Proc. n° 6/2000).
No caso dos presentes autos, e face aos documentos existentes (nomeadamente) no processo administrativo instrutor, ora em apenso, mostra-se-nos que razoável e adequada é a consideração efectuada pela entidade administrativa.
Na verdade, e como bem se observa no douto Parecer do Exm° Magistrado do Ministério Público, “tendo-se aquele juízo consubstanciado na detenção do recorrente em circunstancialismo de quase flagrante da prática de crimes de usura para jogo e tentativa de sequestro, com meios probatórios poderosos, como a confissão de co-arguido, com apreensão da mala da vítima contendo a sua documentação, declarações desta e fotografias extraídas das câmaras de vigilância, nada permite validamente questionar a correcção desse juízo, no sentido da efectiva existência de fortes indícios da prática dos crimes em causa”.
Assim, e na parte em questão, improcede o recurso.
— Vejamos agora da “presunção de inocência”.
Nos termos do art. 29° da L.B.R.A.E.M.:
“Nenhum residente de Macau pode ser punido criminalmente senão em virtude de lei em vigor que, no momento da correspondente conduta, declare expressamente criminosa e punível a sua acção.
Quando um residente de Macau for acusado da prática de crime, tem o direito de ser julgado no mais curto prazo possível pelo tribunal judicial, devendo presumir-se inocente até ao trânsito em julgado da sentença de condenação pelo tribunal.”
E invocando o assim estatuído, entende o arguido que a sua interdição de entrada em Macau viola o referido princípio.
Também aqui não tem o recorrente razão.
É verdade que qualquer pessoa deve presumir-se inocente até trânsito em julgado de decisão condenatória, e que assim ainda não sucedeu com o ora recorrente.
Porém, em lado algum se disse que o recorrente era “culpado” dos crimes que lhe são imputados, sendo igualmente certo que o preceito legal invocado na decisão recorrida também apenas exige a existência de “fortes indícios”.
De facto, prescreve o art. 4° da Lei n° 4/2003 que:
“1. É recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de:
1) Terem sido expulsos, nos termos legais;
2) A sua entrada, permanência ou trânsito estar proibida por virtude de instrumento de direito internacional aplicável na RAEM;
3) Estarem interditos de entrar na RAEM, nos termos legais.
2. Pode ser recusada a entrada dos não-residentes na RAEM em virtude de:
1) Tentarem iludir as disposições sobre a permanência e a residência, mediante entradas e saídas da RAEM próximas entre si e não adequadamente justificadas;
2) Terem sido condenados em pena privativa de liberdade, na RAEM ou no exterior;
3) Existirem fortes indícios de terem praticado ou de se prepararem para a prática de quaisquer crimes;
4) Não se encontrar garantido o seu regresso à proveniência, existirem fundadas dúvidas sobre a autenticidade do seu documento de viagem ou não possuírem os meios de subsistência adequados ao período de permanência pretendido ou o título de transporte necessário ao seu regresso.
3. A competência para a recusa de entrada é do Chefe do Executivo, sendo delegável.”
Assim, sendo que a decisão de interdição ora em causa assenta na existência de “fortes indícios”, tal como prescrito está no transcrito art. 4°, n° 2, alínea 3°, censura não merece a decisão recorrida.
Aliás, também as medidas de coacção em processo penal – prisão preventiva, inclusivé – são aplicadas em virtude da existência de fortes indícios da prática de (determinados) crimes e não se mostra de considerar que a sua aplicação viole o princípio da presunção da inocência; (neste sentido, cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 30.01.2002, Proc. n° 6/2003).
Posto isto, também na parte em questão não merece o recurso provimento.
— Por fim, quanto ao “princípio da proporcionalidade”.
Temos entendido que o dito princípio implica que “os meios utilizados devem situar-se numa «justa medida» em relação aos fins obtidos, impedindo-se assim a adopção de medidas desproporcionais, excessivas ou desequilibradas. Pretende-se pois saber se o custo ou o sacrifício provocado pela decisão é proporcional ao benefício com ela conseguido.”; (cfr., v.g., o Ac. de 11.03.2010, Proc. n° 756/2009).
Da mesma forma, adquirido é que “A intervenção do juiz na apreciação do respeito do princípio da proporcionalidade, por parte da Administração, só deve ter lugar quando as decisões, de modo intolerável, o violem”; (cfr., vg., os Acs. do Vdo T.U.I. de 15.10.2003, Proc. n° 26/2003, de 29.06.2005, Proc. n° 15/2005 e de 06.07.2005, Proc. n° 14/2005).
No caso, a decisão de interdição do ora recorrente de entrar em Macau por 3 anos insere-se no exercício do poder discricionário da Administração.
E, como evidente nos parece ser, não encerra a mesma um “erro grosseiro” ou “manifesta injustiça”.
Dest’arte, e outras questões não havendo a apreciar, improcede o recurso.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos que se deixaram expostos, em conferência, nega-se provimento ao recurso.
Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.
Macau, aos 15 de Julho de 2010
José Maria Dias Azedo Presente
Chan Kuong Seng Vitor Coelho
João A. G. Gil de Oliveira
Proc. 198/2010 Pág. 18
Proc. 198/2010 Pág. 1