Processo n.º 25/2011. Recurso sobre direito de reunião e manifestação
Recorrente: A.
Recorrido: Presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais.
Assunto: Lei Básica. Direito de manifestação. Mínimo de manifestantes. Interpretação da lei.
Data da Sessão: 30 de Maio de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I – A Lei Básica não limita o exercício do direito de manifestação a um mínimo de pessoas, designadamente a três, pelo que a lei ordinária não pode fazê-lo.
II – A interpretação da lei ordinária deve privilegiar uma interpretação que se compatibilize com a Lei Básica, embora dentro dos cânones da interpretação das leis.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório e factos provados
A interpôs recurso do despacho do Presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais (IACM), de 25 de Maio de 2011, que exigiu que o aviso prévio de manifestação, a realizar entre 27 de Maio e 4 de Junho de 2011, assinado apenas pelo ora recorrente, fosse assinado por três dos promotores.
Alegam os recorrentes o seguinte:
1. Embora o aviso prévio apresentado ao IACM apenas fosse assinado por uma pessoa, provavelmente, em termos formal, não reunindo os respectivos requisitos;
2. É de salientar que, ao abrigo do artigo 27º da Lei Básica da RAEM, “os residentes de Macau gozam da liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves”. É certo que as liberdades protegidas pela Lei Básica abrangem também a liberdade particularmente gozada sem ter necessariamente a intervenção de forma colectiva.
3. Nos termos do n.º 2 do artigo 1º, “os residentes de Macau gozam do direito de manifestação”, daí, também pode ser interpretado que a liberdade particularmente gozada sem a intervenção de forma colectiva faz parte das liberdades protegidas.
4. Embora a Lei n.º 2/93/M disponha que o aviso prévio deve ser necessariamente assinado por três dos promotores, estou convicto de que esta disposição formal é criada pelo legislador com base num hipótese, isto é, o aludido género de operação social tem sempre grande número de participantes, razão pela qual o mesmo estabeleceu o regime de aviso prévio, a fim de atribuir tempo suficiente à autoridade de execução da lei para preparar e organizar o trabalho de manutenção da ordem pública.
5. Se, nos termos da referida disposição, o aviso só pode ser feito com a assinatura de 3 pessoas, vislumbra-se que os direitos dos residentes consagrados na Lei Básica e na Lei n.º 2/93/M não podem ser gozados apenas por um ou dois cidadãos (inferior a 3 pessoas). Isto equivale à privação dos direitos de manifestação e de protestação pública dos residentes, através do referido formalismo.
6. O formalismo disposto na lei devia ser criado para garantir aos cidadãos o gozo das liberdades de manifestação e de reunião, em vez de os prejudicar o gozo das liberdades e dos direitos.
7. Considero que o IACM interpretou unilateralmente o sentido da letra do artigo 5º da Lei n.º 2/93/M, de 17 de Maio, no entanto, a interpretação da lei não deve ser feita de forma a desrespeitar o contexto, pelo contrário, o teor da lei deve ser interpretado com a observância do seu contexto e da técnica legislativa. Nos termos do artigo 8º do Código Civil, a interpretação da lei deve ser entendida desta forma: a interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada.
A entidade recorrida respondeu ao recurso.
II – O Direito
1. As questões a apreciar
Está em causa saber se o despacho recorrido violou a lei ao exigir que o aviso prévio de realização de manifestação fosse assinado por três pessoas, invocando para tal o disposto no n.º 3 do artigo 5.º da Lei n.º 2/93/M, de 17 de Maio, aviso esse que foi assinado apenas por uma pessoa.
2. Aviso prévio. Número mínimo de promotores de manifestação
A Lei n.º 2/93/M regula o exercício do direito de reunião e manifestação. Dispõe o seu artigo 5.º:
“Artigo 5.º
(Aviso prévio)
1. As pessoas ou entidades que pretendam realizar reuniões ou manifestações com utilização da via pública, de lugares públicos ou abertos ao público devem avisar, por escrito, o presidente do conselho de administração do Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais, com a antecedência mínima de 3 dias úteis e a máxima de 15.
2. Quando as reuniões ou manifestações tenham carácter político ou laboral a antecedência mínima prevista no número anterior é reduzida para dois dias úteis.
3. O aviso deve indicar o objecto ou fim da reunião ou manifestação pretendida e o dia, hora, local ou trajecto previstos para a sua realização.
4. O aviso deve ser assinado por três dos promotores devidamente identificados pelo nome, profissão e morada ou, tratando-se de associações, pelas respectivas direcções.
5. A entidade que receber o aviso deve passar recibo comprovativo desse facto”.
O aviso prévio, comunicando ao Instituto para os Assuntos Cívicos e Municipais a manifestação a realizar entre os dias 27 de Maio e 4 de Junho de 2011, foi assinado por uma pessoa. O presidente do conselho de administração deste Instituto entende não ser legal tal aviso, dizendo que a lei exige a assinatura por três dos promotores.
Ora, em abstracto, nada obsta a que uma pessoa apenas se manifeste. Já o exercício do direito de reunião implica, pelo menos, a existência de duas pessoas.
É o que explicam GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA1, a propósito de interpretação de norma constitucional portuguesa prevendo os direitos de reunião e de manifestação:
“O direito de reunião é necessariamente um direito de acção colectiva, mas os seus titulares são os cidadãos em si mesmos. Pode ser de exercício privado ou público, não tem de supor a expressão de uma mensagem contra ou dirigida a terceiros e pode servir aos mais variados propósitos e motivações (recreativos, culturais, profissionais, políticos e religiosos). O direito de manifestação não é necessariamente um direito colectivo (pode haver manifestações individuais como é exemplo expressivo o da mãe do soldado americano na Guerra do Iraque que se manifesta perante os órgãos do poder, não se podendo dizer que se trata de simples liberdade de expressão), tem de revestir uma forma de exercício público, supõe a expressão de uma mensagem dirigida contra ou em direcção a terceiros (pelo menos à «opinião pública») e serve normalmente propósitos ou motivações políticas...
...
A delimitação do âmbito normativo de reunião não deve partir de esquemas apriorísticos redutores, quer quanto ao número (basta duas pessoas para se reunir e uma pessoa para se manifestar) quer quanto ao objectivo ou finalidade a prosseguir.”
3. Lei Básica. Direito de manifestação
Dispõe o artigo 27.º da Lei Básica que “Os residentes de Macau gozam da liberdade de expressão, de imprensa, de edição, de associação, de reunião, de desfile e de manifestação, bem como do direito e liberdade de organizar e participar em associações sindicais e em greves”.
A Lei Básica não limita o exercício do direito de manifestação a um mínimo de pessoas, designadamente a três, pelo que a lei ordinária não pode fazê-lo.
Deste modo, se se concluísse que o artigo 5.º, n.º 3, da Lei n.º 2/93/M, exigia que o mínimo de três promotores assinasse o aviso, teria de se concluir que a lei não permitiria o exercício do direito de manifestação por menos de três pessoas, o que redundaria em violação da Lei Básica e implicaria a não aplicação daquela norma por este Tribunal.
Mas é possível uma outra interpretação da Lei n.º 2/93/M, que não viola a Lei Básica.
É possível interpretar a norma em causa como significando que o número máximo de promotores da manifestação que podem assinar o aviso prévio é de três, o que é razoável, visto que, frequentemente, é mais elevado o número de promotores. Assim, o número mínimo de promotores de manifestação será de um, o que se compatibiliza com a Lei Básica.
Como é sabido, a interpretação da lei ordinária deve privilegiar uma interpretação que se compatibilize com a Lei Básica, embora dentro dos cânones da interpretação das leis.
Deste modo, o acto recorrido, ao exigir o mínimo de três assinaturas de promotores de manifestação, violou o disposto no artigo 5.º, n.º 3, da Lei n.º 2/93/M, impondo-se a sua anulação.
III – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, anulando o acto recorrido.
Sem custas.
Macau, 30 de Maio de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 GOMES CANOTILHO e VITAL MOREIRA, Constituição da República Portuguesa Anotada, Coimbra Editora, 4.ª edição, 2007, Volume I, p. 636 e 637.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
1
Processo n.º 25/2011
7
Processo n.º 25/2011