Processo n.º 441/2008 Data do acórdão: 2010-07-22
(Autos de recurso penal com enxerto cível)
Assuntos:
– insuficiência para a decisão da matéria de facto provada
– objecto do processo
– acção penal
– enxerto cível
– período da cura das lesões
– prova por documento médico
– regras da experiência da vida
– acidente de viação
– acidente de trabalho
– indemnização por lucros cessantes
– indemnização da incapacidade permanente parcial
– erro notório na apreciação da prova
– conclusão incompatível com o facto provado
– reenvio do processo para novo julgamento
S U M Á R I O
1. O vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”, previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do Código de Processo Penal (CPP), só surge quando o tribunal a quo tiver omitido a investigação de algum ou alguns factos integrantes do objecto do processo ou do tema probando no processo.
2. No caso concreto dos presentes autos penais com pedido cível enxertado, o tema probando na parte penal foi formado apenas – precisamente devido à falta de contestação escrita apresentada pela arguida após notificada do despacho judicial de saneamento dos autos – pelo conjunto de factos descritos no despacho de pronúncia, e o tema probando na parte civil encontrou-se delimitado pelo acervo de factos descritos no pedido cível de indemnização deduzido e pela contestação apresentada ao mesmo pela demandada companhia seguradora.
3. Como da leitura da fundamentação fáctica do acórdão recorrido, vê-se nitidamente que o colectivo a quo já investigou todo o tema probando do processo, porquanto aí se escreveu sobretudo – depois de descritos expressamente os “Factos provados constantes na pronúncia” e os “Factos provados constantes no pedido cível de indemnização” – que os “Factos não provados” são os restantes factos com relevância constantes da pronúncia, do pedido cível e da contestação que não sejam compatíveis com os factos provados.
4. Assim sendo, não pode vir a seguradora esgrimir com o dito vício da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
5. Na ausência de qualquer norma jurídica a ditar que a realização da fisioterapia ou o período da cura das lesões tenha que ser provado por documento (a passar nomeadamente por médico), cabe ao tribunal recorrido valorar, segundo as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, toda a prova então produzida (inclusivamente as declarações do próprio ofendido e da sua mulher) na audiência nessa parte.
6. Desta maneira, não se pode imputar ao Tribunal recorrido qualquer violação das regras da experiência da vida humana, ao dar por provado – mediante a análise global de todos os elementos probatórios então carreados aos autos – que o ofendido ficou sem trabalhar durante sete meses após a ocorrência do acidente de viação.
7. Não se tratando, no caso, de qualquer acidente de trabalho, não é curial à seguradora preconizar que em vez de fixação de indemnização por lucros cessantes, haja que fixar um montante pela indemnização da taxa de incapacidade permanente parcial do ofendido.
8. Verifica-se o vício de “erro notório na apreciação da prova” previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, nomeadamente quando o tribunal recorrido, a partir de um determinado facto dado como provado, tiver tirado uma conclusão logicamente incompatível com o mesmo.
9. No caso, de facto, como o tribunal recorrido já deu como provado que o ofendido está limitado na sua capacidade de trabalho, por causa do acidente, a uma receita mensal de MOP$7.000,00, então o mesmo tribunal já não deveria ter concluído depois, em sede de decisão da questão de fixação de lucros cessantes, que à data do acidente, o ofendido auferia MOP$7.000,00 por mês, porquanto essa conclusão é logicamente incompatível com aquele facto provado.
10. Dá-se, pois, aqui efectivamente um erro notório na apreciação da prova.
11. Como a seguradora, na sua alegação de recurso, não chegou a requerer a renovação da prova a ser feita neste TSI, é de reenviar o processo para novo julgamento, a ser feito pelo ora recorrido tribunal, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, mas relativamente tão-só à matéria de indemnização de lucros cessantes ou “benefícios perdidos” então materialmente alegada pelo ofendido demandante e reclamada no valor de MOP$1.716.000,00 no seu pedido cível de indemnização, e especificadamente impugnada na contestação da demandada seguradora ora recorrente.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 441/2008
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Companhia de Seguros da China (Macau), S.A.
Recorrido: A
Tribunal a quo: 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão final do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, proferido a fls. 258 a 266 dos respectivos autos de processo penal comum colectivo n.o CR3-06-0226-PCC emergentes de acidente de viação, com pedido cível de indemnização enxertado pelo ofendido A, veio a demandada civil Companhia de Seguros da China (Macau), S.A., recorrer para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), da decisão judicial aí feita respeitante ao pedido cível, tendo invocado na sua alegação apresentada a fls. 282 a 293 dos presentes autos correspondentes, que o dito veredicto final padecia:
– do vício de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada” referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea a), do Código de Processo Penal (CPP), na parte em que se condenou ela a pagar MOP$49.000,00 ao ofendido a título de indemnização de percas salariais nos sete meses de período de tratamento das lesões físicas pelo mesmo sofridas (porque, segundo o entendimento dela, apesar de não ter havido qualquer prova documental, testemunhal ou pericial a provar a realização, pelo ofendido, da fisioterapia nos cinco meses posteriores ao período de dois meses de baixa médica, o Tribunal recorrido deu como provado que o ofendido perdeu salários por todos esses sete meses em que supostamente ficou sem trabalhar depois e por causa do acidente, em vez de dever o mesmo Tribunal ter procurado investigar se teria havido a realização da fisioterapia, e se, havendo-a, a fisioterapia teria impedido o ofendido de trabalhar nos tais cinco meses);
– bem como do vício de “erro notório na apreciação da prova” aludido na alínea c) do n.o 2 do mesmo art.o 400.o do CPP, na parte em que se fixou em MOP$924.000,00 a soma inicial de lucros cessantes do ofendido (porquanto opina ela que se conforme a matéria de facto dada por provada no acórdão recorrido, o ofendido não está impedido de trabalhar, mas sim está apenas limitado para a sua actividade profissional, e continuou até, depois do acidente, a trabalhar como músico em festas particulares e alguns eventos especiais, embora com rendimento mensal reduzido a MOP$7.000,00, então o Tribunal recorrido não deve ter fixado qualquer indemnização a nível de lucros cessantes, mas sim fixado uma indemnização por dano patrimonial futuro com base na prova da incapacidade permanente parcial do ofendido).
Sobre o recurso pronunciou-se o ofendido e demandante civil no sentido de manutenção do julgado (por razões aduzidas na resposta de fls. 298 a 305).
Subidos os autos, afirmou a Digna Procuradora-Adjunta em sede de vista a ela aberta a fl. 315v, que não tinha legitimidade para emitir parecer sobre o recurso, por estar em causa matéria de indemnização cível.
Em subsequente exame preliminar dos autos pelo relator, foi nomeadamente decidido, a fl. 316, que o recurso podia ser directamente julgado em conferência.
Corridos em seguida os vistos, cumpre decidir do mérito do recurso nesta sede de conferência.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Desde já, quanto ao primeiro vício, de “insuficiência para a decisão da matéria de facto provada”:
Como se sabe, este vício, previsto na alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, só surge quando o Tribunal a quo tiver omitido a investigação de algum ou alguns factos integrantes do objecto do processo ou do tema probando no processo.
No caso concreto dos presentes autos penais com pedido cível enxertado, o tema probando na parte penal foi formado apenas – precisamente devido à falta de contestação escrita apresentada pela arguida após notificada do despacho judicial de saneamento dos autos de fls. 125 a 125v – pelo conjunto de factos descritos no despacho de pronúncia de fls. 120 a 121v, e o tema probando na parte civil encontrou-se delimitado pelo acervo de factos descritos no pedido cível de indemnização (deduzido a fls. 61 a 67) e pela contestação apresentada ao mesmo pela demandada Seguradora (a fls. 139 a 142).
E da leitura da fundamentação fáctica do acórdão ora recorrido (que constitui o ponto 2 desse texto decisório, cujo teor se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), vê-se nitidamente que o Colectivo a quo já investigou todo o tema probando do processo, porquanto aí se escreveu sobretudo em chinês – depois de descritos expressamente os “Factos provados constantes na pronúncia” e os “Factos provados constantes no pedido cível de indemnização de fls.61/67” – que os “Factos não provados” são os restantes factos com relevância constantes da pronúncia, do pedido cível e da contestação que não sejam compatíveis com os factos provados.
Assim sendo, não pode vir a Seguradora esgrimir com o dito vício da alínea a) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP.
No fundo, afigura-se evidente que a Seguradora aproveitou a alegação desse vício para pretender fazer impor a este Tribunal de recurso o seu ponto de vista sobre o resultado do julgamento da matéria de facto referente à questão da fisioterapia nos cinco meses imediatamente posteriores ao período da baixa médica do ofendido demandante, então feito pelo Tribunal recorrido à luz do princípio da livre apreciação da prova plasmado no art.o 114.o do CPP. Mas, obviamente sem êxito nenhum, porquanto do exame dos autos não se consegue retirar que o Tribunal recorrido tenha cometido qualquer erro notório na apreciação da prova no tocante à fisioterapia, uma vez que na ausência de qualquer norma jurídica a ditar que a realização da fisioterapia ou o período da cura das lesões tenha que ser provado por documento (a passar nomeadamente por médico), cabe ao Tribunal recorrido valorar, segundo as regras da experiência da vida humana em normalidade de situações, toda a prova então produzida (inclusivamente as declarações do próprio ofendido e da sua mulher) na audiência nessa parte. Desta maneira, não se pode imputar ao Tribunal recorrido qualquer violação das regras da experiência da vida humana, ao dar por provado – mediante a análise global de todos os elementos probatórios então carreados aos autos – que o ofendido ficou sem trabalhar durante sete meses após a ocorrência do acidente de viação.
Improcede o recurso nesta primeira parte.
E no tangente ao também apontado vício de “erro notório na apreciação da prova” respeitante à matéria probatória de lucros cessantes:
É de notar, de antemão, que não se tratando, no caso, de qualquer acidente de trabalho, não é curial à Seguradora preconizar que em vez de fixação de indemnização por “lucros cessantes”, haja que fixar um montante pela indemnização da taxa de incapacidade permanente parcial.
Outrossim, tal como tem decidido este TSI em diversos recursos anteriores, verifica-se o vício de “erro notório na apreciação da prova” previsto na alínea c) do n.o 2 do art.o 400.o do CPP, nomeadamente quando o Tribunal recorrido, a partir de um determinado facto dado como provado, tiver tirado uma conclusão logicamente incompatível com o mesmo.
No caso, de facto, como o Tribunal recorrido já deu como provado que o ofendido está limitado na sua capacidade de trabalho, por causa do acidente, a uma receita mensal de MOP$7.000,00 (cfr. o facto provado descrito no penúltimo parágrafo da pág. 6 do texto do acórdão recorrido, a fl. 260v dos autos), então o mesmo Tribunal já não deveria ter concluído depois, em sede de decisão da questão de fixação de lucros cessantes, que à data do acidente, o ofendido auferia MOP$7.000,00 por mês (cfr. o penúltimo parágrafo da pág. 12 do mesmo texto decisório, a fl. 263v). Na verdade, essa conclusão é logicamente incompatível com aquele facto provado: segundo o facto provado em mira, o ofendido, por causa do acidente, i.e., após o acidente, ficava com a sua receita mensal de trabalho limitada a MOP$7.000,00, enquanto em sintonia com a referida conclusão, o ofendido ganhava, à data do acidente, ou seja, antes da ocorrência do acidente, MOP$7.000,00 por mês.
Dá-se, pois, aqui efectivamente um erro notório na apreciação da prova. E como a Seguradora, na sua alegação de recurso, não chegou a requerer a renovação da prova a ser feita neste TSI, é de reenviar o processo para novo julgamento, a ser feito pelo ora recorrido 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, com nova composição do Tribunal Colectivo, nos termos do art.o 418.o, n.os 1 e 3, do CPP, mas relativamente tão-só à matéria de indemnização de lucros cessantes ou “benefícios perdidos” então materialmente alegada pelo ofendido demandante e reclamada no valor de MOP$1.716.000,00 nos art.os 18.o a 30.o e 34.o a 42.o (e também inclusivamente na alínea ii) dos “Danos materiais” do “Quadro Síntese” do art.o 57.o) do seu pedido cível de indemnização (de fls. 61 a 67), e especificadamente impugnada nos art.os 5.o, 6.o e 7.o (primeira metade) da contestação da demandada Seguradora ora recorrente (a fl. 139 a 142).
Entretanto, de todo o acima analisado e concluído, decorre naturalmente intocada toda a remanescente decisão de facto e de direito já tomada no acórdão recorrido, inclusivamente a decisão já feita na parte em que se condenou a Seguradora a pagar as seguintes quantias indemnizatórias ao ofendido demandante, a terem que ser pagas pela Seguradora (com juros legais a contar da data do trânsito em julgado da decisão até integral e efectivo pagamento, tal como já se decidiu também pelo Colectivo recorrido):
– MOP$396,00 (por despesas hospitalares);
– MOP$300,00 (por despesas de exame do seu veículo);
– MOP$3.320,00 (por despesas de reparação do seu veículo);
– MOP$49.000,00 (por prejuízos sofridos durante os sete meses de tratamento das lesões);
– MOP$200.000,00 (por danos morais sofridos).
III - DECISÃO
Dest’arte, e em harmonia com o exposto, acordam em julgar parcialmente provido o recurso, com reenvio do processo para novo julgamento pelo recorrido 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, relativamente tão-só à matéria de indemnização de lucros cessantes então materialmente alegada e reclamada no valor de MOP$1.716.000,00 nos art.os 18.o a 30.o, 34.o a 42.o e 57.o do pedido cível de indemnização enxertado nos presentes autos penais, e materialmente impugnada nos art.os 5.o, 6.o e 7.o (primeira metade) da contestação da demandada Seguradora, sendo, pois, intacta toda a remanescente decisão de facto e de direito já tomada no acórdão recorrido, nomeadamente a decisão condenatória de indemnização quanto a MOP$396,00 de despesas hospitalares, MOP$300,00 de despesas de exame de veículo, MOP$3.320,00 de despesas de reparação de veículo, MOP$49.000,00 de prejuízos sofridos no período de tratamento de lesões, e MOP$200.000,00 de danos morais, com juros legais a contar do trânsito em julgado da decisão até integral e efectivo pagamento.
Custas do pedido cível nas duas Instâncias (com excepção da parte referente aos peticionados lucros cessantes no valor de MOP$1.716.000,00) pelo ofendido demandante e pela demandada Seguradora na proporção dos respectivos decaimentos, em função do julgado acima feito.
Por o ofendido demandante ter oferecido oposição infundada ao recurso da Seguradora na parte relativa à questão de lucros cessantes, as custas do presente recurso nesta parte concreta em questão ficam por conta do ofendido (sem prejuízo dos efeitos do apoio judiciário na modalidade de dispensa total de pagamento de custas já concedido pelo Tribunal recorrido ao ofendido).
Fixam em MOP$2.000,00 patacas os honorários a favor do Ilustre Patrono Oficioso do ofendido, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 22 de Julho de 2010.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
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José Maria Dias Azedo
(Primeiro Juiz-Adjunto)
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