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Processo n.º 19/2011. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorrido: B.
Assunto: Presunção prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial. Regime de bens do casamento. Procedimentos cautelares. Julgamento da matéria de facto. Lei de Bases da Organização Judiciária. Tribunal colectivo. Juiz singular.
Data do Acórdão: 10 de Junho de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
  I – A presunção prevista no artigo 7.º do Código do Registo Predial não se estende ao regime de bens do casamento do titular inscrito, que este fez constar do registo de aquisição do imóvel.
  II – A intervenção do juiz singular, em julgamento da matéria de facto que compete ao tribunal colectivo, constitui vício que pode ser arguido pelas partes ou suscitado oficiosamente, até haver decisão final transitada em julgado.
  III - Relativamente ao julgamento das questões de facto mencionadas no artigo 23.º, n.º 6, alínea 3), da Lei de Bases da Organização Judiciária, se as leis de processo nada estabelecerem quanto ao tribunal a quem compete o julgamento, ele caberá ao tribunal colectivo.
IV – De acordo com o disposto no artigo 23.º, n.º 6, alínea 3), da Lei de Bases da Organização Judiciária, o tribunal colectivo só intervém no julgamento das questões de facto dos procedimentos cautelares, em que a lei mande seguir os termos do processo de declaração – o que não sucede em nenhum caso dos previstos no actual Código de Processo Civil - e cujo valor exceda a alçada dos tribunais de primeira instância.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
  
I – Relatório
A requereu arrolamento de bens, como preliminar de acção de divórcio litigioso, contra seu marido B.
O Ex. mo Juiz do Tribunal Cível decretou o arrolamento requerido, de imóvel e saldo de conta bancária.
Deduzida oposição pelo requerido, a Ex. ma Juíza manteve o arrolamento.
Em recurso interposto pela requerido – doravante designada por recorrido ou por requerido/recorrido - o Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu parcial provimento ao recurso, decretando o levantamento do arrolamento (julgando improcedente o recurso na parte em que o recorrente arguira a nulidade do julgamento pelo juiz singular, por alegar ser competente o tribunal colectivo).
Inconformada, recorre agora a requerente – doravante designada por recorrente ou por requerente/recorrente - para este Tribunal de Última Instância (TUI), pedindo a revogação do Acórdão recorrido, para ficar a subsistir a decisão de 1.ª instância.
Para tal, formulou as seguintes conclusões úteis:
Resulta da Lei do Casamento República Popular da China nos seus arts. 17.º a 19.º, que para que determinado bem seja considerado bem próprio é necessário que entre os conjuges haja um acordo escrito nesse sentido.
Tendo sido o ora recorrido o único a outorgar a escritura de compra e venda,
e não constando dos autos (quer do arrolamento, quer do divórcio) qualquer acordo escrito a atestar que a fracção autónoma e o depósito são bens próprios do ora recorrido,
Há manifesto erro notório do TSI ao decidir que "no aspecto de relações de bens foi optado, no casamento entre o requerido e a sua cônjuge, o regime de separação de bens":
Não foi pedido ao TSI que se pronunciasse sobre o regime de bens pelo que
O TSI ao pronunciar-se sobre factos que as partes não alegaram, ou como refere a lei "conheça de questões de que não podia tomar conhecimento" concedeu ao recorrente mais do que aquilo que ele pediu no recurso, sendo, por essa razão, a decisão nula por excesso de pronúncia.
O depósito objecto do arrolamento não se encontra registado, nem está sujeito a registo.
Ora, restringindo-se o n.º 2 do artigo 8.º do CRP ao pedido de cancelamento de factos sujeitos a registo não pode o TSI vir ordenar o levantamento do arrolamento também relativamente ao depósito, uma vez que em relação ao mesmo não está em causa qualquer inscrição registral!
Havendo por isso também excesso de pronúncia, devendo nessa parte o seu arrolamento ser mantido.
Entendeu o TSI dar provimento ao recurso, ordenando o levantamento do arrolamento por considerar que a ora recorrente devia, como prescreve o artigo 8º do CRP, ter pedido simultaneamente o cancelamento do registo.
Porém, por o registo não padecer de um vício causador da nulidade não era, nem é, possível vir pedir-se o seu cancelamento.
As falsas declarações não conduzem à falsidade da escritura de compra e venda, logo não dão origem à nulidade do registo nos termos da al. a) do art. 17.º do Cód. Reg. Pred.
Tendo sido prestadas falsas declarações relativamente ao regime de bens, a escritura de escritura de compra e venda não é falsa. Consequentemente, o registo lavrado com base na escritura de compra e venda não padece de nulidade, nos termos da al. a) do art. 17.º do Cód. Reg. Pred., uma vez que nem é falso, nem é lavrado com base num título falso.
O recorrido na sua alegação requereu, subsidiariamente, que o TUI decrete a nulidade do Acórdão recorrido ou que se anule o julgamento de 1.ª instância, com fundamento em incompetência do tribunal singular.

II – Os factos
A) O arrolamento foi decretado com os seguintes fundamentos:
“... Da certidão junta a folhas 18 resulta que o imóvel esta inscrito na competente Conservatória do Registo Predial como tendo sido adquirido pelo Requerido no estado de casado em regime de separação.
A requerente e requerido casaram entre si na RPC sem convenção antenupcial em 27.09.2006 – cfr. Fls. 9 -, pelo que, se têm casados no regime de comunhão de adquiridos.
A inscrição de aquisição no registo predial do imóvel cujo arrolamento se pede foi realizada em 12.01.2007.
Destarte, à mingua de outros elementos, por ora, presume-se que o mesmo é bem comum por ter sido adquirido na constância do matrimónio, o mesmo sucedendo com a conta bancária indicada ...”
B) O TSI, invocando para tal o disposto nos artigos 7.º e 8.º do Código do Registo Predial, revogou a decisão de arrolamento porque no registo do imóvel em causa consta que o proprietário – o ora requerido – adoptou o regime de separação de bens.

III – O Direito
1. As questões a resolver
O primeiro grupo de questões consiste em apurar se o Acórdão recorrido incorreu em nulidade, por excesso de pronúncia.
O segundo grupo de questões a resolver é a de saber se, pelo facto de alguém se intitular casado no regime de separação de bens em escritura de compra e venda de imóvel, facto esse levado ao registo predial – quando o é no regime de comunhão de adquiridos – tal facto fica coberto pelo princípio da presunção de veracidade do registo (artigo 7.º do Código do Registo Predial), obrigando a parte que o quer impugnar a pedir o cancelamento do registo, nos termos do artigo 8.º do Código do Registo Predial.
A terceira questão a resolver é a de saber – supostas as respostas afirmativas às questões do segundo grupo - se tal presunção se estende a outros bens, como o saldo de conta bancária, não objecto de qualquer registo.
A ser procedente o recurso, há, então, que examinar a questão suscitada pelo recorrido relacionada com a competência do juiz singular para intervir no julgamento da matéria de facto da oposição ao arrolamento.

2. Excesso de pronúncia
Não tem razão a recorrente em apontar ao Acórdão recorrido excesso de pronúncia, por não ter o ora recorrido, no recurso para o TSI, pedido que este se pronunciasse sobre o regime de bens do casamento.
O então recorrente invocou expressamente o disposto nos artigos 7.º e 8.º do Código do Registo Predial para defender que tinha de se aceitar como bom o regime de bens do casamento constante de tal registo predial. E foi nesse sentido que o TSI decidiu.
Também não há excesso de pronúncia em o Acórdão recorrido invocar a presunção de veracidade do registo para a estender ao saldo da conta bancária. O que pode ter havido é erro de julgamento, de que se conhecerá oportunamente.

3. A presunção derivada do registo predial.
Não se discute nos autos que as partes contraíram casamento no Interior da China, sem convenção antenupcial e que o seu regime de bens é, portanto, o de comunhão de adquiridos.
Não obstante, o requerido comprou um imóvel – sem intervenção da requerente/recorrente - declarando na escritura ser o seu regime de bens o de separação. E, assim, veio a ser inscrito no registo de aquisição do imóvel.
No recurso para o TSI, veio alegar o ora recorrido que o imóvel não poderia ter sido arrolado como bem comum, visto a requerente do arrolamento não ter dado cumprimento ao disposto nos artigos 7.º e 8.º do Código do Registo Predial, o que veio a ser aceite pelo TSI.
Dispõem o seguinte os artigos 7.º e 8.º do Código do Registo Predial:

“Artigo 7.º
(Presunções derivadas do registo)
O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe e pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Artigo 8.º
(Impugnação dos factos registados)
1.Os factos comprovados pelo registo não podem ser impugnados em tribunal sem que simultaneamente seja pedido o cancelamento do registo.
2.Não terão seguimento, após os articulados, as acções em que não seja formulado o pedido de cancelamento previsto no número anterior”.

Seriam estas normas aplicáveis ao caso dos autos?
Seguramente que não.
O que o artigo 7.º nos diz são duas coisas:
1.ª - O registo definitivo constitui presunção de que o direito existe;
2.ª - O registo definitivo constitui presunção de que o direito pertence ao titular inscrito, nos precisos termos em que o registo o define.
Logo, o registo a favor do ora recorrido faz presumir que ele é o proprietário do imóvel e que esse direito existe nos termos definidos no registo, com os ónus e encargos dele constantes.
Mas o que o registo predial não faz presumir, manifestamente, é o regime de bens do casamento do adquirente, levado ao registo por constar da escritura pública de compra e venda.
Como explica VICENTE JOÃO MONTEIRO1, referindo-se à presunção que no actual Código consta do artigo 7.º, “Esta presunção derivada do registo, apesar de elidível por prova em contrário (iuris tantum), actua no sentido de que, até essa prova, existe um direito que emerge do facto inscrito, que o mesmo pertence ao respectivo titular, e que esse direito incide sobre um objecto determinado: o prédio tal como se acha identificado na respectiva descrição”.
O mesmo opina ISABEL PEREIRA MENDES2:
“A presunção registral, elidível por prova em contrário, actua no sentido de que o direito registado:
a) Existe e emerge do facto inscrito;
b) Pertence ao titular inscrito;
c) A sua inscrição tem determinada substância (objecto e conteúdo dos direitos ou ónus ou encargos nela definidos”.
O casamento prova-se pela certidão respectiva e o regime de bens constante de convenção antenupcial, em contrário do regime supletivo de bens, comprova-se com certidão do respectivo documento.
Por conseguinte, estaria fora de causa a necessidade do pedido de cancelamento de tal parte do registo, nos termos do artigo 8.º do Código do Registo Predial.
Procede, deste modo o recurso, por violação do disposto nos artigos 7.º e 8.º do Código do Registo Predial.

4. Conta bancária
Está, assim, prejudicada a terceira questão a resolver, que era a de saber se tal presunção se estende a outros bens, como o saldo de conta bancária, não objecto de qualquer registo.
Mesmo que assim não fosse, não se vislumbra como é que seria possível partir da presunção derivada do registo predial – com efeitos incidentes sobre o imóvel registado – para estender a sua eficácia a contas bancárias, sendo certo que era seguro nos autos que as partes estavam casadas no regime de comunhão de adquiridos e não no de separação de bens.

5. Nulidade resultante da intervenção do juiz singular em causa da competência do tribunal colectivo
Sendo o recurso procedente, examinemos, agora, a questão suscitada pelo recorrido na sua alegação, que requereu, subsidiariamente, que o TUI decrete a nulidade do Acórdão recorrido ou que se anule o julgamento de 1.ª instância, com fundamento em incompetência do tribunal singular.
Entende o recorrido que a competência para o julgamento da matéria de facto pertence ao tribunal colectivo, nos termos do artigo 23.º, n.º 6, alínea 3), da Lei de Bases da Organização Judiciária.
Como se sabe, a incompetência pode ser arguida pelas partes e deve ser suscitada oficiosamente pelo tribunal em qualquer estado do processo, enquanto não houver sentença com trânsito em julgado proferida sobre o fundo da causa (artigo 31.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
A questão não está, no entanto, tratada como sendo de competência no Código de Processo Civil, como decorre do disposto do n.º 4 do artigo 549.º do mesmo Código: mas a solução é a mesma: o vício pode ser suscitado até ao trânsito em julgado da decisão.3
O Acórdão recorrido julgou que a questão competia ao juiz singular porque os artigos 331.º e 332.º do Código de Processo Civil – que regulam o julgamento da oposição à providência – não prevêem que o procedimento seja julgado pelo tribunal colectivo.
A decisão está certa, mas o mesmo já não se pode dizer da fundamentação.
Vejamos.
O artigo 23.º, n.º 6, alínea 3) da Lei de Bases da Organização Judiciária dispõe que:
“6. Sem prejuízo dos casos em que as leis de processo prescindam da sua intervenção, compete ao tribunal colectivo julgar:
1) ...
2) ...
3) As questões de facto nas acções de natureza cível e laboral de valor superior à alçada dos tribunais de primeira instância, bem como as questões da mesma natureza nos incidentes, procedimentos cautelares e execuções que sigam os termos do processo de declaração e cujo valor exceda aquela alçada;
4) ...
5) ...”
O que a lei nos diz é que, salvo nos casos em que as leis de processo mandem intervir o juiz singular – o que não acontece neste caso da oposição à providência, em que a lei processual é omissa – o tribunal colectivo julga as questões mencionadas na mencionada alínea da Lei de Bases.
Portanto, o que se retira da lei é precisamente o contrário da interpretação do Acórdão recorrido.
Contudo, o tribunal colectivo só intervém no julgamento dos procedimentos cautelares e execuções que sigam os termos do processo de declaração e cujo valor exceda a alçada dos tribunais de primeira instância.
Embora o valor da causa exceda largamente aquela alçada, o julgamento da oposição nos procedimentos cautelares não segue os termos do processo de declaração.
Mas, dir-se-á, nunca o julgamento dos procedimentos cautelares segue os termos do processo de declaração.
Isso é exacto, actualmente, quanto aos procedimentos cautelares. Mas já não é no caso das execuções, em que se for contestada a liquidação, segue-se os termos do processo sumário de declaração (artigo 691.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), bem como dos embargos à execução, que seguem os termos do processo ordinário ou sumário de declaração, conforme o valor (artigo 700.º, n.º 2, do Código de Processo Civil).
Mesmo quanto aos procedimentos cautelares convém conhecer um pouco da história legislativa recente de Macau.
O actual Código de Processo Civil foi publicado em 8 de Outubro de 1999 e a Lei de Bases da Organização Judiciária foi publicada em 20 de Dezembro de 1999, tendo os seus trabalhos preparatórios decorrido em data presumivelmente anterior à da publicação do novo Código de Processo Civil.
Ora, no anterior Código de Processo Civil (de 1961), que vigorou até 31 de Outubro de 1999, havia várias situações em que nos procedimentos cautelares se seguia os termos do processo de declaração: era o dos embargos ao arresto, à providência cautelar não especificada e ao arrolamento, que seguiam os termos do processo sumário de declaração, após a contestação (artigos 406.º, n.º 3, 401.º, n.º 2 e 427.º, n.º 1).
O legislador da Lei de Bases da Organização Judiciária terá, portanto, aprovado as normas deste texto legislativo, com base no conhecimento que tinha do Código de Processo Civil, que vigorava aquando dos trabalhos preparatórios daquela Lei.
Eis a razão de ser da letra do artigo 23.º, n.º 6, alínea 3) da Lei de Bases da Organização Judiciária.
Em conclusão, o tribunal colectivo só intervém no julgamento dos procedimentos cautelares que sigam os termos do processo de declaração e cujo valor exceda a alçada dos tribunais de primeira instância.
O que não é o caso da oposição à providência.
Logo, acertada foi a intervenção do juiz singular.
Improcede, nesta parte, a impugnação do recorrido, deduzida ao abrigo do disposto no artigo 590.º, n.º 1, do Código de Processo Civil.

IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso, revogam a decisão recorrida, para ficar a subsistir a decisão de 1.ª instância.
Custas pelo recorrido, tanto neste TUI, como no TSI.
Macau, 10 de Junho de 2011.
   Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin

1 VICENTE JOÃO MONTEIRO, Noções Elementares do Registo Predial de Macau, Direcção dos Serviços de Justiça, 1997, Macau, p. 31,
2 ISABEL PEREIRA MENDES, Código do Registo Predial Anotado e Comentado e Diplomas Conexos, Coimbra, Almedina, 17.ª edição, 2009, p. 178.
     3 J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, 2.ª edição, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2008, p. 637, quando se aprecia sobre o direito anteriormente vigente, que ainda é o de Macau.
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