Processo nº 114/2010
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Sob acusação pública respondeu, no T.J.B., A, com os sinais dos autos, vindo, a final, a ser condenado como autor da prática de dois crimes de “emprego ilegal” p. e p. pelo artigo 16.º n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 5 (cinco) meses de prisão cada.
Em cúmulo jurídico, foi o arguido condenado na pena única de 6 (seis) meses de prisão, suspensa a sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com a condição de pagar à RAEM MOP$8.000,00 no prazo de 30 (trinta) dias.”; (cfr., fls. 26 a 28).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:
“1.) Condena o recorrente A pela prática de dois crimes de emprego ilegal p. e p. pelo artigo 16.º n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 5 (cinco) meses de prisão para cada um, em cúmulo jurídico, numa pena única de 6 (seis) meses de prisão, suspensa a sua execução pelo período de 2 (dois) anos.
2.) O recorrente não se conforma com a convicção do tribunal singular, uma vez que nos factos dados como provados pelo tribunal, nunca se referiu as retribuições dos dois trabalhadores ilegais nem se conseguiu provar se os dois trabalhadores ilegais tinham ou não retribuições.
3.) O recorrente não se conforma com que a convicção do tribunal foi formada conforme as regras da experiência e nos factos provados não se referiu a “circunstância concreta de que o arguido A pediu várias vezes aos guardas policiais para lhe dar oportunidade quando os guardas policiais verificaram que os dois indivíduos do interior da China só conseguiram apresentar os documentos de identificação emitidos pela autoridade da China”. Mesmo que deva formar-se conforme as regras da experiência, a convicção do tribunal ainda deve basear-se razoavelmente nos factos provados.
4.) Nos termos do artigo 1079.º do Código Civil, a relação de trabalho assenta em que uma pessoa se obriga a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta, e tem direito a uma retribuição.
5.) Nos factos provados do presente processo, carece de um elemento da relação de trabalho - retribuição, pelo que, não se pode provar indubitavelmente a existência da relação de trabalho estabelecida entre o recorrente e as duas testemunhas do presente processo.
6.) Pelo exposto, o recorrente entende que a sentença do tribunal singular violou a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada prevista no artigo 400.º n.º 2 alínea a) do Código de Processo Penal”; (cfr., fls. 32 a 36 e 68 a 70).
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Respondendo, afirma o Digno Magistrado do M°P° que:
“1. Só há insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, quando se verifica uma lacuna no apuramento da matéria de facto necessário para a decisão de direito.
2. In casu, o recorrente foi condenado pela prática de dois crimes de emprego ilegal p. e p. pelo artigo 16.º n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 5 (cinco) meses de prisão para cada um crime, em cúmulo jurídico, numa pena única de 6 (seis) meses de prisão, suspensa a sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com a condição de pagar à RAEM, a título de contribuição, uma quantia de MOP$8.000,00, no prazo de 30 (trinta) dias.
3. Ao abrigo do artigo 16.º da Lei n.º 6/2004, “1. Quem constituir relação de trabalho com qualquer indivíduo que não seja titular de algum dos documentos exigidos por lei para ser admitido como trabalhador, independentemente da natureza e forma do contrato, ou do tipo de remuneração ou contrapartida, é punido com pena de prisão até 2 anos e, em caso de reincidência, com pena de prisão de 2 a 8 anos”.
4. Os elementos para a incriminação do crime de emprego são: relação de trabalho e retribuição.
Constituir relação de trabalho com qualquer indivíduo que não seja titular de algum dos documentos exigidos por lei para ser admitido como trabalhador, sendo o elemento essencial a existência de retribuição (seja qual for o seu tipo).
5. Não estando provado a relação do trabalho entre o arguido e outra pessoa que não tinha título que permite a trabalhar em Macau, não pode o arguido condenado pela prática do crime de emprego ilegal (vide o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância, de 26/10/2006, no Processo n.º 350/2006).
6. Conforme os factos dados como provados pelo tribunal a quo, é efectivamente que não se referiu que os dois trabalhadores que não tinham título que lhes permitisse a trabalhar em Macau obtiveram retribuição depois de prestar serviço ao recorrente.
7. Porém, também notamos que o tribunal a quo já teve em plena consideração os fundamentos jurídicos da retribuição.
8. Daí, podemos ver que o pensamento lógico do tribunal a quo deve ser: depois de prestarem serviços ao recorrente, tais trabalhadores que não tinham título que lhes permitisse a trabalhar em Macau receberam devidas retribuições, porém, não se conseguiu apurar as quantias de retribuições que eles receberam ou o tipo destas retribuições.
9. Obviamente, a falta da indicação de retribuição nos factos provados é meramente uma omissão.
10. In casu, carece efectivamente do elemento de retribuição da relação de trabalho nos factos provados, pelo que, não se pode provar a existência da relação de trabalho estabelecida entre o recorrente e os dois trabalhadores. Nestes termos, o Ministério Público concorda com o recorrente, isto é, a sentença do tribunal a quo enferma efectivamente do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto, devendo assim ser declarada nula a sentença do tribunal a quo e devendo o processo ser reenviado para novo julgamento sob a forma de processo comum.”; (cfr., fls. 38 a 41 e 79 a 81).
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Neste T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Pese embora a anuência do Exm° colega junto da 1ª instância, cremos não assistir razão ao recorrente.
O tipo do ilícito por que o mesmo foi condenado (n° 1 do art° 16° da Lei 6/2004) exige para o respectivo preenchimento apenas a constituição de relação de trabalho com qualquer indivíduo que não seja titular de algum dos documentos exigidos por lei para ser admitido como trabalhador, acrescentando o n° 2 da mesma norma que se presume "existir relação de trabalho sempre que um indivíduo é encontrado em obras de construção civil a praticar actos materiais de execução das mesmas ".
Nestes parâmetros, primeira questão que urgirá delucidar é se a actividade em que, em concreto, os trabalhadores em causa foram detectados, se poderá ou não considerar "obra de construção civil".
Cremos que sim.
Pese embora a obra que foi adjudicada ao recorrente e onde os factos foram constatados seja considerada como "obra de decoração", tal terminologia não afasta, em nosso critério, aquele cariz de "obra de construção civil", sabendo-se, como se sabe, que tal tipo de obras, no costume de Macau (e, presumimos, na China, em geral) envolve, por norma, a efectivação dos chamados "acabamentos" no interior da construção, seja por alteração, destruição ou construção de paredes, seja por aplicação de revestimentos (pavimentos, azulejos), seja de pinturas, etc, tudo a gosto dos interessados, como é óbvio.
Ora, tal tipo de "acabamentos ", dada a sua natureza, pode e deve, em nosso critério, ser encarado como "obra de construção civil" para os efeitos agora em análise.
Sendo assim, uma vez que os trabalhadores em questão foram encontrados a praticar actos materiais de execução de tal tipo de obra, designadamente utilizando um raspador para misturar cimento com água num balde metálico, terá que presumir-se a existência de relação de trabalho, nos termos do n° 2 da norma supra citada.
Mostrando-se constituída essa relação de trabalho, revela-se irrelevante, ou, pelo menos não essencial, o apuramento do "tipo de remuneração ou contrapartida" subjacente à mesma, nos termos previstos no n° 1, razão por que nos não parece que ocorra o assacado vício de insuficiência para a decisão da matéria provada, devido ao não apuramento, pelo tribunal "a quo" do tipo de retribuição devida.
Termos em que se nos afigura não merecer provimento o presente recurso.”; (cfr., fls. 83 a 84).
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Colhidos os vistos dos Mm°s Juízes-Adjuntos, teve lugar a audiência de julgamento do presente recurso no integral respeito dos formalismos legais.
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Nada obstando, cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Pelo Mm° Juiz do T.J.B. foram dados como provados os factos seguintes:
“Em 21 de Dezembro de 2009, pelas 10h10, quando passaram pela loja J da rua interior n.º 102 da Rua de Pequim, cuja obra de decoração foi adjudicada ao arguido A, guardas policiais do CPSP que se encontravam em funções de patrulha examinaram o documento de identificação de B em frente da referida loja. Cerca de 10 a 15 minutos depois, quando a porta da referida loja foi aberta, os guardas policiais entraram na sobreloja da referida loja para proceder a uma investigação e viram que B estava na referida loja, utilizando um raspador para misturar o cimento com água num pequeno balde metálico enquanto C estava a varrer o chão com uma vassoura de cor vermelha. A seguir, os guardas policiais examinaram os documentos de identificação desses e confirmaram mais uma vez que B e C eram apenas portadores do passaporte da RPC, não possuindo quaisquer documentos legais que lhes permitissem a trabalhar nesta RAEM.
O arguido A tem como habilitações académicas o 9.º ano de escolaridade.
É dono de “Obras XX”, auferindo mensalmente em média MOP$10.000,00, tendo a seu cargo a mulher e uma filha.”; (cfr., fls. 56).
Do direito
3. Vem o arguido recorrer da sentença proferida pelo Mm° Juiz do T.J.B. que o condenou como autor da prática de dois crimes de “emprego ilegal” p. e p. pelo artigo 16.º n.º 1 da Lei n.º 6/2004, na pena de 5 (cinco) meses de prisão cada, e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) meses de prisão, suspensa a sua execução pelo período de 2 (dois) anos, com a condição de pagar à RAEM MOP$8.000,00, no prazo de 30 (trinta) dias.
Assaca à dita decisão o vício de “insuficiência da matéria de facto para a decisão”, afirmando que provada não estando a “retribuição” pelo recorrente paga aos trabalhadores B e C, inviável era a consideração da existência de uma relação de trabalho entre os mesmos.
Vejamos.
A sentença recorrida foi proferida após julgamento em processo sumário, e, após ter o Mm° Juiz elencado, na sua sentença, os factos provados que atrás se deixaram transcritos, nela consignou ainda a título de fundamentação o seguinte:
“In casu, os guardas policiais que realizaram a detenção do arguido prestaram declaração na audiência de julgamento, dizendo que viram os dois indivíduos do interior da China, B e C, a exercer trabalhos de decoração na referida loja, cuja obra de decoração foi adjudicada ao arguido. Apesar de não se conseguir provar as quantias concretas da retribuição dos dois trabalhadores ilegais na audiência de julgamento, Macau é uma sociedade comercial e os dois trabalhadores ilegais não têm nenhuma relação de parentesco com o arguido, por isso, conforme as regras da experiência, mesmo que não se conseguisse confirmar as quantias concretas de retribuição dos dois trabalhadores ilegais na audiência de julgamento, obviamente não se pode excluir a existência da relação de trabalho, uma vez que na vida real, é impossível que os dois indivíduos do interior da China prestaram gratuitamente serviços ao arguido A, e mais atendendo à circunstância concreta de que o arguido A pediu várias vezes aos guardas policiais para lhe dar oportunidade quando os guardas policiais verificaram que os dois indivíduos do interior da China só conseguiram apresentar os documentos de identificação emitidos pela autoridade da China, este Tribunal entende que o facto de o arguido contratar dois trabalhadores ilegais imputado pelo Ministério Público deve ser provado.
Pelos expostos, as condutas do arguido preenchem todos os elementos subjectivo e objectivo do crime de emprego ilegal, constituindo dois crimes de emprego ilegal p. e p. pelo artigo 16.º n.º 1 da Lei n.º 6/2004, que cada um é punido com pena de prisão até 2 anos.”; (cfr., fls. 65 a 66).
Perante isso, “quid iuris”?
Eis o nosso ponto de vista.
Cremos que razão tem o Exm° Representante do Ministério Público quando no seu douto Parecer, invoca o art. 16°, n° 2, da Lei n° 6/2004, onde se preceitua que:
“Para os efeitos previstos no número anterior, presume-se existir relação de trabalho sempre que um indivíduo é encontrado em obras de construção civil a praticar actos materiais de execução das mesmas. ”
De facto, provado estando que os referidos trabalhadores estavam a levar a cabo “obras de decoração”, que tinham sido encomendadas ao arguido, ora recorrente, adequado se nos mostra de considerar que estas mesmas “obras” não deixam de ser “obras de construção civil”, daí se devendo presumir a existência de “relação de trabalho” entre os mesmos, tornando-se desta forma desnecessária a prova da “retribuição” (ou, melhor, do quantum desta), para tal efeito. (Note-se também que o Acórdão deste T.S.I. de 26.10.2006, tirado no Proc. n° 350/2006, tinha como objecto uma “relação de trabalho” que nada tinha a ver com “obras de construção civil”, inviável sendo assim a aplicação do n° 2 do art. 16° da Lei n° 6/2004).
— Aqui chegados, afigura-se de se consignar ainda o que segue.
A matéria de facto pelo Tribunal a quo indicada como provada e atrás transcrita é omissa quanto ao “elemento subjectivo” do crime em questão, sendo também certo que, como se viu, em sede de fundamentação, consignou o Mm° Juiz a quo que preenchido estava tal elemento, acabando por condenar o ora recorrente pela prática de 2 crimes de “emprego ilegal”.
Admitindo-se outro entendimento, cremos, assim, que inviável é manter-se a condenação decretada.
Com efeito, preceitua o art. 12° do C.P.M. que:
“Só é punível o facto praticado com dolo ou, nos casos especialmente previstos na lei, com negligência.”
No caso, elementos não existem para, com a devida e necessária segurança, considerar-se que incorreu o Mm° Juiz a quo em “manifesto lapso passível de correcção” em virtude de mero esquecimento na inclusão na factualidade provada que agiu o ora recorrente, voluntariamente, com dolo, (ou negligência), e sabendo que proibida e punida era a sua conduta.
Nesta conformidade, e observado que foi o contraditório, mostra-se-nos de dar como verificado o vício de “contradição insanável na fundamentação”, (art. 400°, n° 2, al. b) do C.P.P.M.)., pois que o Mm° Juiz a quo, apesar de, em sede da matéria de facto, não dar como provado o referido “elemento subjectivo”, acaba por afirmar pela verificação do mesmo, vindo a proferir decisão condenatória com base em tal consideração
Sendo tal vício insanável por este T.S.I., há assim, atento o preceituado no art. 418° do C.P.P.M., que ordenar o reenvio dos presentes autos para novo julgamento.
Decisão
4. Nos termos e fundamentos expostos, decide-se anular o julgamento efectuado, determinado-se o reenvio dos autos para novo julgamento.
Custas, pelo decaimento, pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6 UCs.
Honorários ao Exm° Defensor no montante de MOP$1,800.00.
Macau, aos 03 de Junho de 2010
José Maria Dias Azedo (Relator)
Chan Kuong Seng (Primeiro Juiz-Adjunto)
(subscrevo a decisão e a fundamentação deste acórdão, porque o arguido chegou a alegar materialmente a contradição entre a fundamentação da sentença recorrida e a matéria de facto julgada, contradição essa que existe efectivamente nos autos).
João A. G. Gil de Oliveira (Segundo Juiz-Adjunto)
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