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Processo n.º 155/2010
(Autos de Conflito de Competência e Jurisdição)
Data: 30/Set./2010

Conflito negativo suscitado entre a Mma Juiz do Ju´zo das Pequenas Causas Cíveis e o Mmo Juiz do 3º Juízo Cível
    
    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    
    I - RELATÓRIO
    A Magistrada do Ministério Público junto deste Tribunal de Segunda Instância vem, ao abrigo do disposto no art. 36º do CPCM, requerer a resolução do CONFLITO NEGATIVO DE COMPETÊNCIA, suscitado entre o Mmº Juiz do Juízo de Pequenas Causas Cíveis e a Mmª Juiz do 3º Juízo Cível, ambos do Tribunal Judicial de Base, nos termos e com os seguintes fundamentos :

    Ambos os Magistrados atribuem reciprocamente a competência, negando a própria, para conhecer da Acção de Cumprimento de Obrigações Pecuniárias, registados sob o n.º PC1-10-0053-COP, em que é Autor A e Réu B.

    Os despachos em que assim foi entendido foram devidamente notificados e transitaram em julgado.

    Nos termos do n.º 13 do art. 36º da Lei de Bases de Organização Judiciária, caber ao tribunal de Segunda Instância “conhecer dos conflitos de competência entre Tribunais de Primeira Instância”.

    Pelo que este Tribunal é legalmente competente para conhecer do conflito em causa e decidi-lo.
    Nestes termos requer seja solucionado o conflito, depois de ouvir os respectivos Magistrados Judiciais e seguidos os demais trâmites legais.
Ouvidos os respectivos Magistrados Judiciais, a Mma Juiz do Juízo Cível sustentou doutamente o seu despacho, reforçando e desenvolvendo os argumentos expendidos, tal como resulta de fls 70.
O Exmo Senhor Procurador Adjunto emite douto parecer, pronunciando-se a favor da posição sustentada pela Mma Juiz do 3º Juízo Cível, relevando o facto de ter sido peticionado o cumprimento de uma obrigação pecuniária.
     
     Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
    Com pertinência, registam-se os despachos em confronto.
    A formulou oportunamente o seguinte pedido com base nos seguintes factos:

“Descrição dos factos em que assenta a pretensão do autor (origem do crédito ou da obrigação) :

B era o meu amigo. Em 15 de Agosto de 2005, B telefonou-me que precisava de uma quantia de vinte mil por ter problemas familiares, perguntando-me se podia emprestar-lhe o dinheiro e, para garantir o empréstimo, ele podia vender a fracção autónoma em que estava a residir que se situava na Avenida do General Castelo Branco nº XXX, Edifício XXX, Xº andar “X”. Disse ainda que apenas lhe dei uma quantia de vinte mil a titulo de sinal e que ele ia assinar o contrato de compra e venda para vender a fracção autónoma sita na Avenida do General Castelo Branco nº XXX, Edifício XXXX, Xº andar “X”. Acrescentou que caso não me devolvesse o dinheiro pedido antes do prazo do contrato, iria vender-me a fracção acima mencionada. Achei que as condições oferecidas eram aceitáveis e, então, no dia 15 de Agosto, fomos ao Segundo Cartório Notarial de Macau para assinar o contrato de compra e venda da fracção autónoma situada na Avenida do General Castelo Branco nº XXX, Edifício XXX, Xº andar “X”. Para ser verdade, foram reconhecidas as assinaturas pelo notário. Assim, dei o montante de vinte mil a B e este assinou o recebimento, prometendo que ia devolver o dinheiro pedido antes do prazo do contrato. Dois dias antes do termo do referido prazo, B telefonou-me para lhe dar mais dias porque tinha dificuldades em devolver o dinheiro naquela altura e garantiu que me devolveria a quantia pedida. Considerando que ele era o meu amigo, prolonguei o prazo para ele liquidar a dívida. Depois, sempre que lhe telefonei, respondeu que não tinha dinheiro por enquanto para me devolver e pediu-me mais tempo.

Capital inicial em dívida: MOP20.600,00 (por extenso: Vinte mil e seiscentas patacas)

Juros: Desde / / a / / , à taxa legal, no valor de MOP.
Desde / / a / / , à taxa legal, no valor de MOP.
Desde / / a / / , à taxa legal, no valor de MOP.

Valor total: MOP.

    Outros Pedidos: MOP , referente a .

Termos em que, deve a presente acção ser julgada procedente e provada e, por via dela, ser o R. condenado em MOP20.600,00 (por extenso: vinte mil e seiscentas patacas), acrescidos de juros legais vincendos após a propositura da acção e até integral pagamento, bem como das custas e procuradoria.

Para tanto, deverá o R. ser citado para contestar a presente acção, com as cominações legais, seguindo-se os ulteriores termos.”
    
    A Mma Juiz do JPCC fez exarar o seguinte:
    “Nos presentes autos, o A. A instaura acção contra o R. B, requerendo a condenação na devolução do sinal no montante de MOP$20,600.00 com base de que o contrato – promessa de compra e venda de uma fracção imóvel em que o R. se figura vendedor não foi cumprido.
    Entendemos que a restituição do sinal devia ser consequência natural da resolução do contrato bilateral – o pedido principal nos presentes autos.
    O pedido da declaração de resolução dum contrato não se constitui no de condenação em pagamento de quantia certa em cumprimento de obrigação pecuniária e está fora da competência do Juízo de Pequena Causas Cíveis prevista no art. 1285º, n.º 1, als. a) e b) do CPC.
    Nestes termos e conforme o art. 33º, n.º 1 do CPC, determina-se que os autos sejam remetidos aos Juízos Cíveis deste Tribunal para o que tido por conveniente.”

Por seu turno, a Mma Juiz do 3º JC proferiu o despacho seguinte:
    “O artigo 1285º do Código de Processo Civil dispõe:
    “1. Seguem a forma do processo especial referente a pequenas causas as acções cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de primeira instância e que se destinem a qualquer um dos seguintes fins:
a) A condenação no pagamento de quantia certa em cumprimento de obrigações pecuniárias;
b) O exercício dos direitos que a lei atribui ao consumidor.”

   O artigo 28º da Lei de Bases de Organização Judiciária dispõe:
   “Competem aos Juízos Cíveis as causas de natureza cível que não sejam da competência de outros juízos, bem como as causas de outra natureza que não caibam na competência de outros juízos ou tribunais, incluindo todos os seus incidentes e questões.”
   
   O artigo 29º - A da Lei de Bases de Organização Judiciária dispõe:
   “Sem prejuízo de outras que por lei lhes sejam atribuídas, são da competência dos Juízos de Pequenas Causas Cíveis as acções que devam seguir os termos do processo especial referente a pequenas causas, incluindo todos os seus incidentes e questões.”
   
   Tendo em consideração as normas jurídicas supracitadas e os acórdãos nºs 431/2007 e 424/2007 do Tribunal de Segunda Instância, este Juízo não tem competência para julgar esta causa. Após a confirmação, envie-se o processo ao Juízo de Pequenas Causas Cíveis para os devidos efeitos.”
    
    III – FUNDAMENTOS
    O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se estamos perante uma situação que integra a competência do Juízo de Pequenas Causas.
    Basicamente, enquanto a Mma Juiz titular daquele juízo diz que o que está em causa é a resolução do contrato, a Mma Juiz titular do juízo Cível contrapõe dizendo que não obstante a autonomização das obrigações de indemnização, o certo é que elas se materializam ou concretizam a final numa verdadeira obrigação pecuniária.
    Cremos que lhe assiste razão.
    Na verdade, para além das obrigações de facere, de restituição ou de reparação natural, praticamente todas as outras obrigações se reconduzem a uma obrigação pecuniária, seja ela de substituição ou não. O juiz do Juízo de Pequenas Causas não pode estar dotado de nenhuma insuficiência técnica ou deminutio, não obstante o escopo legislativo de para ali se canalizarem as acções em princípio mais simples - o que não significa a que por vezes não sejam complexas – de forma a deixar de enquadrar juridicamente as questões que lhe são colocadas. Digamos que a pequena importância está no pequeno valor material das questões, já não assim no valor e complexidade jurídica das causas que lhe são submetidas.
    É desta forma que tem de descortinar a fonte da obrigação que se desdobra em diferentes prestações, contraprestações e se pode materializar a final numa obrigação pecuniária.
    Ora, o legislador não distinguiu quando estabeleceu a competência daquele Juízo.
    Os Juízos de Pequenas Causas Cíveis foram instituídos pela Lei 9/2004, estabelecendo o seu artigo 3º que se aditava à Lei de Bases de Organização Judiciária um artigo 29º-A com o seguinte teor "Sem prejuízo de outras que por lei lhes sejam atribuídas, são da competência dos Juízos de Pequenas Causas as acções que devem seguir os termos do processo especial referente a pequenas causas, incluindo todos os seus incidentes e questões."
    Ao mesmo tempo que se aditava este preceito à Lei de Bases da Organização Judiciária, acrescentava-se ao Código do Processo Civil, entre outros, o artigo 1285º cujo teor se transcreve:
    "1. Seguem a forma do processo especial referente a pequenas causas as acções cujo valor não exceda a alçada dos tribunais de primeira instância e que se destinem a qualquer um dos seguintes fins :
    a) A condenação no pagamento de quantia certa em cumprimento de obrigações pecuniárias ;
    b) O exercício dos direitos que a lei atribui ao consumidor.
    2. Para os efeitos do disposto no n.º 1, e sem prejuízo da consideração autónoma das prestações de execução periódica, atender-se-á, na fixação do valor da causa, ao valor global da relação jurídica de que emerge o pedido do autor, sendo irrelevante o seu fraccionamento arbitrário com o mero propósito de aproveitar esta forma de processo especial.
    3. O aumento do valor da causa resultante de eventual dedução de pedido reconvencional é irrelevante para efeitos da determinação da forma de processo aplicável e da recorribilidade da sentença.”
    Perante isto, parece que se verificam, no caso, os três requisitos de que se faz depender esta forma de processo especial: o valor da acção não excede a alçada dos tribunais da primeira instância ( 50,000.00 MOP ); pretende-se a condenação no pagamento de quantia certa; esse pagamento resulta de obrigações pecuniárias.
    Atente-se no facto de a lei não distinguir entre pedido e causa de pedir. Alei faz depender apenas a competência, no primeiro requisito, de situações em que esteja apenas em causa a condenação no pagamento de obrigações pecuniárias.
    Seguimos aqui a posição já anteriormente adoptada por este Tribunal e referida pela Mma Juiz do JC.1
    É na Doutrina que se deve enquadrar o que seja uma obrigação pecuniária - já que a lei a não define -, embora com previsão no artigo 543º e segs. Do CC, ocupando a secção VI do Capítulo III, do Livro II, relativo às modalidades das Obrigações.
    Diz-se pecuniária “a obrigação que, tendo por objecto uma prestação em dinheiro, visa proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies possuam como tais.” Ou “a que tendo por objecto uma prestação em dinheiro visa proporcionar ao credor o valor que as respectivas espécies possuam como tais”, só sendo “pecuniária quando na fixação da prestação se atende ao valor da moeda devida e não às espécies concretas ou individualmente determinadas, ou ao género de certas espécies monetárias, abstraindo do seu valor liberatório ou aquisitivo.”2
    Dito de outra forma, obrigação pecuniária é aquela cuja prestação debitória consiste numa quantia de dinheiro, que é tomada pelo seu valor propriamente monetário, a que tem por objecto uma pura e simples quantia pecuniária, pagável em quaisquer espécies admitidas pelo sistema monetário visado – escudos, marcos, etc.. 3
O que importa aqui relevar é a forma como o A. configurou o pedido formulado. E não haja dúvida que a configurou como uma obrigação pecuniária preenchendo todos os requisitos que justificam o recurso ao referido processo especial. Se tal quantia é legítima ou se é devida, isso é outra questão e por isso mesmo, da sua justeza e legalidade o Tribunal curará em sede de acção declarativa, podendo a acção assumir contornos mais ou menos complexos.
Repare-se que perante eventual complexidade que se antevia o interessado não mencionou qual a causa de pedir, limitando-se a descrever os factos e a formular o pedido de pagamento de dada quantia, limitando-se a utilizar a expressão da linguagem laica só queria que ele lhe devolvesse o dinheiro.
A roupagem jurídica do caso submetido às Pequenas Causas tem de ser assumida pelo julgador. Foi isto que o legislador pretendeu para simplificar a vida às pessoas.
     O legislador de Macau não foi tão restritivo como foram outros legisladores, citando-se aqui o exemplo em termos de Direito Comparado, do caso português em que se sujeitaram ao processo de injunção cível apenas as obrigações pecuniárias resultantes de contratos de valor ou as obrigações emergentes de transacções comerciais.4
     Isto, para concluir que não obstante a fonte da obrigação em causa, o pedido formulado e a decisão proferir não deixará de consubstanciar eventualmente uma obrigação pecuniária reclamada pela Autora, como consequência mediata do alegado incumprimento contratual sendo de considerar que uma obrigação de indemnização se pode transformar numa obrigação pecuniária.
    A lei fala de obrigações pecuniárias sem estabelecer qualquer distinção, designadamente entre as obrigações de quantidade e as dívidas de valor. Umas e outras constituem obrigações pecuniárias.
    E sobre esta questão diz, com Antunes Varela,5 que há uma forte e compreensível tendência na doutrina para destacar ainda do comum das obrigações pecuniárias as chamadas dívidas de valor (Wertschulden lhes chamam também os autores alemães), às quais não seria aplicável o princípio nominalista. Trata-se de dívidas que não têm directamente por objecto o dinheiro, mas a prestação correspondente ao valor de certa coisa ou ao custo de determinado objectivo, sendo o dinheiro apenas um ponto de referência o um meio necessário de liquidação da prestação. Será por exemplo, o caso do direito à legítima, quando integrada em dinheiro; é o caso da indemnização, quando a reconstituição natural (a reparação em espécie) não seja possível.
    Na sua opinião trata-se, ao cabo e ao resto de obrigações pecuniárias, uma vez que a sua liquidação é feita ou tem de ser efectuada em dinheiro: O problema que está verdadeiramente em causa nas situações em regra destacadas pelos autores é o de saber a que momento deve atender-se na fixação do montante da obrigação. E, nesse aspecto, é inquestionável a existência de casos em que o pensamento da lei conduz, excepcionalmente, à fixação do montante da prestação num momento posterior à constituição da obrigação, mais próximo da época do cumprimento.

Não deixamos de acompanhar este entendimento.
Não obstante o legislador autonomizar as obrigações de indemnização das obrigações pecuniárias, destinando-lhe uma secção à parte e não obstante a reparação pecuniária ser subsidiária da reparação natural - artigos 556º e 560º do CC -, o certo é que a partir de um dado momento a obrigação de indemnização passa a obrigação pecuniária.
Mas este argumento sistemático não é decisivo, devendo contar a real natureza da obrigação. Aliás, tradicionalmente, a obrigação de indemnização não era tratada como uma modalidade de obrigações, mas sim em sede do incumprimento das obrigações.6
O facto é que a obrigação de indemnização pode transformar-se numa obrigação pecuniária e no caso sub judice o certo é que, tal como o réu configura o ressarcimento do seu prejuízo, fá-lo em termos de obrigação pecuniária.7
Se tem ou não razão, essa é outra questão. Formula um pedido de restituição de uma quantia que, segundo ele, terá emprestado, em termos de uma obrigação pecuniária substitutiva que impende, na sua óptica, sobre a Autora.
Como vimos, o legislador podia ter limitado, como acontece noutras longitudes, o âmbito material destas acções especiais, mas limitou-se a considerar o valor das acções de obrigações pecuniárias, independentemente da sua origem.
    Podemos, assim, concluir que, quando o artigo 1285º do Código de Processo Civil se refere às obrigações pecuniárias tem presente, sem quaisquer limitações, à noção atrás explicitada a qual abarca, assim, tanto as chamadas obrigações de quantidade como a categoria de dívidas de valor.
Nesta conformidade, decidir-se-á no sentido de considerar competente o Juízo das pequenas causas para julgar o presente caso.
    
    IV – DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em deferir a competência do presente caso ao Juízo das Pequenas Causas Cíveis.
    Sem custas por não serem devidas.
Macau, 30 de Setembro de 2010,

João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Tam Hio Wa (Primeira Juiz-Adjunta) Lai Kin Hong (Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Ac. TSI, de 10/4/08, proc. 431/07
2 - A. Varela, Das Obrigações, 5ª ed., 1º - 804 ss

3 - Almeida Costa, Dir. Das Obrigações, 4ª ed. - 499

4 - Dec.-Lei 269/98, de 1 de Set.
5 - Das Obrigações em Geral, Almedina, I, 2000, 10ª ed., 859 e 860
6 - Vd. mesmo autor, ob. e local cit.
7 - Galvão Telles, Dto das Obrigações, 7ª ed., 1997, 214
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