Processo n.º 576/2009
(Recurso Penal)
Data: 30/Setembro/2010
Assuntos :
- Escutas telefónicas; meios proibidos de prova
Sumário :
1. Não há meio de prova proibido, não ocorre nulidade de escutas telefónicas, se não há intercepção ilícita e gravação de escutas telefónicas não autorizadas.
2. Assim, não ocorre nulidade de provas, se a testemunha, em julgamento, se limita a referir que ouviu uma conversa telefónica entre o arguido e a vítima, com o consentimento presumido desta, em momento e local em que estava presente, conversa essa reproduzida em audiência.
3. A transcrição dessa conversa no processo, não tendo sido objecto de valoração por parte do tribunal não inquina a convicção formulada e justificada na sentença com vários elementos probatórios, para além do referido depoimento
O Relator,
Processo n.º 576/2009
(Recurso Penal)
Data: 30/Setembro/2010
Recorrente: A
Objecto do Recurso: Acórdão condenatório da 1ª Instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
A, tendo sido condenado pelo crime de corrupção passiva para acto ilícito, não executado, p. e p. pelo n° 2 do art. 337º do CP, na pena de 1 ano de prisão efectiva, não se conformando com a pena de prisão que lhe foi aplicada, essencialmente, porque o Tribunal "a quo" valorou em audiência de julgamento escutas telefónicas não autorizadas e, como tal nulas, e também porque - tendo em conta a curta duração da pena, a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime - a pena que lhe foi imposta poderia e deveria ter sido suspensa na sua execução, vem interpor recurso, alegando em sede conclusiva:
a) Vem o presente recurso interposto do acórdão proferido em 1ª Instância que não obstante ter absolvido o recorrente, A do crime por que vinha acusado, de abuso de poder (art. 347º do CP), condenou-o pelo crime de corrupção passiva para acto ilícito, não executado, p. e p. pelo n° 2 do art. 337º do CP, na pena de 1 ano de prisão efectiva.
b) Não se conforma o recorrente com a pena que lhe foi aplicada, essencialmente, porque, salvo o devido respeito, o Tribunal "a quo" valorou em audiência de julgamento escutas telefónicas não autorizadas e, como tal nulas, e também porque - tendo em conta a curta duração da pena, a personalidade do arguido, as suas condições de vida, a sua conduta anterior e posterior ao crime - a pena que lhe foi imposta poderia e deveria ter sido suspensa na sua execução.
c) Tribunal "a quo" fundamentou a sua convicção, entre outras, no depoimento do agente do CCAC, B, o qual "... muito claramente explicou o conteúdo das chamadas telefónicas entre o ofendido e o arguido."
d) Compulsados os autos, verifica-se a fls. 65-V a 66-V, que o CCAC procedeu à gravação de conversas telefónicas entre o arguido e o ofendido, tendo sido elaborado o respectivo auto.
Ou seja, a citada testemunha depôs sobre o que ouviu e transcreveu nos autos.
e) Contudo, verifica-se que, a fls. 42 dos autos, existe uma promoção do MP no sentido de proceder à gravação das conversas telefónicas dos telefones com os n° XXX e XXX, propriedade do ofendido, sem que o Mº JIC a tenha autorizado, nos termos do n° 1 do art. 172º do CPP.
f) Aliás, expressamente negou a respectiva autorização (cfr. fls. 45), já que, por um lado, não se revelaria de grande interesse e, por outro lado, não se estaria na presença de um crime punível "com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos."
g) Ora, não tendo sido preenchidos os requisitou e condições previstos nos actos 172º e 173º do CPP, aquelas escutas telefónicas estão feridas de nulidade, não devendo, por isso, ter sido valoradas, como foram expressamente, pelo Tribunal "a quo".
h) Significa, pois, que, tendo o Tribunal "a quo" valorado expressamente na formação da sua convicção tais escutas telefónicas ilegais, não é agora possível saber qual seria a convicção do Tribunal "a quo", não fôra a existência daquela transcrição de escutas telefónicas constante dos autos (fls. 65-V a 66-V) e em que medida é que este facto influenciou a convicção do Tribunal recorrido na condenação imposta ao arguido recorrente.
i) O acórdão em apreço é, salvo o devido respeito, e por estes motivos, nulo, nos termo do art. 109º, n° 1 do CPP.
j) Fundamenta-se, pois, o presente recurso, nesta parte, na "... inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada" (art. 400º, n° 3 do CPP).
Impõe-se, por isso, o reenvio do processo para novo julgamento (art. 418º do CPP), sem a ponderação da prova proibida.
Quando assim se não entende, o que se admite sem conceder,
I) Entende o recorrente estarem reunidos os pressupostos legais para a suspensão da execução da pena de prisão de um ano que lhe foi aplicada.
m) A generalidade da doutrina vibra sempre em volta da ideia de que a pena de privação da liberdade é a ultima ratio da política criminal. E, na verdade, "trata-se de uma extrema ratio".
n) Tendo o recorrente sido condenado na pena de um ano de prisão, era de esperar a suspensão da sua execução.
Considera, assim, o ora recorrente que foi violado o disposto no artigo 48º do Código Penal.
o) No presente caso, e em face do princípio geral ínsito no artigo 64º do Código Penal, nada justifica que se remova o recorrente da comunidade onde está estavelmente inserido, para a qual tem contribui do com o seu trabalho, quebrando as suas ligações familiares e retirando-o do convívio afectivo da sua família que dele precisa, espiritualmente mas, acima de tudo, materialmente.
p) Além do que, o ora recorrente, após os factos relatados nos autos, nunca mais cometeu qualquer crime, demonstrando uma boa conduta e tendo, aliás retomado o seu posto de trabalho.
Razão pela qual salvo o devido respeito, a suspensão da pena eventualmente aplicável cumpre plenamente o fim da prevenção geral e especial, eventualmente acompanhada de deveres e regras de conduta, nos termos dos artigos 49º e 50º do CP.
Termos em que deverá ser dado provimento ao recurso nos termos supra expostos.
O Digno Magistrado do MP oferece douta resposta, procurando demonstrar no essencial a sem razão do recorrente.
O Exmo Senhor Procurador Adjunto emitiu o seguinte douto parecer:
Subscrevemos as criteriosas explanações do nosso Exmº. Colega.
E nada temos, de relevante, a acrescentar-lhes.
Inexiste, desde logo, a nulidade invocada pelo arguido.
Trata-se, aliás, como se sublinha na resposta à motivação, de um equívoco do mesmo.
A pena aplicada, por outro lado, não deve ser suspensa na sua execução.
Nada se apurou, de facto, em benefício do recorrente.
Em termos agravativos, por seu turno, impõe-se realçar, antes do mais, a grande intensidade de dolo que presidiu à sua actuação.
E os motivos do crime são, também, altamente censuráveis, por não terem qualquer justificação.
O condicionalismo apontado não propicia, assim, uma prognose favorável à luz de considerações de prevenção especial.
Não pode deixar de salientar-se que o arguido se remeteu a uma negativa pertinaz.
E esse comportamento inculca adequação dos factos à sua personalidade.
As razões de prevenção geral contrariam, igualmente, a aplicação da pena de substituição em questão.
Em sede de prevenção positiva, há que salvaguardar a confiança e as expectativas da comunidade relativamente à validade da norma violada, através do “restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime" (cfr. Figueiredo Dias, Temas Básicos da Doutrina Penal, 106).
E, a nível de prevenção geral negativa, não pode perder-se de vista o efeito intimidatório subjacente a esta finalidade da punição.
Não pode concluir-se, em suma, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
O que vale por dizer que não se verifica o pressuposto material exigido pelo art. 48°, n.° 1, do citado C. Penal.
Deve, pelo exposto, o recurso ser julgado improcedente - ou até, mesmo, manifestamente improcedente (com a sua consequente rejeição, nos termos dos artigos 407°, n° 3-c, 409°, n° 2-a e 410°, do C. P. Penal).
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se do acórdão recorrido o seguinte:
”(...)
Após a audiência de julgamento, ficaram provados os seguintes factos:
À tarde do dia 7 de Março de 2005, C foi informado pelo investigador da 2ª classe D da Polícia Judiciária e dirigiu à Secção da Investigação e Combate ao Roubo da Polícia Judiciária situada na Rua Central para efeitos de inquirição e investigação.
O arguido A é investigador da 1ª classe da respectiva Secção, como o seu colega D teve outra missão oficial de serviço, por isso o arguido assumiu o trabalho e acompanhou as medidas acima referidas.
Naquele dia, enquanto o arguido A inquiriu C, o arguido disse-lhe que ele é suspeito de um roubo que ocorreu em 2003, no mesmo dia, por consentimento de C, foi efectuada a revisão e busca domiciliária.
Após a conclusão das medidas acima referidas, na Polícia Judiciária, o arguido A entregou um cartão de visita a C ( vide o cartão de visita constante das fls. 92 dos autos), em que contém o seu telemóvel n.º XXX, para que C possa contactar com A no futuro e forneça pistas sobre o caso acima mencionado.
Cerca das 14h00 no dia 12 de Março do mesmo ano, durante a inquirição, o arguido esteve a par de que C se dedicava ao trabalho de reparação eléctrica, então telefonou C para reparar uma máquina de DVD, marcando um encontro na proximidade do Banco XX na XXX para entregar a DVD a C .
Cerca das 3h00 à tarde do dia 13 de Março do mesmo ano, o arguido A encontrou-se com C num café da Taipa, C entregou a DVD reparada ao arguido.
No encontro, o arguido A perguntou a C que será necessário pagar o custo dos reparos, C considerou que esteve sob investigação do arguido A e sentiu que o arguido não tinha intenção de pagar o custo dos reparos, então respondeu: "apenas um problema de linha, não é necessário substituir peças, assim sendo, gratuitamente."
O arguido A não perguntou mais sobre o custo específico dos reparos, nem pagou as despesas de reparação, a seguir, o arguido entregou a C outra máquina de DVD de marca FUNAI e um gravador de vídeo de marca SAMPO para efeitos de reparação.
Durante o encontro acima referido, o arguido A revelou a C que há registos que mostravam que C tinha usado o telemóvel de marca NOKIA, o qual foi roubado no caso em causa.
Pelas 21h40 do mesmo dia, o arguido A telefonou novamente a C, combinou a encontrar no Café XX situado perto da XX de XX, durante o encontro, o arguido A afirmou ao C que o seu "chefe" tinha dado instruções específicas que pode ser realizada a sua detenção como suspeito de roubo.
O arguido A disse ainda a C que o seu chefe tinha dito sobre o seu caso:「Ou “resolver” o caso, ou lixa o caralho, quer vivo quer morto à escolha dele」,「Pode detê-lo a qualquer momento」. Em seguida, o arguido explicou a C os processos de “detenção”, “encapuzar” e “comparecer regularmente”.
C entendeu que “resolver” o caso significa que ele pode ser dispensado de ser detido e suspeito, sob condição de pagar de dinheiro aos agentes que investigam o caso, e bem sabendo que se não comprometeu a pagar, provavelmente, pode ser preso e, depois, perguntou ao arguido A o montante específico, o arguido afirmou que isso dependeu de que quanto dinheiro esteve pronto, ele ainda disse “deve pagar MOP$ 30.000,00 a 50.000,00 para este tipo da coisa. ”
De manhã de 14 de Março do mesmo ano, C apresentou a participação ao Comissariado contra a Corrupção.
Às 21h50 do dia 14 de Março, o arguido A apressou C por telemóvel n.º XXX, e indicou que o custo de “resolver ” o caso é de pelo menos MOP$ 30.000,00, e exigiu a resposta de C antes do dia 17 de Março( Quinta-feira).
No dia 16 de Março, pelas 17h00, C telefonou o arguido A e disse que D tinha contactado com ele, perguntou sobre as informações do caso, o arguido A disse que como C não permitiu em entregar o dinheiro, “o chefe mandou provavelmente os seus colegas a fazer alguma coisa. ”
Poucos minutos depois, o arguido A telefonou C e disse que ele deve pagar pelo menos uma metade de MOP$ 30.000,00 como condição de cessação da investigação em que C envolveu.
Cerca de 40 minutos depois, C telefonou o arguido A por marcar o encontro na Comp. Eng. Eléctrica XX, situada na XXX, n.º XX, XX, para entregar o pagamento às 18h00 do mesmo dia.
Como o arguido A não compareceu na hora marcada, C telefonou o arguido às 18h09min37seg e às 18h47min24seg respectivamente, enquanto o arguido estava na aula de computador na sala do XXº andar do XX na XXX ( vide os registos telefónicos das fls.280), depois o arguido A comprometeu-se a chegar ao local combinado dentro dos 15 minutos.
Às 19h19min49seg, o arguido A chegou à encruzilhada da Rua de XX e da Rua de XX, telefonou a C que não houve lugares de estacionamento e exigiu que o C leve uma máquina de VCD já reparada para a porta da Comp. Eng. Eléctrica acima referida à sua espera ( vide os registos telefónicos das fls. 280) .
Mais tarde, o arguido A chegou à porta da Comp. Eng. Eléctrica XX, C entregou um saco de plástico de cor de rosa que contém a máquina de VCD ao arguido A.
Após o arguido A recebeu o saco de plástico, parou no lugar de estacionamento de motociclos e colocou o saco no assento do motociclo.
A seguir, C tirou dinheiro no valor de MOP$ 15.000,00 em numerário sem nenhumas embalagens do bolso das calças para entregar ao arguido A, o dinheiro em numerário supra mencionado já foi fotocopiado antecipadamente por Comissariado contra a Corrupção, e anexado às fls. 54 e 63 dos presentes autos.
O arguido A abriu o saco de plástico, de modo que C coloque o dinheiro no saco.
Depois de receber o dinheiro, o arguido A comprometeu-se a C que pode tratar bem a “resolver” o caso, e foi embora com o saco de plástico, quando chegar ao passeio da encruzilhada da Rua de XX e da Rua de XX, o arguido foi preso por agentes do Comissariado contra a Corrupção.
Os agentes do Comissariado contra a Corrupção detiveram em flagrante o saco plástico na posse do arguido A, no qual, contém uma máquina de VCD, um controlo remoto, MOP$ 15.000,00, um telemóvel utilizado pelo arguido A para comunicação, com n.º XXX, bem como um talão de penhor (vide o auto de apreensão, constante das fls.68 dos autos) .
Os custos da reparação das máquinas de DVD e de VCD reparadas por C são respectivamente de MOP$ 200,00 e de MOP$ 250,00, ainda há uma máquina de vídeo que não foi reparada, o custo da reparação é indeterminado (vide o auto de apreensão, constante das fls. 115 dos autos) .
O arguido A é funcionário público, sabendo que o funcionário não pode solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou de omissão contrários aos deveres do cargo.
O arguido abusou de poderes inerentes às suas funções ou violou dolosamente os deveres, nomeadamente o dever de imparcialidade, demandou em privado a pessoa que estava a ser investigado por ele (reparação dos aparelhos electrónicos) mas não pagou a remuneração.
O arguido A praticou os actos acima mencionados no intuito de obter interesses ilegítimos para si ou terceiros, causando prejuízos a terceiros e danos à imparcialidade e credibilidade das autoridades da RAEM.
O arguido agiu livre, voluntário e conscientemente os actos supra mencionados.
O arguido sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida pela lei.
O arguido é investigador da 1º classe da Polícia Judiciária, auferindo pelo índice 470 da tabela indiciária.
O arguido é casado, tendo a seu cargo a mãe, a mulher e dois filhos.
O arguido não confessou o respectivo facto acusado, e é delinquente primário.
Factos não provados: Os outros factos constantes da acusação, e ainda:
O arguido abusou de poderes inerentes às suas funções ou violou dolosamente os deveres, nomeadamente o dever de imparcialidade, demandou em privado a pessoa que estava a ser investigado por ele (reparação dos aparelhos electrónicos) mas não pagou a remuneração.
***
Juízo dos factos:
O Juízo dos factos foi feito com base nas declarações prestadas na audiência de julgamento pelo arguido, os depoimentos prestados na audiência de julgamento pelas testemunhas C, E, F, dois agentes da P.J. e testemunha do arguido, as descrições claras em relação aos diálogos telefónicos da corrupção entre o arguido e a vítima prestadas na audiência de julgamento pelo agente do Comissariado contra a Corrupção B, as descrições claras e objectivas sobre o processo e resultado da investigação e as declarações prestadas na audiência de julgamento pelos cinco agentes do Comissariado contra a Corrupção que são responsáveis pela investigação do caso, bem como outras provas documentais constantes nos autos ( vide fls. 425 e 426 dos autos).
3. Como neste caso não se prova que o arguido A abusou de poderes inerentes às suas funções ou violou dolosamente os respectivos deveres, nomeadamente o dever de imparcialidade, demandou em privado a pessoa que estava envolvida a ser investigado por ele (reparação dos aparelhos electrónicos), mas não pagou a remuneração, portanto, os actos do arguido não constituem um crime acusado de abuso de poder, pelo que, deve o arguido ser absolvido desde crime.
De acordo com os facto provados, o arguido A é funcionário público, sabendo que o funcionário não pode solicitar ou aceitar, para si ou para terceiro, sem que lhe seja devida, vantagem patrimonial, ou a sua promessa, como contrapartida de acto ou de omissão contrários aos deveres do cargo. Mas como os factos supra referidos ainda não foram realizados. Portanto, a conduta do arguido deve ser condenada por um crime de corrupção passiva para acto ilícito previsto e punível pelo n.º 2 do artigo 337º do Código Penal de Macau.
(...)”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
-Nulidade das escutas telefónicas não autorizadas
-Suspensão da execução da pena de prisão
2. Vem o recorrente levantar uma questão relativa à nulidade das escutas telefónicas, elemento probatório em que o Tribunal se terá louvado para formar a sua convicção e porque não se sabe a dimensão e relevância desse elemento para a formação de tal convicção impor-se-ia o reenvio para novo julgamento.
A linearidade da questão suscitada e o anátema que encerra contra o Comissariado para a Corrupção pareceria à primeira vista uma questão incontornável, tornando-se claríssimo que os Tribunais da RAEM não podem pactuar com práticas ilegais e com obtenção e reprodução de provas proibidas.
Mas se nos detivermos e analisarmos com mais cuidado a questão que nos é trazida logo se observa que as coisas não são exactamente como descritas e que afinal aquele Comissariado não é o vilão que se pinta nem se deixou de se pautar pelas regras próprias do Estado de Direito que ele próprio deve preservar.
Resulta dos autos, tal como o recorrente reporta, que oportunamente foi solicitada no âmbito da investigação que se procedesse às escutas telefónicas em relação ao arguido o que foi indeferido pelo respectivo Mmo JIC. É verdade que não deixaria de ser grave se, não obstante esse indeferimento o Comissariado contra a Corrupção tivesse procedido à intercepção e gravação de conversas telefónicas não autorizadas, sendo certo que aquele organismo não pode estar acima da lei e dos Tribunais da RAEM.
3. Avivemos o que sustenta o recorrente:
“O Tribunal a quo fundamentou a sua convicção, entre outras, no depoimento do agente do CCAC, B , o qual "... muito claramente explicou o conteúdo das chamadas telefónicas entre o ofendido e o arguido."
Compulsados os autos, verifica-se a fls. 65-V a 66-V, que o CCAC procedeu à gravação de conversas telefónicas entre o arguido e o ofendido, tendo sido elaborado o respectivo auto.
Ou seja, a citada testemunha depôs sobre o que ouviu e transcreveu nos autos.
Contudo, verifica-se que, a fls. 42 dos autos, existe uma promoção do MP no sentido de proceder à gravação das conversas telefónicas dos telefones com os n° XXX e XXX, propriedade do ofendido, sem que o Mº JIC a tenha autorizado, nos termos do n° 1 do art. 172º do CPP.
(...)
A transcrição das escutas telefónicas constam, como se disse, dos autos e é a clara evidência da execução de escutas ilegais, por parte do CCAC.
Em manifesta oposição a uma ordem emanada do Mº JIC.
Ora, não tendo sido preenchidos os requisitos e condições previstos nos artigos 172º e 173º do CPP, aquelas escutas telefónicas estão feridas de nulidade, não devendo, por isso, ter sido valoradas, como foram expressamente, pelo Tribunal a quo".
4. Desde logo há algumas correcções a fazer.
O Tribunal não se louvou na reprodução dessas conversas telefónicas constantes da transcrição constante dos autos. O que o Tribunal disse foi que “ O Juízo dos factos foi feito com base nas declarações prestadas na audiência de julgamento (...) as descrições claras em relação aos diálogos telefónicos da corrupção entre o arguido e a vítima prestadas na audiência de julgamento pelo agente do Comissariado contra a Corrupção B ...”
Daqui resulta claramente a sem razão do recorrente pela razão simples de que o Tribunal não formulou uma convicção no conteúdo do auto transcrito no processo, mas sim numa conversa ouvida pela testemunha, referida em audiência, o que desde logo será suficiente para neutralizar a argumentação referente à pretensa nulidade das escutas.
Em lado algum se diz que o Tribunal valorou uma conversa transcrita nos autos. O Tribunal diz tão somente que valorou o depoimento de uma testemunha que ouviu uma determinada conversa ocorrida em momento e lugar em que estava presente.
Depois, num outro plano, não resulta dos autos que a transcrição da conversa tenha resultado de uma intercepção não autorizada, bem podendo ser o resultado da conversa presenciada pelo agente ou até gravada pelo destinatário. Todos sabemos que a maioria dos telemóveis permite ao receptor proceder à gravação de uma dada conversa.
Não é verdade que a fls. 65v. a 66v. se encontre a transcrição das escutas telefónicas, não sendo clara evidência da execução de escutas ilegais, por parte do CCAC.
O que se encontra transcrito são duas conversas telefónicas entre o arguido e o já referido C, a que o agente do CCAC terá assistido por se encontrar, no momento, na companhia do C ou porque o destinatário, vítima, gravou essa conversa.
O agente do CCAC não procedeu à intercepção ilegal de qualquer conversa e se foi testemunha presencial dessas conversas telefónicas isso nada tem de ilegal.
Ora, o que temos por certo é que tal conversa foi reproduzida em audiência, como a lei processual determina, e não foi valorada como elemento probatório autónomo enquanto auto correspondente a uma gravação ilícita ou ilegítima.
O que teria importado, isso sim, seria que o recorrente tivesse tido a preocupação de saber como se chegou àquela transcrição, sendo a intercepção ilícita apenas uma hipótese não demonstrada nos autos. O que teria importado é que a testemunha quando reproduziu essa conversa tivesse sido inquirida sobre a forma como dela se inteirou.
5. Cabe realçar que na conversação ocorrida não deixam de se observar dois elos, o arguido e a vítima, com interesses que neste caso se contrapõem, não estando já em causa a protecção do núcleo de interesses ligados directamente ao arguido cidadão e cuja privacidade tenha de ser garantida por via do regime da proibição de provas. Isto para nos interrogarmos no sentido de não deixar de ser legítimo que a vítima alvo da actuação criminosa esteja impedida de provar, porventura com os únicos meios possíveis, as investidas do agente criminoso, o que não deixa de configurar uma situação de caducidade da protecção jurídica, como assinala o Prof. Costa Andrade. 1
É conhecida, aliás, Jurisprudência Comparada exactamente no sentido de ser admitida e valorada a gravação de conversas telefónicas pela vítima no âmbito do Processo Penal.2
Assim falece razão ao recorrente na sua primeira linha argumentativa.
6. Passemos agora à questão relativa à medida da pena.
O recorrente, insurgindo-se contra os malefícios de uma pena curta de prisão, vem propugnar pela suspensão da execução da pena de prisão.
Importa assinalar, como bem diz o Digno Magistrado do MP, que a questão deve ser analisada à luz dos pressupostos da suspensão da execução da pena de prisão e não já da estigmatização de uma pena curta de prisão.
Alíás esta asserção doutamente desenvolvida e doutrinariamente bem apoiada por bando do recorrente, em tese, não deve deixar de ser umprincípio orientador do Direito Penal, não sem que comece a sofrer algumas invectivas tal como vimos assinalando.
Vamos assistindo, cada vez mais, em termos de Direito Comparado, a posições doutrinárias e jurisprudenciais que inflectem essa concepção, tendo tais penas um efeito dissuasor muito considerável e sendo um factor muito importante para o governo de uma sociedade e orientação dos cidadãos.
Não se trata apenas da aplicação do conceito dissuasor, originário do direito anglo saxónico, em particular, americano, do short, sharp and shock, não apenas para certos tipos de criminalidade como o do colarinho branco (expressamente defendido pela pena do Prof. Figueiredo Dias), como ainda para outros tipos criminais.
A discussão a partir da reflexão dos doutrinadores está aberta, na senda, porventura, da reflexão de Roxin, para quem a coerência entre os fins das penas e os fins do Estado é especialmente importante num sistema de aplicação e de execução de penas, pois o Estado democrático de Direito, laico e fundado na soberania popular não pode perseguir o aperfeiçoamento mormente do cidadão adulto, mas deve assegurar as condições de uma convivência pacífica.3
Para, a partir daí se começar a interiorizar que a finalidade ressocializadora não é a única nem mesmo a principal finalidade das pena, mas antes uma das finalidades que deve ser perseguida na medida do possível, só se concebendo um espaço ressocializador mínimo com a faculdade que se oferece ao delinquente de uma forma espontânea de ajuda a si próprio, levando uma vida sem cometer crimes. Acabar para sempre com a delinquência é uma pretensão utópica e a busca da readaptação do delinquente a qualquer preço é uma invasão indevida na liberdade de escolha da sua escala de valores, devendo passar essa ânsia de ressocialização pela sua adesão e condições objectivas que façam acreditar nessa via.4
7. Importa então saber se se observam no caso os pressupostos que devem estar subjacentes a uma suspensão da pena.
E aí, manifestamente que não é possível formular um juizo de prognose favorável, se já não tanto pela personalidade do arguido, mais em face da necessidade de resposta ao acautelamento das finalidades da punição, vistas as circunstâncias do crime, tudo como flui do art. 48º do CP.
A corrupção está na ordem do dia por toda a parte e impera um sentimento de intransigência com essa chaga social impeditiva da boa organização social
Há que salvaguardar a confiança e as expectativas da comunidade relativamente à validade da norma violada, através do restabelecimento da paz jurídica comunitária abalada pelo crime.
Acresce que o arguido não confessou a prática dos factos por que foi condenado e, consequentemente, não demonstrou qualquer arrependimento.
Por outro lado é um agente policial que violou de forma grave os seus deveres profissionais, o que, como refere o douto acórdão, tem influência negativa na sociedade e na imagem da PJ perante aquela.
A celeridade e desfaçatez da actuação relevam como pouco abonatórios da personalidade em presença.
Entende assim este Tribunal que a pena concreta de um ano de prisão efectiva aplicada ao crime de corrupção passiva para acto ilícito, situando-se ao nível do primeiro terço da respectiva moldura abstracta não se desenquadra dos parâmetros legais vertidos nos artigos 40º e 65º do CP, não sendo ter como verificados os pressupostos do art. 48º do CP.
Nesta conformidade negar-se-á provimento ao recurso.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente com taxa de justiça de 6Ucs.
Macau, 30 de Setembro de 2010,
_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeiro Juiz-Adjunto)
_________________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - “Sobre as Proibições de Prova em Processo Penal”, Coimbra Editora, 1992, pág. 254 e 255
2 - Acs RP, de 17/Dez/97, CJ,XXII, V, 240 e RP, de 16/Março/2005, proc. 0441904
3 - Claus Roxin, Política Criminal e Justiça Jurídico-Penal, 2000, 20
4 - Anabela Miranda, Reinserção Social: Para uma definição do conceito, RDPC, Rio de janeiro, 34, 30
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
576/2009 1/24