Processo n.º 763/2010
(Recurso Penal)
Data: 28/Outubro/2010
Assuntos :
- Medida de coacção; fortes indícios
- Prisão preventiva
Sumário :
1. A expressão fortes indícios significa que a prova recolhida tem de deixar uma clara e nítida impressão de responsabilidade do arguido, em termos de ser muito provável a sua condenação, equiparando-se a tais indícios os vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e é arguido o responsável por ele.
2. No momento da aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime.
3. Em princípio, quando haja indícios que o agente cometeu um dos crimes previstos no art.º 193º, n.º3 do Código de Processo Penal, a lei presume que se verificam os requisitos previstos no art.º 188º do mesmo código, devendo o Tribunal aplicar ao agente a medida de prisão preventiva.
O Relator,
Processo n.º 763/2010
(Recurso Penal)
Data: 28/Outubro/2010
Recorrente: A - preso
Objecto do Recurso: Sentença condenatória da 1ª Instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
Inconformado com o despacho que lhe aplica a medida de prisão preventiva, o recorrente A, melhor identificado nos autos, vem interpor recurso junto deste Tribunal de Segunda Instância, alegando em síntese conclusiva:
Não se preenchem os pressupostos da prisão preventiva
O Sr. Juiz proferiu, em 31 de Agosto de 2010, o despacho que aplicou a medida coerciva de prisão preventiva ao recorrente. O recorrente não se conforma com tal despacho pelas seguintes razões:
Segundo os dados nos autos, os guardas policiais revistaram o recorrente e encontraram uma nota de 10 patacas contendo vestígios da Ketamina e três saquinhos plásticos transparentes para guardarem cartões telefónicos. Na busca à sua residência, encontraram uma nota de 10 patacas, uma de 100 patacas e uma palha plástica de cor branca, contendo os três objectos vestígios da ketamina.
Além disso, o recorrente admitiu logo que tem o hábito de consumir drogas, quer na esquadra da policial durante a prestação de declarações, quer no primeiro interrogatório judicial.
O recorrente entende que não há indícios de que ele tenha cometido o crime de tráfico de estupefacientes e o seu entendimento é sustentado pelo auto de notícia lavrado pelo CPSP que indica os motivos da detenção dos dois arguidos - um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas p.p. pelo artº 14º da Lei nº 17/2009 e um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento p.p. pelo artº 15º da mesma lei.
De outro ponto de vista, caso o Tribunal acredite nas declarações de B, o mesmo ajudou o recorrente a transportar drogas para Macau para o consumo do recorrente e não destinadas à venda no território de Macau para obter lucros. Assim, há necessidade considerar se o acto do recorrente configura ou não o crime de tráfico de estupefacientes.
Vide a nota justificativa da proposta da Lei nº 17/2009, apresentada pelo Governo à Assembleia Legislativa: “A droga é uma questão permanente e complexa da sociedade actual que causa a desagregação de muitas famílias, afecta o desenvolvimento saudável dos jovens e resulta consequências pessoais e sociais devastadoras, pois esta para além de prejudicar a saúde física das pessoas e ser um veículo de transmissão de doenças, origina também a ocorrência de outros actos criminosos, provocando o aparecimento de diversos factores instáveis no seio da sociedade.”
Mas há opiniões legislativas distintas quanto aos consumidores de estupefacientes, vide a fl. 3 do parecer nº 4/III/2009 da 2ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa – “Muitas jurisdições optaram por colocar o consumo de estupefacientes fora do âmbito da reacção penal. É uma opção que tanto os membros desta Comissão como o Proponente entendem que, nas actuais circunstâncias, ainda não é aconselhável para Macau.”
O consumo de estupefacientes não se enquadra na categoria dos crimes em muitos países por os consumidores não prejudicar muito gravemente outras pessoas na sociedade. Embora tal opção não seja aconselhável para Macau, a moldura penal é mais leve neste território.
In casu, se o recorrente pedisse a B para transportar drogas para Macau para o consumo dele e não destinadas à venda, assim, o seu acto não prejudicava a saúde das outras pessoas na sociedade mas só a sua própria. Assim sendo, segundo a intenção legislativa, o acto do recorrente não se enquadra no crime de tráfico de estupefacientes, devendo ser considerado o transporte de drogas para Macau para o consumo próprio.
Caso apareçam opiniões diferentes, há necessidade analisar o âmbito de aplicação do artº 11 da Lei nº 17/2009 a fim de verificar se o artº 11º é aplicável ao caso no pressuposto de que o Tribunal acredita as declarações de B.
Quanto ao âmbito de aplicação do artº 11º, vide as fls. 22 a 23 do parecer nº 4/III/2009 da 2ª Comissão Permanente da Assembleia Legislativa: “Repare-se que se o facto relativo à quantidade ganha proeminência entre os outros, tal não quer dizer que os anule. De resto, tenha-se presente a redacção do nº 1 não estabelece um quadro fechado de elementos para a avaliação da ilicitude consideravelmente diminuída. A quantidade é especialmente importante, mas tem que ser medida caso a caso frente aos outros elementos que permitam identificar uma ilicitude consideravelmente diminuída. O legislador não pretendeu reduzir esta avaliação a uma mera pesagem. Pretende sim que a quantidade sirva de elemento especial, mas não único. Isto é, pode suceder que num determinado caso concreto apesar da quantidade poder ser superior a cinco vezes a quantidade constante do mapa de referência de uso diário se venha a concluir pela ilicitude consideravelmente diminuída porque os outros elementos de avaliação assim indicam. Tal como o inverso também pode ocorrer.”
A intenção legislativa é muito explícita. Não pode incriminar o recorrente baseando-se apenas na quantidade das estupefacientes, devendo combinar também outros factores no caso. Dos dados constantes dos autos, o recorrente não vendeu as drogas a outrem que podiam prejudicar outras pessoas em termo de saúde física e mental. Pelo exposto, o acto dele não deve ser considerado tráfico de estupefacientes. Caso não assim entenda, deve considerar a aplicação do artº 11.
Caso entenda que o recorrente pediu ao outro arguido B para transportar drogas para Macau para o consumo dos dois, por outras palavras, as drogas transportadas não eram para vender a terceiros que podiam prejudicar a saúde de outras pessoas. Embora os dois arguidos sejam dois indivíduos, o acto de trazer drogas para Macau produz efeitos sobre os dois indivíduos, por isso, o que os dois fizeram deve ser considerado o acto praticado por um indivíduo, por consequência, são preenchidos os requisitos no artº 11 – circunstâncias atenuantes.
Pelo exposto, não existem fortes indícios de que o recorrente tenha praticado o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” p.p. pelo nº 1 do artº 8 da Lei nº 17/2009. Portanto, o despacho recorrido viola os artºs 186º, nº 1, al. a) e 193º, nº 3, al. c) do CPP.
Face a todo o exposto, entende não existirem fortes indícios nos autos de que o recorrente tenha praticado o crime previsto no nº 1 do artº 8º da Lei nº 17/2009 e que também não existem dados suficientes que preenchem os pressupostos para a aplicação da prisão preventiva, ou seja, os pressupostos previstos no artº 186º ou artº 193º do CPP.
Portanto, o despacho recorrido violará os artºs 186º, nº 1, al. a) e 193º, nº 3, al. c) do CPP, devendo o despacho recorrido ser revogado e, por consequência, eliminada a aplicação da prisão preventiva e decretada a aplicação da medida de coacção adequada.
O Digno Magistrado do MP oferece douta resposta, defendendo, em síntese:
Salvo o devido respeito, o Ministério Público não está de acordo com o entendimento por parte do recorrente que não se verificam dados suficientes nos autos que reúnam os requisitos para a aplicação a ele da medida coactiva de prisão preventiva.
De acordo com os dados constantes dos autos, verifica-se que existem condições para aplicar ao recorrente a medida de prisão preventiva; bem como, segundo as circunstâncias do caso, a decisão de aplicação ao recorrente da medida de prisão preventiva no despacho ora recorrido, também reúne a actual posição dominante na jurisprudência de Macau.
De acordo com a jurisprudência do processo n.º55/2001 do Tribunal de Segunda Instância, quando haja indicio que o agente cometeu o crime previsto no art.º 193º, n.º3 do Código de Processo Penal, a lei presume que se verificam os requisitos previstos no art.º 188º do mesmo código, e o Tribunal deve aplicar ao agente a medida de prisão preventiva.
Após ter analisado os teores das declarações prestadas pelo recorrente e pelo arguido B no interrogatório judicial, podemos verificar facilmente que o arguido B contou claramente a intensidade e o decurso da prática de crime por eles, o teor das suas declarações correspondem aos outros dados objectivos existentes nos autos, nomeadamente os registos de entrada e saída deles, bem como, os objectos encontrados na posse deles.
Pelo contrário, o teor das declarações prestadas pelo recorrente não é acreditável, nomeadamente, quanto às suas declarações sobre a finalidade dos três saquinhos de plástico transparente encontrados na sua posse, o motivo e o decurso do encontro que ele teve com o arguido B, bem como, o registo de conversa telefónica tida entre eles naquele dia de ocorrência.
Além disso, em conjugação com o teor das declarações feitas pelo arguido B, os registos de entrada e saída do recorrente e a quantidade e o tipo dos estupefacientes por si transportados, não é difícil verificar que existe uma discrepância evidente, entre os supracitados dados e o hábito e a intensidade do consumo de droga declarados pelo recorrente. Pelo que, é difícil acreditar que a finalidade de transporte de estupefacientes só serve para o seu consumo pessoal.
No dia de ocorrência, embora não fosse encontrada grande quantidade de estupefacientes na posse e na residência do recorrente, há fortes indícios que o recorrente e o arguido B, em comparticipação, praticaram o acto de tráfico ilícito de estupefacientes. Pelo que, se não haja outra prova forte para justificar, não se pode excluir simplesmente a existência de fortes indícios, por não se ter encontrado estupefaciente suficiente na posse do recorrente.
Pelo que se pode concluir que existem definitivamente fortes indícios que o recorrente, em co-autoria, cometeu um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas previsto no art.º 8º, n.º1 da Lei 17/2009. Sendo assim, o despacho recorrido não padece de qualquer vício de ilegalidade.
O Exmo Senhor Procurador Adjunto emite o seguinte douto parecer:
Os nossos Exmºs Colegas demonstram, concludentemente, a sem razão do recorrente.
E nada temos a acrescentar, de facto, às suas criteriosas explanações.
Deve ter-se como verificada, efectivamente, a forte indiciação que o art. 186º, n.º 1, al. a), do C. P. Penal, pressupõe e exige.
Basta atentar, para tanto, no auto de notícia que deu origem aos presentes autos e nos elementos referenciados no mesmo.
E, em casos como o presente, como é sabido, há que atentar, com particular acuidade, nas presunções naturais, ligadas a princípios de normalidade ou a regras gerais da experiência.
O crime em apreço, de acordo com o disposto no art. 193º, n.º 3, al. c), do C. P. Penal, implica, necessariamente, a imposição da prisão preventiva.
Este Tribunal, na verdade, tem reiterado a tese de que o Legislador local, com o estatuído nesse comando, previu a figura dos “crimes incaucionáveis”, invocando, nessa perspectiva, elementos jurisprudenciais e doutrinais (cfr., nomeadamente, ac. De 29-07-2004, proc. n.º 166/2004; e, mais recentemente, ac. De 12-06-2008, proc. n..º 339/2008).
Verificam-se, de qualquer forma, em concreto, as hipóteses contempladas nas als. A) e c) do art. 188º, do mesmo Diploma.
O perigo de fuga prende-se com a situação geográfica da RAEM, que favorece as deslocações para o exterior sem grandes dificuldades.
E é certo, igualmente, atentas a natureza e a gravidade do mesmo crime, que a restituição do recorrente à liberdade não deixaria de perturbar a tranquilidade pública.
Do exposto flui, em suma, que os fins da prisão preventiva não podem ficar satisfeitos, “in casu”, com a aplicação de outra(s) medida(s) de coacção.
Deve, pelo exposto, ser negado provimento ao recurso.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se o seguinte do despacho recorrido:t
“(…)
--Tendo analisado os dados constantes dos autos, nomeadamente as declarações prestadas pelo arguido B, e em consideração a quantidade dos estupefacientes apreendidos e a forma de transporte, o Tribunal entende que há fortes indícios de que os dois arguidos, B e A, cometeram, em co-autoria, o crime de “tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas” p.p. pelo nº 1 do artº 8 da Lei nº 17/2009. Também existem fortes indícios de que os dois cometeram um crime de consumo ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas e um crime de detenção indevida de utensílio ou equipamento p.p. pelos artºs 14º e 15º da mesma lei, respectivamente.
-- Ambos os arguidos, B e A, não são residentes de Macau.
-- O arguido B confessou o facto de ter transportado estupefacientes em co-autoria, do qual foi acusado.
-- O arguido A negou terminantemente a acusação de transportar estupefacientes.
-- Tendo em conta que o tráfico de estupefacientes afecte gravemente a segurança social e a fim de prevenir a fuga dos arguidos e a perturbação à tranquilidade social pelo referido acto ilícito, decido aplicar aos arguidos B e A a medida de coacção de prisão preventiva, ao abrigo dos artºs 176 a 178º, 186º, nº 1, al. a), 188º, als. a) e c) e 193º, nº 3, al. c) do C.P.P., para aguardarem o julgamento.
(...)”
III - FUNDAMENTOS
1. Fundamentalmente o que está em causa é saber se neste caso se se observam os pressupostos da aplicação d prisão preventiva ao arguido.
2. No despacho recorrido, depois de se considerar existirem fortes indícios que mostram que o arguido A terá cometido um crime de tráfico de estupefacientes, foi-lhe aplicada a prisão preventiva, consignando-se que “Tendo em conta que o tráfico de estupefacientes afecta gravemente a segurança social e a fim de prevenir a fuga dos arguidos e a perturbação à tranquilidade social pelo referido acto ilícito, decido aplicar aos arguidos B e A a medida de coacção de prisão preventiva”
Relevaram-se, pois, em sede dos pressupostos de tal medida de coacção, o perigo de fuga e o perigo de perturbação da tranquilidade pública e paz social.
3. O quadro legal de aplicação da prisão preventiva resulta do artigo 177º do C. de Proc. Penal (CPP) que prevê, no artigo 177º :
“(Condições gerais de aplicação)
1. A aplicação de medidas de coacção e de garantia patrimonial depende da prévia constituição como arguido, nos termos do artigo 47º, da pessoa que delas for objecto.
2. Nenhuma medida de coacção ou de garantia patrimonial é aplicada quando houver fundados motivos para crer na existência de causas de isenção da responsabilidade ou de extinção do procedimento penal.”
No artigo 186º do CPP:
“(Prisão preventiva)
1. Se considerar inadequadas ou insuficientes, no caso, as medidas referidas nos artigos anteriores, o juiz pode impor ao arguido a prisão preventiva quando:
a) Houver fortes indícios de prática de crime doloso punível com pena de prisão de limite máximo superior a 3 anos (...)”
No artigo 188º:
“(Requisitos gerais)
Nenhuma medida de coacção prevista no capítulo anterior, à excepção da que se contém no artigo 181º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do processo, nomeadamente perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de perturbação da ordem ou tranquilidade públicas ou de continuação da actividade criminosa.”
E no artigo 193º:
“(Aplicação da prisão preventiva em certos crimes)
1. Se o crime imputado tiver sido cometido com violência e for punível com pena de prisão de limite máximo superior a 8 anos, o juiz deve aplicar ao arguido a medida de prisão preventiva
2. Para efeitos do disposto no número anterior, considera-se cometido com violência o crime que suponha ou seja acompanhado de uma agressão à vida, à integridade física ou à liberdade das pessoas.
3. O disposto no nº 1 é correspondentemente aplicável ao caso em que o crime imputado, desde que punível com pena de prisão de limite máximo superior a 8 anos, for:
a) De furto de veículos ou de falsificação de documentos a eles respeitantes ou de elementos identificadores de veículos;
b) De falsificação de moeda, títulos de crédito, valores selados, selos e equiparados ou da respectiva passagem; ou
c) De produção ou tráfico ilícito de droga.”
4. A expressão fortes indícios significa que a prova recolhida tem de deixar uma clara e nítida impressão de responsabilidade do arguido, em termos de ser muito provável a sua condenação, equiparando-se a tais indícios os vestígios, suspeitas, presunções, sinais, indicações suficientes e bastantes para convencer que há crime e é arguido o responsável por ele.1
Nesta conformidade, afigura-se que há vários elementos indiciários que apontam para uma forte probabilidade de responsabilização do recorrente pelo crime que lhe é imputado, não se vendo razões para desacreditar desses indícios.
No momento da aplicação de uma medida de coacção ou de garantia patrimonial, não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos nos autos de que o arguido virá a ser condenado pela prática de determinado crime.
Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior; embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição.2
5. Antes de analisarmos os argumentos invocados pelo recorrente, importa atentar nas versões dos arguidos e nos elementos recolhidos dos autos.
No caso subjudice, no dia 31 de Agosto de 2010, cerca das 22H10, numa acção desencadeada pelos agentes policiais do CPSP junto da Praça das Portas do Cerco, estes interceptaram o recorrente e o outro arguido B, tendo encontrado na sola do sapato de desporto esquerdo do arguido B, os estupefacientes ora apreendidos nos autos, incluindo “Ketamina” e “Erimin 5”.
Entre os quais, “Ketamina”, incluindo os seus embrulhos, com o peso de 26.41 gramas, quanto aos “Erimin 5”, havia 16 comprimidos.
Foram encontrados ainda na posse do recorrente três saquinhos de plástico transparentes.
De acordo com as declarações prestadas no 1º interrogatório judicial pelo arguido B, este referiu que em Julho do corrente ano, por volta de 3 a 4 vezes, ele e o recorrente tinham colaborado para transportar clandestinamente drogas para Macau, e, em Agosto do corrente ano, por volta de 7 a 8 vezes, ele e o recorrente tinha colaborado para transportar drogas para Macau.
Quanto ao modo de transporte clandestino de drogas para Macau, o recorrente comprou drogas primeiro, depois os dois foram a um cubículo da casa de banho no átrio de partida do Posto Fronteiriço da China, onde o recorrente lhe entregou a droga, escondendo-as ele na sola do sapato e só depois foi para Macau. Depois, na casa de banho da paragem de autocarros na cave da Praça das Portas do Cerco, ele devolveu as drogas ao recorrente.
Ambos concordaram que cabia ao recorrente, em primeiro lugar, adquirir drogas no Interior da China, depois ambos iriam encontrar-se no átrio de entrada do Posto Fronteiriço da China, altura em que o recorrente ia entregar-lhe drogas, e ele ia falar com um funcionário do Interior da China, dizendo-lhe que se esquecera de trazer o salvo-conduto. Após autorização dada pelo funcionário, iriam encontrar-se, outra vez, no átrio da entrada do Posto Fronteiriço da China indo encontrar-se na casa de banho daquele átrio a fim de devolver ao recorrente todas as drogas.
De todas as vezes, o recorrente pagou-lhe MOP600,00 como remuneração de ajuda para o transporte de drogas para Macau.
No dia da ocorrência, o recorrente telefonou-lhe, tendo os dois, conforme consentimento, ido à casa de banho no átrio da partida do Posto Fronteiriço do Interior da China, o recorrente entregou-lhe drogas (ora apreendidos nos autos) e MOP600,00, e ao mesmo tempo, entregou-lhe uma nota de dez patacas, enrolada contendo “ketamina” para este consumir imediatamente; após o consumo, ele devolveu a referida nota de dez patacas ao recorrente e este imediatamente colocou-a no bolso dianteiro das calças.
6. Por seu turno, de acordo com as declarações prestadas no 1º interrogatório judicial pelo recorrente, os três saquinhos de plástico transparentes encontrados na sua posse serviam para guardar cartões telefónicos, não tendo tido tempo e guardar os quatro cartões telefónicos, uma vez que foi interceptado pela autoridade policial.
Em Agosto, por sete vezes, ele encontrou ocasionalmente o recorrente na “terra de ninguém” junto das Portas do Cerco, depois, ambos entraram em Macau.
Ele soube que B tinha perdido o seu salvo-conduto.
No dia de ocorrência, eles também se encontraram ocasionalmente nas Portas do Cerco e anteriormente ele tinha telefonado a B a fim de saber o número de telefone de um outro amigo.
O recorrente disse que consumia “ketamina” há três meses, consumindo, de cinco em cinco dias ou sete em sete dias, quantidade de cerca de meio grama.
7. Para além destas declarações , de acordo com os registos de entrada e saída dos dois arguidos, no período de Julho e Agosto, verifica-se que, por várias vezes, os dois tinham entrado e saído no mesmo dia e nas horas muito próximas ou iguais, no Posto Fronteiriço das Portas do Cerco.
Foi encontrado na posse do arguido B, MOP600,00 em numerário e um telemóvel.
Segundo o registo das conversas telefónica existentes naquele telemóvel, no dia de ocorrência, ou seja no dia 30 de Agosto de 2010, B teve três vezes conversa telefónica com o recorrente, sendo respectivamente às 21H21, 21H23 e 21H37.
Foi encontrada no bolso dianteiro das calças do recorrente uma nota de dez patacas enrolada com vestígios de pequena quantidade de pó branco.
8. Perante isto há um conjunto de desacertos e incongruências que fazem descrer da versão do arguido de que seria mero consumidor.
A versão do arguido B diverge manifestamente da do recorrente, aceitando aquele a prática do crime.
É certo que a podia adquirir e transportar para o recorrente, mas aí não faz sentido a forma a engenhosa da entrega e da passagem pela Alfândega, como não faz o pagamento, como não faz a deslocação do recorrente, bem podendo esperar em Macau, como não faz a entrega do estupefaciente ainda antes da entrada em Macau, como não faz sentido que não fosse o recorrente a adquiri-la, já que ali também ele se deslocava, como não faz o número de vezes de deslocações e a periodicidade do consumo, como não faz o número da ocasionalidade dos encontros entre os arguidos, como não faz a divergência entre ambos sobre o encontro no dia em que foram “apanhados”, como não faz a história dos cartões.
O facto de o arguido ser consumidor não exclui algo mais. A realidade da vida ensina-nos que por vezes tudo pode acontecer, mesmo o mais inesperado, mas a experiência da vida também nos ensina que uma coisa são as condutas normais e outras as que fogem a esse padrão.
Também o argumento de nos termos do auto de notícia ao recorrente ser apenas atribuído um crime de consumo e detenção de utensilagem, como está bem de ver, não colhe minimamente, sendo à autoridade judiciária que compete, no caso, enquadrar juridicamente o ilícito praticado.
Pelo que, em conjugação com o teor das declarações prestadas pelos dois arguidos no interrogatório judicial e dos dados objectivos existentes nos autos, podemos concluir que existem definitivamente fortes indícios - sublinhe-se que é apenas disso que se trata neste momento, pois não obstante de se tratar de algo mais do que suspeitas, algo mais do que meros indícios, ainda não se trata de provas - de que o recorrente, em co-autoria, terá cometido um crime de tráfico ilícito de estupefacientes e de substâncias psicotrópicas previsto no art.º 8º, n.º1 da Lei 17/2009.
De acordo com a Jurisprudência deste Tribunal, em princípio, quando haja indícios que o agente cometeu um dos crimes previstos no art.º 193º, n.º3 do Código de Processo Penal, a lei presume que se verificam os requisitos previstos no art.º 188º do mesmo código, devendo o Tribunal aplicar ao agente a medida de prisão preventiva.
A não ser que resulte manifestamente que na situação em concreto nenhum daqueles requisitos se observa, o que não é o caso, aliás, como bem vincou o Mmo Juiz recorrido e o o MP não deixa de sublinhar.
Pelo que, o despacho recorrido não padece de qualquer vício de ilegalidade. Por falta de fundamento, a motivação apresentada pelo recorrente deve ser julgada improcedente.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pelo recorrente, com taxa de justiça que se fixa em 6Ucs.
Macau, 28 de Outubro de 2010,
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João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira (Relator)
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Tam Hio Wa (Primeiro Juiz-Adjunto)
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Lai Kin Hong (Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Ac. do TSI de 18/5/00, proc. 81/00
2 - Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 1999, II, 240
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