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    Processo n.º 686/2009
  (Recurso Penal)
  
  Data: 29/Julho/2010
    
  Assuntos :
    - Furto de shampoo no supermercado; pena curta de prisão
    
    Sumário :
    1. Em princípio devem-se evitar as penas curtas de prisão, visto o seu efeito estigmatizante.
2. Mas tal princípio começa a ser posto algo em crise, não apenas a partir do conceito dissuasor, originário do direito anglo saxónico, em particular, americano, do short, sharp and shock, não só para certos tipos de criminalidade como o do colarinho branco (expressamente defendido pela pena do Prof. Figueiredo Dias), como ainda para outros tipos como o da condução em estado de embriaguez ou nos crimes de violência doméstica.
3. Esta reflexão passa a equacionar-se perante a criminalidade em geral, a partir da ideia de que o fim ressocializador não é o único fim das penas.
    4. Daí que cada caso seja um caso e assim, se a arguida num espaço de alguns anos sofreu já diversas condenações, já beneficiou de uma suspensão anterior, esteve já detida, nomeadamente por crimes ligados ao consumo de estupefacientes, não é de crer que se possa formular um juízo favorável a uma reabilitação, o que não é possível sem a adesão da interessada, não comprovada perante o seu passado.

O Relator,




Processo n.º 686/2009
(Recurso Penal)

Data: 29/Julho/2010

Recorrente: A

Objecto do Recurso: Sentença condenatória da 1ª Instância

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    
    I - RELATÓRIO

1. A, arguida dos autos acima referidos, com os demais sinais dos autos, tendo sido condenada pelo cometimento, em autoria material e na forma consumada, de um crime de furto p. p. pelo n.º 1 do art.º 197º do Código Penal em 25 de Junho de 2009, vem interpor recurso, alegando em síntese conclusiva:

    1. O presente recurso é interposto pelo facto de que o acórdão padece os seguintes vícios (sic.): violou os dispostos nos art.ºs 40º, 48º e 64º do Código Penal (o n.º 1 do art.º 400º do Código de Processo Penal).
    2. O objectivo da execução hesitante (a suspensão da pena) reside em dois vertentes: o vertente negativo visa a evitar o mal trazido pela pena privativa de liberdade de curto prazo e pelo regime de antecedente criminal; o vertente positivo visa a promover o agente a manter os actos bondosos e não voltar a cometer crimes na situação de manter a possibilidade da execução da pena.
    3. A decisão da suspensão da execução da pena deve ter base numa previsão social que seja favorável ao arguido, isto é, tal decisão tem objectivo de que o réu a considerava como advertência e não volte a cometer crimes no futuro.
    4. Consoante os dados dos autos, é bastante comprovar que a recorrente é uma toxicodependente e tem participado no curso de desintoxicação realizado pela Divisão de Tratamento e Reinserção Social do Instituto de Acção Social do Governo da RAEM, tendo andado a receber tratamento com metadona até ao presente.
    5. De acordo com os dados dos autos, “alegou que a recorrente que andava desempregada por um longo prazo e via-se em apuros económicos, por isso, tirou os champôs em causa para o uso próprio.”
    6. A recorrente alegou que trabalha actualmente num café como auxiliar, auferindo MOP$ 6.000,00 mensalmente, e tem um filho, que andava na escola, a seu cargo.
    7. A concessão da suspensão da execução da pena à recorrente facilita a sua reintegração social e a aceitação pela sociedade, atingindo, assim, a finalidade da prevenção geral e especial da aplicação da pena. Isto é adequado e suficiente.
    8. Ao contrário, a pena de prisão não é o meio mais efectivo para a prevenção de crimes, a recorrente pode ser afectada pelos maus hábitos da prisão, dificultando a sua reinserção social.
    9. O despacho recorrido violou, assim, os dispostos nos art.ºs 40º, 48º e 64º do Código Penal.
    10. Deve revogar a sentença recorrida, e conceder à recorrente a suspensão da execução da pena, nos termos dos art.ºs 48º a 55º do Código Penal aplicável.

    Pede, a final, se julgue procedente o presente recurso e se revogue a sentença recorrida, nos termos dos art.ºs 48º a 55º do Código Penal aplicável, concedendo à recorrente a suspensão da execução da pena.

2. O Digno Magistrado do MP oferece douta resposta, concluindo:

    1. Quanto à aplicação da suspensão da execução da pena, além de preenchimento ao requisito de forma de que diz respeito à pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos, tem de preencher também ao requisito de substância que deve concluir que a advertência pela pena de prisão basta para realizar a finalidade da punição, isto é, deve obter a previsão do bom comportamento do arguido perante a intimidação da pena prisional.
    2. Dado que, entre 2003 e 2007, a arguida tem sido condenada pela prática de crimes por 8 vezes e, ainda por cima, um ano depois de ser libertada da prisão, a arguida voltou a cometer estes crimes, por isso, a previsão é negativa, sendo inaplicável a suspensão da sua execução da pena.
Face aos exposto, defende a improcedência do recurso.

3. O Exmo Senhor Procurador Adjunto emite o seguinte douto parecer:
    O nosso Exmº. Colega demonstra, concludentemente, a insubsistência da motivação da recorrente.
    E nada se impõe acrescentar, de relevante, às suas criteriosas explanações.
    A pretensão em questão, atento o “quantum” da pena, deve ser apreciada à luz do art. 44º do C. Penal.
    No âmbito dos fins das penas, há que ter em conta, com particular acuidade, razões de prevenção especial de socialização.
    Há que relevar, a propósito, em especial, o passado criminal da arguida.
    Isso mesmo se ilustra, profusamente, na resposta à motivação.
    É patente, assim, a sua “desatenção ao aviso de conformação jurídica da vida” ínsito nas condenações em causa (cfr. Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, 253).
    Deve, pelo exposto, o recurso ser julgado improcedente.
    
    4. Foram colhidos os vistos legais.
    
    
    II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se da sentença recorrida a factualidade seguinte:
”(...)
Conforme a lei, o presente tribunal procedeu à audiência de julgamento à porta aberta do presente processo com a intervenção do tribunal singular, porquanto:
A fim de adquirir interesses ilegítimos, a arguida A veio, no dia 7 de Dezembro de 2007, à “Armazém de vendas Watson’s” situado no Largo do Senado de Macau, visando a tirar e apropriar-se de mercadorias da respectiva armazém de vendas sem fazer o pagamento.
À noite, pelas 21h30, a arguida entrou na respectiva Armazém de Vendas. Pelas 22h00, a arguida tirou quatro champôs hidratantes equilibrados da marca “Vs Sassoon” e um champô hidratante profundo da mesma marca (com o valor de cada um MOP$ 72,00, no total de MOP$ 360,00) que se encontravam nos expositores da armazém perto do canto das escadas do 1.º andar, metendo logo três dos quais na mala que ela trazia, e escondendo os outros dois nas mangas do seu casaco que estava carregado na mão, cujos punhos estavam apertados pela corda.
Todo o processo de furto praticado pela arguida foi testemunhado pelo guarda de segurança B da respectiva Armazém de Vendas.
Obtendo os cinco champôs em causa, a arguida, sem efectuar o pagamento, abandonou imediatamente a respectiva Armazém de Vendas, mas foi interceptada pelo guarda de segurança B mesmo fora da porta de segurança.
A arguida agiu de forma livre, voluntária e consciente, visando a levar e apropriar-se de artigos acima referidos sem o conhecimento e o consentimento do seu proprietário.
A arguida sabia perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Em conformidade com o CRC, a arguida tem cometido crimes de consumo de drogas e de detenção indevida de cachimbos e outra utensilagem entre 2003 e 2007 e foi condenada na pena de prisão com execução suspensa e de prisão efectiva respectivamente. Tendo cumprido a pena, a arguida foi libertada em 21 de Novembro de 2006.
O ofendido (a Armazém de Vendas Watson’s) já retirou todos os artigos furtados sem qualquer perda.
*
Factos não provados: Nada a assinalar.
*
Analisando o depoimento prestado pelo testemunho e as provas documentais constantes dos autos, o presente tribunal formulou o juízo dos factos.
(...)”
               

    III - FUNDAMENTOS
    1. Fundamentalmente, o que está em causa no presente recurso é saber se é possível suspender a execução da pena imposta à arguida.
    Importa apreciar assim se, neste caso, a simples censura de facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
    
    2. O que vale por indagar se se verifica o pressuposto material exigido pelo art. 48°, n.° 1, do C. Penal que prevê:
    “1. O tribunal pode suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos se, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, concluir que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.
2. O tribunal, se o julgar conveniente e adequado à realização das finalidades da punição, subordina a suspensão da execução da pena de prisão, nos termos dos artigos seguintes, ao cumprimento de deveres ou à observância de regras de conduta, ou determina que a suspensão seja acompanhada de regime de prova.
3. Os deveres, as regras de conduta e o regime de prova podem ser impostos cumulativamente.
4. A decisão condenatória especifica sempre os fundamentos da suspensão e das suas condições.
5. O período de suspensão é fixado entre 1 e 5 anos a contar do trânsito em julgado da decisão.”
    
    3. Na base da decisão de suspensão da execução da pena deverá estar uma prognose social favorável, ou seja, a esperança de que arguida sentirá a sua condenação como uma advertência e de que não cometerá no futuro nenhum crime1.
    Se a ausência de antecedentes criminais por si só não chega para justificar uma suspensão de pena, como já tem sido afirmado pelos nossos Tribunais, não é menos certo que as condenações anteriores ou situações de reincidência não obstam decisivamente à possibilidade de se suspender a execução da pena de prisão aplicada em medida não superior a 3 anos, se se tiver como justificado formular a conclusão de que a simples censura do facto e a ameaça da prisão realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição.2
    É verdade que o tribunal deve correr um risco prudente, uma vez que esperança não é seguramente uma certeza. E se tem sérias dúvidas sobre a capacidade do arguido para compreender a oportunidade de ressocialização que lhe é oferecida, a prognose deve ser negativa.3
    Parece ser este o caso dos autos.
     Por outro lado, há que constatar que são os tribunais que lidam directamente com a arguido, que estão na normalidade dos casos em melhores condições para avaliar a personalidade do arguido e ajuizar da verificação ou não dos pressupostos da suspensão da execução da pena.
    3. Projectando agora estes considerandos no caso concreto, dir-se-á que o Mmo Juiz a quo não deixou de ponderar os aspectos concernentes à reinserção social do arguido e fê-lo, efectivamente, ao avaliar, nomeadamente, os seus antecedentes criminais.
    Fez constar da sentença o seguinte:
    “Em conformidade com o critério da medida da pena acima referido e atendendo às circunstâncias concretas deste caso, nomeadamente, a arguida tem vários registos criminais, entende o presente tribunal ser mais adequado condenar a arguida pelo cometimento de um crime de furto p. e p. pelo n.º 1 do art.º 197º do Código Penal, na pena de 3 meses de prisão. Nos termos da segunda parte do n.º 1 do art.º 44º do Código Penal, a fim de prevenir a arguida voltar a cometer crimes no futuro, a respectiva pena de prisão não será substituída pela pena de multa.
    Mais ao abrigo do art.º 48º do Código Penal, atendendo à personalidade do agente, às condições da sua vida, à sua conduta anterior e posterior ao crime e às circunstâncias deste, nomeadamente, a arguida, tendo cumprido a pena até 21 de Novembro de 2006, foi libertada e voltou a cometer o crime em apreço um ano depois de ser libertada, o presente tribunal endente, assim, que a simples censura do facto e a ameaça da prisão não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da punição, por isso, deve executar a pena de prisão acima referida.”
    São patentes as razões que levaram à não suspensão e assentam num juízo de desconfiança, vista as condenações anteriores e a propensão da arguida para o pequeno crime, porventura ligado até à sua toxico-dependência.
    Então, se assim é, não há garantias de que a arguida em liberdade, apenas com uma meaça de prisão se venha a comportar como deve ser. É certo que depois de cumprida a prisão pode vir a prevaricar de novo. Só que se espera que essa sanção sirva os fins das penas que são os da interiorização de uma condenação e a a consciência de de que no futuro as penas podem ainda ser mais pesadas.
    Posto isto, pouco mais haveria a dizer, sendo que qualquer pessoa de compreensão média fica a saber por que não deve merecer o arguido uma nova oportunidade.
    Reconhece-se assim que a arguida sofreu várias condenações, beneficiou de uma pena suspensa e nada disso a demoveu da senda criminosa.
    Não é possível, perante este quadro, formular um juízo de prognose favorável à arguida no sentido de a vermos como uma cidadã integrada e respeitadora das regras mínimas da convivência social.
    Entendeu o Mmo Juiz a quo, e bem, que vistas as finalidades da punição, punir um crime, para o qual a lei prevê a alternativa entre a prisão e a multa, com uma pena de prisão, nessa opção havendo, desde logo, feito a ponderação das circunstâncias desfavoráveis ao juízo de prognose decorrentes da anterior condenação.
    E aplicou ao arguido uma pena de prisão por três meses - numa moldura penal abstracta que é de 1 mês a 3 anos de prisão ou multa, decorrendo desta medida concreta, fixada criteriosamente e não posta em crise, que a culpa e a ilicitude foram graduadas em níveis não muito elevados.
    
    4. A recorrente alega que se está perante uma pena curta de prisão o que não é o melhor meio para a sua reintegração social.
    Esta concepção se é um princípio que decorre da articulação de vários normativos do nosso tecido jurídico-penal, não pode constituir uma panaceia universal para todas as situações.
     É certo que estamos perante uma pena curta de prisão e temos presente o efeito estigmatizante que essas penas podem ter, efeito esse assinalado por certa e autorizada Doutrina.
     No entanto, vamos assistindo, cada vez mais, em termos de Direito Comparado, a posições doutrinárias e jurisprudenciais que inflectem essa concepção, tendo tais penas um efeito dissuasor muito considerável e sendo um factor muito importante para o governo de uma sociedade e orientação dos cidadãos.
Não se trata apenas da aplicação do conceito dissuasor, originário do direito anglo saxónico, em particular, americano, do short, sharp and shock, não apenas para certos tipos de criminalidade como o do colarinho branco (expressamente defendido pela pena do Prof. Figueiredo Dias), como ainda para outros tipos como o da condução em estado de embriaguez ou nos crimes da violência doméstica.

A discussão a partir da reflexão dos doutrinadores está aberta e sem fronteiras, não sendo apenas válida para o white collar crime, na senda, porventura, da reflexão de Roxin, para quem a coerência entre os fins das penas e os fins do Estado é especialmente importante num sistema de aplicação e de execução de penas, pois o Estado democrático de Direito, laico e fundado na soberania popular não pode perseguir o aperfeiçoamento mormente do cidadão adulto, mas deve assegurar as condições de uma convivência pacífica.4

Para, a partir daí se começar a interiorizar que a finalidade ressocializadora não é a única nem mesmo a principal finalidade das pena, mas antes uma das finalidades que deve ser perseguida na medida do possível, só se concebendo um espaço ressocializador mínimo com a faculdade que se oferece ao delinquente de uma forma espontânea de ajuda a si próprio, levando uma vida sem cometer crimes. Acabar para sempre com a delinquência é uma pretensão utópica e a busca da readaptação do delinquente a qualquer preço é uma invasão indevida na liberdade de escolha da sua escala de valores, devendo passar pela essa ânsia de ressocialização pela sua adesão e condições objectivas que façam acreditar nessa via.5
    Este apontamento, apenas para constatar, ainda aqui, que não obstante se deva evitar a aplicação de uma pena curta de prisão, substituindo-a pelas penas alternativas e substitutivas que arrastam menos inconvenientes sociais, quer do ponto de vista institucional, quer do individual, quer do social, nos crimes pouco graves, o certo é que cada caso é um caso e só perante a situação concreta se pode aferir do melhor remédio/sanção.
   5. Assim se constata que ainda aqui, no caso em presença, se cumpriu a lei, respeitando-se os critérios do art. 48º do CP e que devem estar na base de uma suspensão ou não suspensão.
   
   4. Entende-se assim que o recurso se mostra manifestamente improcedente, devendo, consequentemente, ser rejeitado nos termos dos artigos 407º, n.º 3 - c), 409º, n.º 2 - a) e 410º, do C. P. Penal.

    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em rejeitar o recurso por manifestamente improcedente.
    
    Custas pelo recorrente, fixando em 5 UCs a taxa de justiça, devendo pagar ainda o montante de 3 UCs, a título de sanção, ao abrigo do disposto no artigo 410º, n.º 4 do CPP.
    
    Fixam-se os honorários do Exmo Defensor em MOP 1.000,00, a adiantar pelo GABPTUI.
Macau, 29 de Julho de 2010,

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

_________________________
Tam Hio Wa
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
    
    
1 - JESCHECK, citado a fls. 137 do Código Penal de Macau de Leal-Henriques/Simas Santos
2 - Acs do STJ de 12/12/2002 e 17/2/2000, procs.4196/02- 5ª e proc. 1162/99-5ª
3 - Leal Henriques e Simas , Santos, ob. cit., 137
4 - Claus Roxin, Política Criminal e Justiça Jurídico-Penal, 2000, 20
5 - Anabela Miranda, Reinserção Social: Para uma definição do conceito, RDPC, Rio de Janeiro, 34, 30
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