Processo n.º 28/2011. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A.
Recorridos: B.
Assunto: Divórcio. Interpretação da lei. Condições específicas do tempo em que é aplicada a lei. Dever de respeito. Agressões verbais e físicas. Comprometimento da vida em comum.
Data do Acórdão: 8 de Julho de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Chu Kin.
SUMÁRIO:
I - Na interpretação da lei, particularmente naquelas áreas onde é mais profunda a mudança das mentalidades e costumes sociais, o intérprete deve, além do mais, ter conta as condições específicas do tempo em que é aplicada.
II – A ocorrência de várias agressões verbais e físicas perpetradas por um dos cônjuges na pessoa do outro, preenche o requisito da reiteração da violação do dever de respeito, que pode comprometer a possibilidade de vida em comum.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Cível decretou o divórcio entre A e B, na acção de divórcio litigioso intentada pela primeira contra o segundo, com fundamento em violação do dever de respeito por parte do réu, por se ter provado que “A Autora e o Réu se agrediram um ao outro, física e verbalmente, por diversas vezes”.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 24 de Fevereiro de 2011, deu provimento ao recurso interposto pelo réu, revogando a sentença recorrida e absolvendo o réu do pedido.
Inconformada, interpõe a autora A recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
- Perante os factos provados não restam dúvidas, e ficou provado em sede de audiência e julgamento, que o R., ora Recorrido, violou o dever conjugal de respeito, ainda que a Recorrente também tenha violado esse mesmo dever de respeito.
- Essa violação não ocorreu de forma isolada, antes pelo contrário, foi fruto de repetidas e reiteradas violações através de agressões físicas e verbais, não sendo por isso exigível à Recorrente que mantenha o vínculo conjugal com o Requerido.
- As repetidas violações representam ofensas sucessivas e reiteradas à dignidade da pessoa humana.
- A violação tem de ser grave ou reiterada, e, neste caso em apreço, a gravidade da violação adveio também da sua repetição sistemática.
- Não é exigível ao cônjuge ofendido manter o vínculo conjugal.
- A ofensa à integridade física do outro cônjuge, constituiu, por excelência, uma inequívoca violação do dever de respeito a que os cônjuges estão vinculados, por imperativo do artigo 1533º do Código Civil de Macau (“CCM”), e é fundamento para o divórcio litigioso.
- Em sentido contrário e em nosso modesto entendimento, salvo todo o devido respeito, mal andou o Tribunal recorrido ao revogar a decisão proferida em Primeira Instância de acordo com as normas e Princípios legais que regem o contrato de matrimónio.
II - Os Factos
Foram considerados provados os seguintes factos:.
Da Matéria de Facto Assente:
- A A. e o R. contraíram casamento na República Popular da China em 15 de Agosto de 2001 [alínea A)].
- Pouco tempo após Outubro de 2001, o R. Adquiriu a fracção autónoma “A4”, 4.º andar, para habitação, do prédio sito no [Endereço (1)], descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob a descrição n.º XXXXX-I, por escritura pública outorgada em 5 de Março de 2002 [alínea B)].
- A fracção autónoma supra referia ficou registada apenas em nome do Réu mediante a inscrição n.º XXXXXX, pois a R. Declarou na dita escritura que era solteiro [alínea C)].
Da Base Instrutória:
- À data do casamento, os cônjuges tinham residência habitual na República Popular da China (resposta ao quesito da 1.º).
- Em Outubro de 2001 o Réu veio residir para Macau (resposta ao quesito da 2.º).
- Após a aquisição da dita moradia, o casal estabeleceu nela a casa de morada da família, quando a Autoria veio da RPC para viver como Réu (resposta ao quesito da 3.º).
- A Autora e o Réu se agrediram um ao outro, física e verbalmente, por diversas vezes (resposta ao quesito da 4.º).
- A autora recebeu, em 14 de Fevereiro de 2002, assistência médica no Centro Hospitalar Conde São Januário (resposta ao quesito da 6.º).
- O Réu, por vezes, se dirigia a Taiwan (resposta ao quesito da 18.º).
- A Autora veio a obter a BIRM em 2007 (resposta ao quesito da 38.º).”
III – O Direito
1. A questão a apreciar
Trata-se de saber se há causa para o divórcio entre as partes, por violação do dever de respeito por parte do réu, tendo-se provado que “A Autora e o Réu se agrediram um ao outro, física e verbalmente, por diversas vezes”.
2. Dever de respeito. Comprometimento da possibilidade da vida em comum.
O Tribunal Cível considerou haver motivo para o divórcio por terem ocorrido agressões verbais e físicas entre os cônjuges em várias ocasiões, o que constitui violação mútua do dever de respeito. Entendeu que a violação verificada foi grave porque afectou as raízes da relação matrimonial, não sendo de exigir que as partes se mantenham unidas numa relação que deixou de ter fundamento.
Já o TSI ponderou serem insuficientes os factos provados para se poder decretar o divórcio. Entendeu que tais factos não eram bastantes para se poder concluir pela ruptura da sociedade conjugal.
Vejamos.
Dispõe o artigo 1462.º do Código Civil que “Casamento é o contrato celebrado entre duas pessoas de sexo diferente que pretendem constituir família mediante uma plena comunhão de vida, nos termos das disposições deste Código”.
“Os cônjuges estão reciprocamente vinculados pelos deveres de respeito, fidelidade, coabitação, cooperação e assistência” (artigo 1533.º do Código Civil).
Ensinam FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA1 que “O dever de respeito é um dever ao mesmo tempo negativo e positivo.
Como dever negativo, ele é, em primeiro lugar, o dever que incumbe a cada um dos cônjuges de não ofender a integridade física ou moral do outro, compreendendo-se na “integridade moral” todos os bens ou valores da personalidades cuja violação, na lição ainda actual de Manuel de Andrade 2 , constituía “injúria” em face da “Lei da Divórcio”de 1910: a honra, a consideração social, o amor próprio, a sensibilidade e ainda a susceptibilidade pessoal”.
Ora, dispõe o artigo 1635.º do Código Civil:
“Artigo 1635.º
(Violação culposa dos deveres conjugais)
1. Qualquer dos cônjuges pode requerer o divórcio se o outro violar culposamente os deveres conjugais, quando a violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometa a possibilidade da vida em comum.
2. Na apreciação da gravidade dos factos invocados, deve o tribunal tomar em conta, nomeadamente, a culpa que possa ser imputada ao requerente e o grau de educação e sensibilidade moral dos cônjuges”.
É indiscutível que o réu violou culposamente o dever de respeito para o outro cônjuge. Apenas está em causa saber se tal violação, pela sua gravidade ou reiteração, comprometeu a possibilidade da vida em comum.
É certo que os factos provados em audiência de discussão e julgamento não são abundantes, mas mesmo assim parecem suficientes, para se poder concluir pela violação culposa de dever conjugal, que foi causa de ruptura do casamento.
Na verdade, sabemos que:
A autora e o réu contraíram casamento em 15 de Agosto de 2001.
Após esta data e até 9 de Dezembro de 2008 (data da propositura da acção) A Autora e o Réu agrediram-se um ao outro, física e verbalmente, por diversas vezes.
Não se provou que do casamento existam filhos. Na verdade, nenhuma das partes alegou a existência de filhos ou a sua inexistência, o que, numa acção de divórcio, é um facto de indiscutível relevância.
Sabemos, portanto, que houve várias agressões, tanto verbais como físicas entre a autora e o réu durante a constância do casamento até (cerca de 7 anos até à data da propositura da acção).
A violação do dever de respeito foi, por conseguinte, reiterada, devendo entender-se que compromete a possibilidade da vida em comum.
Quando os cônjuges aceitam a violação do dever de respeito por parte do outro cônjuge, como parece ser o caso do réu, que também sofreu agressões da autora, mas continua a querer manter o casamento, nada há a dizer.
Mas quando um dos cônjuges, por causa das agressões, não quer continuar a vida em comum, não deve o Tribunal impô-la.
A não se entender que as ofensas físicas e verbais sofridas pela autora foram suficientes para se decretar o divórcio, poderia aquela legitimamente perguntar quantas agressões é que ela teria de sofrer mais para que fosse pudesse ser posto termo à relação matrimonial.
É que, como escrevem PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA3 a possibilidade de vida em comum está comprometida “... quando o cônjuge requerente, por causa dos factos invocados, a não quer continuar e não é provável que mude de atitude, e não seja razoavelmente exigível que um e outro a continuem”.
Admite-se que aquando da entrada em vigor do preceito que deu origem ao actual artigo 1635.º - o artigo 1779.º do Código Civil de 1966, na redacção do Decreto-Lei n.º 496/77, de 25 de Novembro – a interpretação do TSI pudesse estar correcta.
Mas desde o ano de 1977, muita água já correu sob as pontes. Assistiu-se uma profunda mudança das mentalidades e costumes sociais, designadamente nesta área do globo, acompanhada, aliás, por alterações significativas das legislações no âmbito do Direito da Família e, particularmente, na área do divórcio. Por exemplo, em 1977 ainda eram numerosos os sistemas jurídicos que não admitiam o divórcio. Hoje em dia, ao que parece, só um país continua a não permitir o divórcio.
Dizia, ainda recentemente, um conhecido historiador, referindo-se à Europa, que, em certos aspectos da vida privada, houve mais alterações nos últimos 50 anos do que tinha havido desde a Idade Média.
Muito coisa que seria tolerável em 1977, hoje já não o é.
Ora, na interpretação da lei o intérprete não pode cingir-se à letra da lei, devendo, além do mais, ter conta “... as condições específicas do tempo em que é aplicada” (artigo 8.º, n.º 1 do Código Civil).
No caso dos autos, a ocorrência de várias agressões verbais e físicas perpetradas por um dos cônjuges na pessoa do outro, preenche o requisito da reiteração da violação do dever de respeito, que compromete a possibilidade de vida em comum.
Considera-se, assim, procedente o recurso.
IV – Decisão
Face ao expendido, concede-se provimento ao recurso e decreta-se o divórcio litigioso entre a autora e o réu.
Custas pelo recorrido.
Fixa-se em mil e duzentas patacas os honorários do patrono da autora.
Macau, 8 de Julho de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) - Sam Hou Fai - Chu Kin
1 FRANCISCO PEREIRA COELHO e GUILHERME DE OLIVEIRA, Curso de Direito da Família, Coimbra Editora, Vol. I, 4.ª edição, 2008, p. 349.
2 Algumas questões em material de “injúrias graves”como fundamento de divórcio, Coimbra, 1956, P. 8.
3 PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA, Código Civil Anotado, Coimbra Editora, Volume IV, 2.ª edição, 1992, p. 531
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
1
Processo n.º 28/2011
10
Processo n.º 28/2011