Processo nº 354/2010
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por acórdão do T.J.B. decidiu-se condenar o arguido A, com os sinais dos autos, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de:
– um crime de “homicídio por negligência” p.p. pelo art. 134º, nº1, do C.P.M. e art. 66º, nº 1, do Código da Estrada, na pena de 2 anos de prisão, suspendendo-se a sua execução pelo período de 3 anos; e,
– uma contravenção p.p. pelos art°s 22º, nº 1, 23º, al. a) e 70º, nº 3, do mesmo C.E., na pena de multa de MOP$1.200,00 ou, em alternativa, 8 dias de prisão, suspendendo-se a validade da licença de condução pelo período de 1 ano e 6 meses.
Quanto ao pedido de indemnização civil, foi o mesmo julgado parcialmente procedente, condenando-se os demandados A e “COMPANHIA DE SEGUROS DE XXXX, S.A.R.L.” a pagar:
“1. a todos os herdeiros de B: MOP800000,00 (oitocentas mil patacas) pelo dano da perda do direito à vida de B;
2. a todos os herdeiros de B: MOP60000,00 (sessenta mil patacas) pelo dano não patrimonail de B;
3. a D, mãe de B: MOP216000,00 (duzentas e dezasseis mil patacas) como pensão de alimentos;
4. a D, mãe de B: MOP31666,00 (trinta e um mil e seiscentas e sessenta e seis patacas) pelas despesas médicas e de funeral;
5. a D, mãe de B: MOP150000,00 (cento e cinquenta mil patacas) pelo dano não patrimonial.”
Determinou ainda o Colectivo do T.J.B. que “as referidas quantias, num total de MOP1257666 (um milhão, duzentas e cinquenta e sete mil e seiscentas e sessenta e seis patacas) seria pago da forma seguinte:
A Companhia de Seguros de XXXX, S.A.R.L. é responsável pelo montante de MOP500000 (quinhentas mil patacas), acrescido de juros legais desde o trânsito em julgado da sentença até ao integral pagamento;
O 1º requerido, A, é responsável pelo montante de MOP757666 (setecentas e cinquenta e sete mil e seiscentas e sessenta e seis patacas), acrescido de juros legais desde o trânsito em julgado da sentença até ao integral pagamento.”; (cfr., fls. 359 a 367 e 465 a 494).
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Inconformado, o arguido recorreu.
Motivou para concluir nos termos seguintes:
“A. A velocidade a que circulava o ciclomotor constitui sem dúvida uma explicação possível para o acidente, mas é impossível inferi-la da exígua prova produzida nos autos, e menos ainda, do teor dos depoimentos supra transcritos supra da Ao Un Man e do guarda n.° XXXXX do CPSP, produzidos em audiência de julgamento.
B. E, embora não incumba ao arguido demonstrar a sua inocência, nem o consiga fazer devido às lesões que sofreu, afigura-se que outras razões, que não a excessiva velocidade, poderiam ter levado à perda do controlo do ciclomotor.
C. Desde logo, porque a perda do controlo do ciclomotor poderia ter ocorrido, por exemplo, por acção de qualquer substância/material derrapante (grãos de areia, folhas, saco de plástico, fluido lubrificante, etc), ou devido ao corte de ignição por insuficiente/irregular fluxo de combustível, ou mesmo por imperícia (não censurável) do condutor.
D. No caso concreto, como estas hipóteses não foram, nem podiam ser, descartadas, o Tribunal a quo não sabia, nem tinha maneira de saber, se à presumida violação do dever de cuidado se interpôs uma outra conduta ou um outro facto, esses sim causadores directos do resultado típico, pelo que se afigura logicamente impossível concluir que a conduta do ora recorrente, por violadora de normas de cuidado, foi causal relativamente ao resultado.
E. A par do excesso de velocidade, existem, pois, outras explicações plausíveis para o acidente, que não implicam necessariamente a responsabilidade criminal do condutor.
F. Assim, faltando-lhe os atributos da seriedade, precisão e concordância, a ilação (de que o arguido não controlou bem a velocidade) extraída pelo Tribunal a quo (da queda do condutor e do passageiro do ciclomotor do viaduto para a Avenida Rodrigo Rodrigues), configura apenas uma possibilidade física, não devendo ser utilizada para dirimir contra o arguido o "non liquet" quanto ao modo como ocorreu o acidente.
G. Ora, os factos base donde partiu o Tribunal a quo para extrair a ilação de que o ora recorrente não controlou bem a velocidade não afastam, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso.
H. Ao dirimir, por presunção judicial, a dúvida razoável que existia quanto ao modo de produção do acidente de viação, o Tribunal a quo violou o disposto no art.° 342.° do CCM, por essa presunção não arredar minimamente a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso.
I. Por conseguinte, dado que fora do quadro das presunções legais e judiciais, o "non liquet" na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, o Tribunal a quo, ao assentar a sua convicção numa ilação desconforme ao art.° 342.° do CCM, violou o princípio da presunção da inocência plasmado no artigo 29.° da Lei Básica.
J. Ao que acresce que "na concretização dos critérios de imputação objectiva da morte à conduta cabe desde logo particular relevo à violação das normas de cuidado"; no caso, referentes à circulação estradal, podendo por isso "constituir legitimamente indício do preenchimento do tipo de ilícito, mas não pode em caso algum fundamentá-lo" (cfr. Comentário Conimbricense do Cód. Penal, Tomo I, pág. 108).
K. Ora, no caso "sub judice" a acusação pública limitou-se a concluir pelo excesso de velocidade como causa do acidente e da consequente responsabilidade criminal do arguido, sem articular os factos concretos demonstrativos dessa convicção, nem produzir os correspectivos meios de prova, pelo que não podia o Tribunal a quo ter suprido essa lacuna, sem arredar, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade de o ora recorrente não ter cometido o crime de que vinha acusado.
L. Por isso, a indicada expressão "em virtude de não ter controlado bem a velocidade" por conter em si a solução jurídica do pleito, deve ser eliminada da matéria de facto provada na sentença, nos termos do n.° 4 do artigo 549.° do CPCM, aplicável por força do art. ° 4° do CPP.
M. E não sendo possível reconstituir o acidente (nem directa, nem indirectamente) com o grau de certeza exigível numa sentença de condenação por homícidio por negligência e, por conseguinte, vencer a dúvida quanto ao modo como esse acidente ocorreu, é de considerar inverificada a imputada contravenção ao art.° 22.°, n.° 1 e 23.°, alínea a) ex vi do artigo 70.°, n.° 3, todos do Código da Estrada, bem como absolver o arguido do crime que lhe foi imputado.
N. A obrigação de indemnizar a D só se verificaria se estivesse alegado e provado que esta necessitava de alimentos ou que essa necessidade era previsível.
O. Tal não sucedeu, pelo que a decisão recorrida ao condenar o recorrente a pagar à mãe da ofendida a quantia de MOP216.000,00, (correspondente a MOP1.800/mês, durante 10 anos), violou o disposto no artigo n.° 3 do artigo 488.°, n.° 3, 1845.° e 558.°, n.° 2, todos do CCM.
P. Caso assim não se entenda, deve tal valor e período de pagamento ser reduzido à sua expressão mínima, à luz de juízos de equidade, por se revelar, em concreto, muito exagerado.
Q. O Tribunal a quo violou o disposto no art.° 109.°, n.° 1 da Lei do Transito Rodoviário por não ter suspenso a execução da pena acessória por arrastamento da suspensão da execução da pena principal.
R. A sentença recorrida violou o disposto no art.° 66.°, n.° 2, d) e e), do CPM e, em consequência, também o art.° 67.°, n.° 1, d) do mesmo diploma.
S. A sentença recorrida violou o disposto no art.° 65.°, n.° 2, alíneas d) e e) do CPM.
T. Segundo o disposto no art.° 65.°, n.° 2, b) do CPM, a intensidade da negligência (consciente ou inconsciente) consiste num dos critérios da determinação da medida concreta da pena, pelo que não se tendo provado a situação prevista na alínea a) do art.° 14.°,. a) do CPM, sobra a da alínea b), devendo tal refletir-se favoravelmente na dosemetria da pena, fixando-se a mesma no mínimo legal.”; (cfr., fls. 405 a 433).
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Respondendo, afirma o Exm° Magistrado do Ministério Público que:
“1 - Na parte criminal fala-se de factos provados ou não provados e convicções e não ilações ou presunções.
2 - O Tribunal a quo já considerou que não existiam quaisquer elementos indiciários que possam perturbar a condução do recorrente no momento do acidente.
3 - Já considerou que não apareceram quaisquer situações que um condutor normal não possa prevenir ou controlar.
4 - Assim, o Tribunal a quo entendeu que não possa afastar o recorrente agir com negligência, ou seja, não proceder com o cuidado a que, segundo as circunstâncias está obrigado e de que é capaz.
5 - A convicção do Tribunal a quo formou-se com base dos documentos constante nos autos e dos depoimentos das testemunhas.
6 - O recorrente tenta entrar numa matéria que lhe é vetada, ou seja está em causa o princípio de livre apreciação da prova segundo o qual a prova é apreciada segundo as regras de experiência comum e a livre convicção do tribunal (art°. 114° do C.P.P.M.).
7 - Pelo que, é manifestamente improcedente esta parte de recurso, pois não se verifica o vício da violação do art°. 324° do C.Civil.
8 - A lei não prevê que a suspensão de execução da pena principal implique automaticamente a suspensão dá execução da pena acessória de inibição de condução.
9 - No presente caso, o recorrente é empregado do casino. Não é motorista nem condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos. Pelo que, não existe motivo atendível para o Tribunal a quo suspender a execução da pena acessória de inibição de condução.
10 - Pelo exposto, o tal fundamento deve ser rejeitado.
11- O simples facto de o recorrente tinha internado no Hospital Conde de São Januário durante um mês e 23 dias depois o acidente não significa que o recorrente já tinha especialmente afectado pelas consequência do facto.
12- O legislador aqui quis é de "pelas consequências afectadas, o agente aprende profundamente uma lição de que nunca irá repetir".
13- E efeito atenuante especial não resulta nunca do número das circunstâncias atenuantes, mas antes vem de elas terem como efeito diminuir essencialmente a ilicitude e a culpa.
14- As situações referidas pelo recorrente não têm, por si só, na sua existência objectiva, um valor atenuativo especial, tendo de ter relacionadas com um determinado efeito que terão de produzir: a diminuição acentuada da ilicitude do facto ou da culpa do agente.
15- Que não se verifica no presente caso.
16- Pelo que, o tal fundamento deve ser rejeitado.
17- Nos termos do art°. 65° n°. 1 do C.P.M. "A determinação da medida da pena, dentro dos limites definidos na lei, é feita em função da culpa do agente e das exigências de prevenção criminal. "
18- Conforme a decisão do Tribunal a quo, o Tribunal já atendeu todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor do recorrente ou contra ele.
19- No presente caso, não deve esquecer que o grau de ilicitude é bastante alto e as consequências são gravíssimas - a vida de uma senhora jovem com 21 anos de idade que na altura se encontrava grávida com 5 meses.
20- In casu, não se vê qual o atenuativo da culpa do recorrente que permite a aplicação do mínimo da pena.
21- O Tribunal a quo aplicou uma pena de prisão acima de média da moldura penal com suspensão por período de três anos é totalmente justa e proporcional:
22- Pelo que, é manifestamente improcedente esta parte de recurso, pois não se verifica o dito vício.”; (cfr., fls. 436 a 442-v).
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Nesta Instância, e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Acompanham-se as judiciosas considerações da Exma colega junto da 1ª Instância que, por ocioso, nos dispensaremos de reproduzir, que atestam, plenamente, a falta de fundamento do alegado e pretendido pelo recorrente.
Na verdade, ao pretender que a convicção do Tribunal não pode ser certa e precisa, assentando apenas numa ilacção extraída duma possibilidade física, existindo outras explicações plausíveis para o acidente, mais não faz o recorrente que pôr em crise o princípio da livre apreciação da prova, quando nada indica que o tribunal tenha dado como provados factos incompatíveis entre si, ou que tenha retirado desses factos conclusões lógicamente inaceitáveis, não competindo a este Tribunal censurar o julgador por ter formado a sua convicção neste ou naquele sentido, quando na decisão recorrida, confirmado pelo senso comum, nada contraria as conclusões alcançadas, vendo-se bem que com a sua alegação pretende o recorrente manifestar a sua discordância com a matéria de facto dada assente pelo tribunal, melhor dizendo, da interpretação que este faz dessa matéria no que tange à sua própria responsabilidade, limitando-se, em boa verdade, tão só a expressar a sua opinião "pessoalíssima" àcerca da apreciação e valoração da prova, quando, manifestamente, não se vê que do teor do texto da decisão em crise, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte patente, evidente, ostensivo que o Colectivo errou ao apreciar como apreciou, não fazendo sentido também esgrimir-se com pretensa afronta da presunção de inocência ou princípio "in dubio pro reo ", já que nada na douta decisão em crise permite alcançar que, relativamente à matéria dada como provada, subsistisse ou sobejasse qualquer dúvida razoável relativamente à convicção alcançada àcerca da efectiva prática pelo recorrente dos factos delituosos imputados, designadamente não ter, na sua condução, tomado atenção às circunstâncias da via, não regulando a velocidade da mota ao aproximar-se da curva com declive descendente, conduzindo com descuido e desatenção, inexistindo, na altura qualquer elemento externo passível de perturbar a mesma.
Por outra banda, não se alcança de quaisquer termos legais que a suspensão da execução da pena principal arraste ou implique automàticamente a suspensão da pena acessória de inibição de condução, tendo vindo este Tribunal a inclinar-se para tal suspensão apenas nos casos e, que o agente é motorista ou condutor profissional com rendimento dependente da condução de veículos, o que, manifestamente, não é o caso, dado tratar-se de empregado de casino, sem aquelas funções.
Não se vê, depois, que o facto de o recorrente ter sido obrigado a permanecer internado no hospital durante um mês e 23 dias após o acidente e não existir, após o mesmo, registo de má conduta da sua parte, configurem circunstâncias que diminuam acentuadamente a ilicitude do facto ou a culpa do agente, por forma a, por si só, justificarem a almejada atenuação especial da pena aplicada.
Finalmente, nas circunstâncias apuradas, o tribunal "a quo ", ao aplicar pena de prisão acima da média da moldura penal abstracta, suspendendo-a por 3 anos, usou de dosimetria penal justa e adequada, atentas sobretudo as gravíssimas consequências do acto : a morte de uma jovem de 21 anos de idade, na altura grávida de 5 meses.
Tudo razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos, entendemos não merecer provimento o presente recurso.”; (cfr., fls. 496 a 498).
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Passa-se a decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Foram dados como provados os factos seguintes:
“Em 4 de Junho de 2005, pelas 9H00, o arguido conduziu o ciclomotor de Matrícula CM-XXXXX, circulando pelo Túnel do Monte da Guia em direcção ao viaduto da Avenida do Dr. Rodrigo Rodrigues, levando como passageira a sua amiga, B (a vítima).
Na altura, a testemunha, Ao Un Man, estava a conduzir o ciclomotor de matrícula CM-XXXXX e circulava atrás do arguido na mesma via e no mesmo sentido.
Ao chegar perto da caixa de iluminação 141B32 do viaduto, o arguido não controlou bem a velocidade e bateu na barreira de protecção esquerda do viaduto. Pelo embate, o arguido e a vítima foram projectados por cima da barreira de protecção do viaduto e caíram na Avenida do Dr. Rodrigo Rodrigues. A queda fez com que a vítima ficasse logo em coma.
O embate causou à vítima lesões graves, a qual foi levada para o hospital na ambulância para tratamento urgente. Foi confirmada a morte da vítima no dia 4 de Junho de 2005, pelas 11H09.
Segundo o médico-legal, a grave trauma craniocerebral e a lesão de fígado em consequência do acidente provocaram a morte da vítima (vide o relatório de autópsia em fls. 71 a 73 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido).
O arguido não reduziu a velocidade da sua mota quando chegou perto da curva e declive e não parou o veículo no espaço livre e visível à sua frente, daí decorrendo a perda do controlo do seu veículo e provocou as lesões mortais da vítima por cair do viaduto.
O arguido conduziu sem adoptar as precauções necessárias para evitar qualquer acidente, sabendo bem que a sua conduta era proibida e punida pela lei.
(Os factos provados constantes do pedido civil:)
O acidente ocorreu na curva com declive descendente dum viaduto.
A vítima, B, foi projectada de uma altura de 8 metros e caiu na Avenida do Dr. Rodrigo Rodrigues.
A vítima, B, sofreu muitas lesões corporais e ficou logo em coma.
A vítima, B, foi levada para o hospital, morreu depois de duas horas de tratamento de urgência.
A vítima, B, estava grávida de 22 a 24 semanas, o feto morreu antes da sua morte.
Pelo tratamento de urgência da vítima, a requerente, D, pagou uma despesa médica no valor de MOP1466,00.
Pela funeral da vítima, a requerente pagou uma importância de MOP30200,00.
A vítima dava mensalmente à sua mãe, D, um montante de $7000,00 para sustentar a vida desta e do pai, C, bem como para apoiar o estudo dos quatro irmãos e irmãs mais novos.
A mãe da vítima, D, aufere mensalmente o salário de MOP5486,00, enquanto o pai aufere MOP4500,00.
B tinha 21 anos na altura do acidente e tinha boa saúde.
Os pais da vítima sofreram grande abalo psicológico e dor com a morte da filha.
Através da apólice nº XXXXXXXXXXX, A transferiu a responsabilidade civil de indemnização por acidente de aviação à Companhia de Seguro de XX.
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São provados ainda os seguintes factos:
O arguido é primário, segundo o seu registo criminal.
É coupier e aufere um salário mensal de MOP15000,00, tendo a seu cargo os pais. Tem como habilitações o curso secundário geral.”; (cfr., fls. 360-v a 361-v e 471 a 473).
Do direito
3. Vem o arguido recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B. que o condenou nos termos atrás explicitados, alegando, em síntese, que com a dita decisão se violou o “princípio da presunção da inocência”, discordando da(s) penas aplicadas e ainda do montante de indemnização em que foi condenado a pagar.
— Vejamos, começando, (como nos parece lógico), pelo invocado “princípio da presunção de inocência”.
Alega, nuclearmente, o recorrente que:
– “A velocidade a que circulava o ciclomotor constitui sem dúvida uma explicação possível para o acidente, mas é impossível inferi-la da exígua prova produzida nos autos...”;
– “afigura-se que outras razões, que não a excessiva velocidade, poderiam ter levado à perda do controlo do ciclomotor”;
– “A par do excesso de velocidade, existem, pois, outras explicações plausíveis para o acidente, que não implicam necessariamente a responsabilidade criminal do condutor”;
– “os factos base donde partiu o Tribunal a quo para extrair a ilação de que o ora recorrente não controlou bem a velocidade não afastam, para além de toda a dúvida razoável, a possibilidade dos factos se terem passado de modo diverso”; e,
– “Por conseguinte, dado que fora do quadro das presunções legais e judiciais, o "non liquet" na questão da prova tem de ser sempre valorado a favor do arguido, o Tribunal a quo, ao assentar a sua convicção numa ilação desconforme ao art.° 342.° do CCM, violou o princípio da presunção da inocência plasmado no artigo 29.° da Lei Básica”.
Cremos porém que não lhe assiste razão.
De facto, as afirmações (e conclusões) que produz, limitam-se a ser a sua convicção pessoal, resultado da apreciação da prova que efectuou, não sendo assim de dar relevância e de acolher.
Com efeito, repetidamente temos afirmado que:
“É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 20.09.01, Proc. n° 141/2001, do ora relator).
Por sua vez, não se diga também que houve violação do princípio “in dubio pro reo”.
Como já entendeu este T.S.I.:
“O princípio "in dúbio pro reo" identifica-se com o da presunção da inocência do arguido e impõe que o julgador valore sempre, em favor dele, um non liquet.
Perante uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos constitutivos do crime imputado ao arguido, deve o Tribunal, em harmonia com o princípio "in dúbio pro reo", decidir pela sua absolvição.”; (cfr., o Ac. de 06.04.2000, Proc. n° 44/2000).
E, como entende a doutrina, segundo o princípio “in dubio pro reo” «a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de actuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido»; (cfr., Figueiredo Dias, in “Direito Processual Penal”, pág. 215).
Conexionando-se com a matéria de facto, este princípio actua em todas as vertentes fácticas relevantes, quer elas se refiram aos elementos típicos do facto criminalmente ilícito - tipo incriminador, nas duas facetas em que se desdobra: tipo objectivo e tipo subjectivo - quer elas digam respeito aos elementos negativos do tipo, ou causas de justificação, ou ainda, segundo uma terminologia mais actualizada, tipos justificadores, quer ainda a circunstâncias relevantes para a determinação da pena.
Porém, importa atentar que o referido o princípio (“in dubio pro reo”), só actua em caso de dúvida (insanável, razoável e motivável), definida esta como “um estado psicológico de incerteza dependente do inexacto conhecimento da realidade objectiva ou subjectiva”; (cfr., Perris, “Dubbio, Nuovo Digesto Italiano”, apud, Giuseppe Sabatini “In Dubio Pro Reo”, Novissimo Digesto Italiano, vol. VIII, págs. 611-615) .
Por isso, para a sua violação exige-se a comprovação de que o juiz tenha ficado na dúvida sobre factos relevantes, e, nesse estado de dúvida, tenha decidido contra o arguido; (neste sentido, cfr. v.g., o Ac. do STJ de 29-4-2003, proc. n.º 3566/03, in “www.dgsi.pt”).
Daí também que, para fundamentar essa dúvida e impor a absolvição, não baste que tenha havido versões dispares ou mesmo contraditórias; (neste sentido, cfr., v.g. o Ac. da Rel. de Guimarãs de 9-5-2005, proc. n.º 475/05, in “www.dgsi.pt”), sendo antes necessário que perante a prova produzida reste no espírito do julgador - e não no do recorrente - alguma dúvida sobre os factos que constituem o pressuposto da decisão, dúvida que, como se referiu, há-de ser “razoável” e “insanável”.
Ora, lido o Acórdão recorrido, não se vê que em momento algum tivesse o tribunal tido qualquer dúvida sobre factos relevantes e tenha decidido contra o arguido ora recorrente.
Dito isto, (tendo em conta a fundamentação exposta no Acórdão recorrido no que toca à convicção do Colectivo a quo, e certo sendo que expressamente se consignou no mesmo Acórdão que “não se provaram os restantes factos ... da contestação”), mais não é preciso dizer para se concluir pela improcedência do recurso na parte em questão.
— Quanto à pena.
Diz o recorrente que:
“– O Tribunal a quo violou o disposto no art.° 109.°, n.° 1 da Lei do Transito Rodoviário por não ter suspenso a execução da pena acessória por arrastamento da suspensão da execução da pena principal;
– A sentença recorrida violou o disposto no art.° 66.°, n.° 2, d) e e), do CPM e, em consequência, também o art.° 67.°, n.° 1, d) do mesmo diploma;
– A sentença recorrida violou o disposto no art.° 65.°, n.° 2, alíneas d) e e) do CPM”; e que,
“– Segundo o disposto no art.° 65.°, n.° 2, b) do CPM, a intensidade da negligência (consciente ou inconsciente) consiste num dos critérios da determinação da medida concreta da pena, pelo que não se tendo provado a situação prevista na alínea a) do art.° 14.°,. a) do CPM, sobra a da alínea b), devendo tal refletir-se favoravelmente na dosemetria da pena, fixando-se a mesma no mínimo legal”.
Pois bem, desde logo, quanto à “inibição de condução”, nenhum normativo legal existe, (ou, pelo menos, que seja do nosso conhecimento), que imponha a suspensão da execução da pena de inibição de condução em resultado (ou consequência) da suspensão da pena principal.
Também o art. 109°, n° 1 da Lei do Trânsito Rodoviário (Lei n° 3/2007), pelo recorrente citado, não o faz, preceituando (apenas) que:
“O tribunal pode suspender a execução das sanções de inibição de condução ou de cassação da carta de condução por um período de 6 meses a 2 anos, quando existirem motivos atendíveis.”
No caso, não se vislumbram na matéria de facto os necessários “motivos atendíveis” pelo dispositivo em questão referidos, e, assim, (e em conformidade com o que temos vindo a entender; cfr., v.g, o recente Ac. de 22.07.2000, Proc. n° 540/2010), evidente é que o segmento decisório ora em causa não merece censura.
Continuando, é caso para dizer que nenhum reparo merece também a “sanção criminal” imposta ao ora recorrente.
Na verdade, no que toca à pretendida “atenuação especial”; (art. 66° do C.P.M.), não se pode olvidar que a mesma exige uma “diminuição acentuada da ilicitude do facto, da culpa do agente ou da necessidade da pena” (cfr., n° 1), e que, a mesma, como o próprio termo (“especial” ) inculca, apenas deve “ocorrer em situações “extraordinárias” e “excepcionais”, ou seja quando a imagem global do facto, resultante da actuação da(s) circunstância(s) atenuante(s), se apresente com uma gravidade tão diminuida que possa razoavelmente supor-se que o legislador não pensou em hipóteses tais quando estatuiu os elementos normais da moldura cabida ao tipo de facto respectivo.”; (cfr., v.g., o Ac. deste T.S.I. de 07.06.2007, Proc. n° 235/2007).
Não sendo o caso dos autos, patente é a solução.
Por sua vez, importa igualmente ter em conta que a pena fixada, em face da factualidade provada, (e das consequência causadas – morte da vítima), e atenta a moldura penal aplicável, corresponde, em nossa opinião, aos “fins” estatuídos no art. 40° do C.P.M., pois que, no caso, prementes são as necessidades de prevenção, (nomeadamente, geral), do tipo de crime em questão.
— Sendo assim de se confirmar a decisão penal, vejamos agora da “indemnização”.
Insurge-se o arguido contra o montante de MOP$ 216,000.00 fixado a título de alimentos à demandante D, mãe da vítima, considerando-o inflaccionado.
Ora, também aqui cremos que reparo não merece o decidido pelo Colectivo a quo.
Com efeito, provado está que “A vítima dava mensalmente à sua mãe, D, um montante de $7000,00 para sustentar a vida desta e do pai, C, bem como para apoiar o estudo dos quatro irmãos e irmãs mais novos”.
E, perante o pedido de MOP$ 840,000.00, (MOP$7,000.00 x 10 anos), fixou o Tribunal o referido montante, (MOP$216,000.00).
Em sede de fundamentação de tal decisão, consignou-se no Acórdão recorrido o que segue:
“O artigo 488º, nº 3 do Código Civil estabelece: “Têm igualmente direito a indemnização os que podiam exigir alimentos ao lesado ou aqueles a quem o lesado os prestava no cumprimento de uma obrigação natural.”
A vítima desta causa ganhou mensalmente um pouco mais de dez mil, dando sete mil por mês à sua mãe para sustentar a vida da mãe e pai, bem como o estudo dos irmãos e irmãs mais novos. O pai e os irmãos e irmãs mais novos da vítima não são requerentes do pedido civil, por isso, não se considera aqui a indemnização relativa à sua pensão alimentícia.
Obviamente, a vítima assumiu parte da responsabilidade alimentícia dos familiares. O dinheiro dava à mãe não era para os pais gastarem com luxo mas para o custo de vida da família. Assim, será decidido com base no princípio do equilíbrio.
Tendo em consideração a situação financeira da vítima e a sua necessidade diária antes de falecer, a situação financeira da mãe, D, e a do pai, C, que tem responsabilidade alimentícia pela mãe, e a necessidade de viver da mãe, o Tribunal Colectivo entende razoável o pagamento mensal de MOP1800,00 a D pelo período de dez anos, prefazendo o total de MOP216000,00.”; (cfr., fls. 365 a 365-v e 486 a 487).
Face à factualidade provada e ao assim ponderado, mostram-se-nos verificados os pressupostos legais da indemnização em causa, (cfr., art. 488°, n° 3 do C.C.M.), e que razoável e equilibrado é o montante em questão, motivos não havendo para a sua alteração.
Tudo visto, resta decidir.
Decisão
4. Nos termos que se deixam expendidos, acordam negar provimento ao recurso.
Pagará o recorrente a taxa de justiça de 8 UCs.
Macau, aos 29 de Julho de 2010
José Maria Dias Azedo (Relator)
Chan Kuong Seng (Primeiro Juiz-Adjunto)
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira (Segundo Juiz-Adjunto)
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