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Processo nº 862/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Em 24.09.2010 proferiu o Colectivo do T.J.B. o Acórdão seguinte:
“I. Relatório:
O Ministério Público deduziu acusação,
em processo comum, com intervenção do
tribunal colectivo, contra o arguido:
A (XXX), do sexo masculino, casado, desempregado, titular do Salvo-conduto n°WXXXXXXXX, nascido em Zhuhai da província de Guangdong, a XX/01/19XX, filho de XXX e de XX, residente na RPC no n°XXX da povoação "XXXX" da vila "XX" da zona de "XX" da cidade de Zhuhai da província de "Guangdong".
Porquanto:
Em data não apurada, mas nos meados de Outubro de 2005, A (arguido) combinou com a 1ª ofendida B para se encontrarem no átrio do Hotel XX, sita em Macau na Rua da Malaca. Durante o encontro, o arguido declarou conhecer pessoas que tratam de títulos de trabalhador não residente e que a podia ajudar a tratar das formalidades da sua vinda a Macau para trabalhar, cuja despesa são MOP$6.000,00. Referiu ainda que caso conseguisse um trabalho de cargo mais elevado, teria de pagar mais HK$2.000,00 como gorjeta.
Na parte da manhã de dia não apurado dos meados de Outubro de 2005, no Hotel XX de Macau, a 1ª ofendida entregou ao arguido os numerários de MOP$4.500,00 e HK$2.000,00 como despesa pelo tratamento de documento. Em 28/11/2005, o arguido combinou com a 1ª ofendida para se encontrarem junto da entrada do Centro Comercial "XX", estabelecida na na Avenida "Ieng Pan Tai Tou" de Gongbei da cidade de Zhuhai da província de Guangdong, para a entregar um recibo (cfr. fIs. 5 dos autos - fotocópia do recibo).
Nos meados de Outubro de 2005, C (2ª ofendida) conheceu o arguido através da apresentação da 1ª ofendida. No dia 27 de Outubro de 2005, na zona do Porto Exterior de Macau, a 2ª ofendida entregou HK$7.000,00 em numerário ao arguido, como despesa para tratamento do título de trabalhador não residente. Nesta mesma data, o arguido entregou o respectivo recibo à 2ª ofendida (cfr. fIs.17 dos autos - fotocópia do recibo).
Nos meados de Outubro de 2005, D (3ª ofendida) conheceu o arguido através da apresentação da 1ª ofendida. Na altura, o arguido declarou que podia ajudá-la a tratar de um documento para trabalhar em Macau, e que após isso a podia ajudar para trabalhar no Hotel XX de Macau, cujo salário mensal era de cerca de MOP$3.300,00. Em 13/11/2005, a 3ª ofendida entregou ao arguido o numerário de HK$6.700,00, duas fotografias, o seu bilhete de identidade da RPC e sua "caderneta de censos", para efeitos de tratamento do título de trabalhador não residente.
Nos meados de Outubro de 2005, E (4ª ofendida) conheceu o arguido através da apresentação da 2ª ofendida. Na altura, o arguido declarou que podia ajudá-la a tratar de um documento para trabalhar em Macau. A 4ª ofendida entregou ao arguido o numerário de RMB$6.500,00, quatro fotografias suas e um impresso, para tratamento do título de trabalhador não residente. No dia 13 de Novembro de 2005, o arguido passou um recibo à 4ª ofendida.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.
O arguido bem sabia que não tinha capacidade para ajudar terceiros a tratar de documento para trabalhar legalmente em Macau, apesar disso, forneceu às supracitadas quatro ofendidas informações que não correspondiam à verdade, obtendo, na sequência disso, a respectiva confiança e o dinheiro entregue por elas.
O arguido tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Imputa-lhe, assim, o M°.P°. e vem acusada o arguido em autoria material e na forma consumada de quatro crimes de burla, previsto e punido pelo n°1 do art°211° do Código Penal de Macau.
O arguido prestou declarações nos termos do artigo 315°, n°2, e 338°, n°1, alínea a), do Código de Processo Penal (fls. 29), e não foi deduzida contestação.
Mantendo-se inalterados os pressupostos processuais fixados, procedeu-se a julgamento com observância do devido formalismo.
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II - Fundamentação
Discutida a causa, e com relevância para os autos, resultaram provados os seguintes factos:
Em data não apurada, mas nos meados de Outubro de 2005, A (arguido) combinou com a 1ª ofendida B para se encontrarem no átrio do Hotel XX, sita em Macau na Rua da Malaca. Durante o encontro, o arguido declarou conhecer pessoas que tratam de títulos de trabalhador não residente e que a podia ajudar a tratar das formalidades da sua vinda a Macau para trabalhar, cuja despesa são MOP$6.000,00. Referiu ainda que caso conseguisse um trabalho de cargo mais elevado, teria de pagar mais HK$2.000,00 como gorjeta.
Na parte da manhã de dia não apurado dos meados de Outubro de 2005, no Hotel XX de Macau, a 1ª ofendida entregou ao arguido os numerários de M0P$4.500,00 e HK$2.000,00 como despesa pelo tratamento de documento. Em 28/11/2005, o arguido combinou com a 1ª ofendida para se encontrarem junto da entrada do Centro Comercial "XX", estabelecida na na Avenida "Ieng Pan Tai Tou" de Gongbei da cidade de Zhuhai da província de Guangdong, para a entregar um recibo.
Nos meados de Outubro de 2005, C (2ª ofendida) conheceu o arguido através da apresentação da 1ª ofendida. No dia 27 de Outubro de 2005, na zona do Porto Exterior de Macau, a 2ª ofendida entregou HK$7.000,00 em numerário ao arguido, como despesa para tratamento do título de trabalhador não residente. Nesta mesma data, o arguido entregou o respectivo recibo à 2ª ofendida.
Nos meados de Outubro de 2005, D (3ª ofendida) conheceu o arguido através da apresentação da 1ª ofendida. Na altura, o arguido declarou que podia ajudá-la a tratar de um documento para trabalhar em Macau, e que após isso a podia ajudar para trabalhar no Hotel XX de Macau, cujo salário mensal era de cerca de MOP$3.300,00. Em 13/11/2005, a 3ª ofendida entregou ao arguido o numerário de HK$6.700,00, duas fotografias, o seu bilhete de identidade da RPC e sua "caderneta de censos", para efeitos de tratamento do título de trabalhador não residente.
Nos meados de Outubro de 2005, E (4ª ofendida) conheceu o arguido através da apresentação da 2ª ofendida. Na altura, o arguido declarou que podia ajudá-Ia a tratar de um documento para trabalhar em Macau. A 4ª ofendida entregou ao arguido o numerário de RMB$6.500,00, quatro fotografias suas e um impresso, para tratamento do título de trabalhador não residente. No dia 13 de Novembro de 2005, o arguido passou um recibo à 4ª ofendida.
O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente.
O arguido bem sabia que não tinha capacidade para ajudar terceiros a tratar de documento para trabalhar legalmente em Macau, apesar disso, forneceu às supracitadas quatro ofendidas informações que não correspondiam à verdade, obtendo, na sequência disso, a respectiva confiança e o dinheiro entregue por elas.
O arguido tinha perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
Do CRC do arguido, nada consta em seu desabono.
Factos não provados:
Nada a assinalar, uma vez que ficaram provados todos os factos relevantes da acusação.
Convicção do Tribunal:
A convicção do Tribunal fundamenta-se essencialmente nas declarações prestadas pelo próprio arguido nos Serviços do Ministério Público aquando do inquérito e lidas em audiência ao abrigo do disposto na alínea a) do n°1 do artigo 338° do Código de Processo Penal e bem assim nas declarações das testemunhas que depuseram com isenção e imparcialidade, e ainda no exame dos documentos e apreendido juntos aos autos.
Enquadramento Jurídico-Penal
Cumpre agora analisar os factos e aplicar o direito.
Estabelece o n°1 do artigo 211° do Código Penal (CP): «1. Quem, com intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo, por meio de erro ou engano sobre factos que astuciosamente provocou, determinar outrem à prática de actos que lhe causem, ou causem a outra pessoa, prejuízo patrimonial é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa»
Da matéria dada por provada, dúvidas não há que o arguido praticou os factos por que vem acusado, no entanto, e apesar de estarmos perante quatro ocasiões diferentes, dado que as acções ilícitas integradoras do mesmo tipo legal de crime foram praticadas pelo arguido de forma mais ou menos homogénea, obedecendo a um mesmo desígnio criminoso e aproveitando-se de uma particular situação exterior que lhe diminui sensivelmente a culpa, somos ainda de concluir estarmos em presença de um crime continuado.
Do acima exposto, o arguido cometeu de forma consciente, livre e com dolo, e em autoria material e na forma consumada e continuada, um crime de burla, previsto e punido pelo art° 211°, n°1, do Código Penal, estando preenchidos todos os pressupostos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito por que vem acusado.
Tendo em conta que ao referido crime de burla o arguido já tinha sido julgado e condenado por acórdão do colectivo de juizes do Tribunal de DouMen de ZhuHai da R.P.C. no passado dia 09 de Abril de 2008, por apelo ao princípio da proibição da dupla incriminação (ne bis in idem), considera este tribunal que aos mesmos factos não deve o arguido ser sujeito a novo julgamento e novamente condenado, pelo que, após conferenciado, decide absolver o arguido e declarar extintos os presentes autos.
Sem custas.
Fixa-se em 1,800 patacas os honorários ao ilustre defensor oficioso, a serem suportados pelo GPTUI.
Boletins do registo criminal à DSI.
Declara-se extinta a medida de coacção ao arguido, devendo diligenciar-se em conformidade.
Notifique.”; (cfr., fls. 154 a 160).

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Inconformado, o Exm° Magistrado do Ministério Público recorreu.
Motivou para concluir que:
“1- "In casu", não há ainda decisão sobre o crime de burla imputado ao arguido A pela prática dos factos constantes da acusação do presente caso em que a 3.ª testemunha D intervenha como ofendida.
2- Entendemos que o acórdão recorrido violou o disposto na alínea c) do n.° 2 do artigo 400.° do Código de Processo Penal de Macau.”; (cfr., fls. 164 a 166).

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Sem resposta, vieram os autos a este T.S.I., onde, em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Cremos assistir inteira razão à Exma colega recorrente.
O respeito pelo princípio "ne bis in idem" reporta-se, inequìvocamente, à proibição da dupla incriminação pela prática dos mesmos factos.
Constatando-se, como se constata, que na condenação sofrida pelo recorrido no Tribunal de Domen de Zhuai, da R.P.C., não foi levada em conta parte da matéria constante do libelo acusatório, mais concretamente o referente à 3ª ofendida, analisada e integrada, aliás, como ilícito autónomo, não poderia o tribunal "a quo", após ter dado como comprovados os factos atinentes, absolver o recorrido com fundamento naquele princípio, já que neste específico, de factos diferentes se trata, não podendo os mesmos quedar-se sem escrutínio e punição, independentemente de se ter integrado a conduta como continuação criminosa.
Aliás, em nosso critério, o tribunal, a partir do conhecimento daquela condenação e dos termos do libelo acusatório que lhe era presente, dever-se-ia ter limitado ao julgamento apenas da parte ainda não conhecida, sem prejuízo de, assim o entendendo, levar em conta, na medida concreta da pena a aplicar, os dados resultantes do processo da R.P.C., designadamente a nível da personalidade e conduta anterior do agente.
Desta forma, cremos ocorrer, de facto, o assacado erro notório na apreciação da prova, a justificar o provimento do recurso e a revogação do acórdão recorrido, sendo que, a nosso ver, é possível a este tribunal decidir da causa, uma vez que o julgamento da matéria foi efectivado, não se justificando, assim o reenvio, a menos que, nessa perspectiva, se considere ficar o recorrido prejudicado, porque inibido de uma instância de recurso.
Este, o nosso entendimento.”; (cfr., fls. 177 a 178).

*

Realizada a audiência de julgamento, cumpre conhecer.

Fundamentação

2. Vem o Exm° Magistrado do Ministério Público recorrer da decisão ínsita no Acórdão do T.J.B. atrás transcrito e que absolveu o arguido A dos crimes de “burla” que lhe eram imputados.

No dito Acórdão, (após elencada a factualidade provada, e tendo-se consignado também que em relação aos factos não provados “nada havia a assinalar, uma vez que ficaram provados todos os factos relevantes da acusação”), considerou o Colectivo a quo que o arguido “cometeu de forma consciente, livre e com dolo, e em autoria material e na forma consumada e continuada, um crime de burla, previsto e punido pelo art° 211°, n°1, do Código Penal, estando preenchidos todos os pressupostos objectivos e subjectivos do tipo de ilícito por que vem acusado”.

Porém, e consignando que “tendo em conta que ao referido crime de burla o arguido já tinha sido julgado e condenado por acórdão do colectivo de juizes do Tribunal de DouMen de ZhuHai da R.P.C. no passado dia 09 de Abril de 2008, por apelo ao princípio da proibição da dupla incriminação (ne bis in idem)”, decidiu que se não devia sujeitar o arguido a “novo julgamento pelos mesmos factos”, concluindo, assim, pela sua absolvição.

Entende o Exm° Magistrado do Ministério Público que a decisão assim proferida padece de “erro notório na apreciação da prova”, pois que, como afirma, “não há ainda decisão sobre o crime de burla imputado ao arguido A pela prática dos factos constantes da acusação do presente caso em que a 3.ª testemunha D intervenha como ofendida”.

Eis a solução que se nos mostra adequada.

Como é sabido, o vício de “erro notório na apreciação da prova” verifica-se “quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”; (cfr., v.g., Ac. de 14.06.2001, Proc. n° 32/2001).

No caso, e como resulta do que se deixou relatado, é verdade que o Colectivo a quo proferiu a decisão (recorrida) de absolvição do arguido ponderando no teor do “Acórdão do Colectivo de Juízes do Tribunal de DouMen, ZhuHai, R.P.C.”.

Porém, não se pode olvidar que em relação a esta “decisão” é a factualidade dada como provada (assim como não provada) totalmente omissa, não nos parecendo assim que terá incorrido no imputado vício de “erro notório”.

De facto, o “erro” em questão é um erro típico do “julgamento da matéria de facto”, e, como se viu, (nenhuma pronúncia havendo sobre a “decisão” em causa em sede da matéria de facto), inviável é considerar-se verificado tal vício.

Então, quid iuris?

Face ao que alega o Exm° Recorrente, (no sentido de que “não há ainda decisão sobre o crime de burla imputado ao arguido A pela prática dos factos constantes da acusação do presente caso em que a 3.ª testemunha D intervenha como ofendida”), estar-se-á perante um “erro de direito”?

Sendo tal afirmação verdadeira, adequada seria a apontada conclusão.

Contudo, importa ter em conta que na factualidade provada (e não provada) nenhuma referência existe à mencionada “decisão do Tribunal de DouMen, ZhuHai, R.P.C.”

Assim, não pode este Tribunal pronunciar-se sobre o aludido “erro de direito”, sem que, previamente, em sede da matéria de facto, haja uma pronúncia sobre a aludida “decisão”.

Com efeito, sem base fáctica como decidir se existe erro de direito?

Constata-se desta forma que o que existe é “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, – vício este que, aliás, é de conhecimento oficioso – o que, nos termos do art. 418° do C.P.P.M., impõe o reenvio do processo para novo julgamento quanto à parte em questão.

Decisão

3. Nos termos que se deixam expostos, acordam reenviar os presentes autos para novo julgamento.

Sem tributação.

Macau, aos 25 de Novembro de 2010
José Maria Dias Azedo
  
Chan Kuong Seng (com a declaração de que embora se me afigure não oficioso o conhecimento do vício do art.º 400.º, n.º 2, al. a), do CPP, subscrevo a decisão, por entender procedente esse vício, materialmente levantado no 4.º parágrafo da pág. 4 de motivação do recurso do M.P., a que corresponde implicitamente a conclusão 1 da mesma motivação).
João A. G. Gil de Oliveira

Proc. 862/2010 Pág. 16

Proc. 862/2010 Pág. 15