Processo nº 583/2009
(Recurso Cível)
Data: 11/Novembro/2010
Assuntos:
- Direito de retenção do promitente comprador
- Aplicação da lei no tempo
SUMÁRIO :
Se no domínio do Código Civil novo já não se coloca a questão da existência do direito de retenção em relação ao promitente comprador porque expressamente consagrado no art. 745-, f), já no domínio do Código velho, assiste-lhe igualmente o direito de retenção, tendo ele pago o sinal correspondente à totalidade do preço da coisa, tendo tomado posse sobre a mesma, efectuado nela obras de beneficiação, de manutenção e reparação, em termos que se podem entender como se de um verdadeiro dono se tratasse.
Relator,
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
Processo n.º 583/2009
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 11/Novembro/2010
Recorrente: A Lda. (Chamada) A有限公司 (被召喚人)
Recorrido: B
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. C, melhor identificado nos autos,
veio propor acção declarativa de condenação contra
B, também melhor identificado nos autos,
estando na acção como interveniente acessória a A, Limitada,
tendo pedido que o Tribunal:
“a) Condene o R. a reconhecer o A. como dono e legítimo proprietário da fracção autónoma identificada nos autos;
b) Condene o R. a abster-se de fazer uso da mencionada fracção;
c) Condene o R. a pagar ao A. uma indemnização no valor total de MOP$1,185,804.00;
d) Condene o R. nas custas do processo, procuradoria, que se fixa desde já em MOP$50,000.00, e mais encargos legais.”
O R. contestou, invocando um direito de retenção sobre a fracção.
A final, foi proferida decisão nos seguintes termos:
“Nos termos expostos, o Tribunal julga a acção parcialmente procedente e a reconvenção improcedente e em consequência:
a) Declara o A. como dono e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por I9 do 9º andar I, para habitação, do prédio nºs 158 a 258, sito na Avenida 24 de Junho, em Macau.
b) Absolve o R. dos restantes pedidos.
c) Absolve o A. do pedido reconvencional.”
2. A A, Lda., vem recorrer, alegando, em síntese conclusiva:
Vem o presente recurso interposto da sentença que julgou a improcedência parcial da presente acção, absolvendo, entre os outros, o pedido da condenação do Recorrido a abster-se de fazer uso da fracção autónoma 19, melhor identificada nos autos;
O Recorrido não está legitimado a ocupar a referida fracção autónoma I9, uma vez que, o mesmo não possui o direito de retenção sobre a referida fracção autónoma I9 nos termos da lei vigente na ocorrência dos factos em causa, nomeadamente, ao abrigo da Lei 20/88/M, de 15 de Agosto e do Código Civil de 1966;
A promessa de compra e venda da referida fracção autónoma I9 entre a Recorrente e o Recorrido, bem como a tradição da referida fracção autónoma I9, e a aquisição da referida fracção autónoma por parte do Autor, facto constitutivo do incumprimento por parte da Recorrente, são ocorridos antes da entrada vigor do Código Civil de 1999, ou seja 1 de Novembro de 1999;
Antes da entrada vigor do Código Civil de 1999, ou seja 1 de Novembro de 1999, ao abrigo do artigo 2.º da Lei n.º 20/88/M de 15 de Agosto, o beneficiário (Recorrido dos presentes autos) da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa não gozava do direito de retenção sobre a coisa, sendo apenas admitida a possibilidade de o crédito do mesmo ser pago pelo valor da mesma coisa com preferência sobre os outros credores, mas não o direito de retenção;
Recorrido não possui também o direito de retenção previsto pelo artigo 754.º e seguintes do Código Civil de 1966;
O legislador do Código Civil de 1999 não atribuiu a eficácia retroactiva à norma na alínea f) do artigo 745.º do mesmo Código, e a mesma não é aplicável ao contrato em causa nos termos do artigo 11.º do Código Civil de 1999, uma vez que, os factos em causa são ocorridos antes da entrada vigor do Código Civil de 1999, ou seja 1 de Novembro de 1999;
A sentença ora recorrida incorreu o vício da interpretação errada do disposto no artigo 2.º da Lei n.º 20/88/M de 15 de Agosto, em que este preceito legal não consagra o direito de retenção a favor dos créditos do promitente comprador do imóvel com ou sem tradição do imóvel, ora Recorrido dos presentes autos.
Face ao exposto, requer, se revogue a sentença ora recorrida, determinando-se a procedência do pedido de condenação do recorrido a abster-se de fazer uso da fracção autónoma, melhor identificada nos autos.
3. C, Autor nos autos supra referidos, notificado das alegações do recurso interposto pela Assistente, a A, Lda., alega, em síntese:
Ao contrário do decidido, não assiste ao Réu o direito de retenção sobre a fracção autónoma para habitação em litígio, uma vez que à data da celebração do contrato-promessa de compra e venda, celebrado entre o mesmo e a Recorrente, vigorava a Lei 20/88/M, de 15 de Agosto e neste diploma apenas se reconhece ao promitente-comprador, em caso de incumprimento definitivo da promessa por culpa da outra parte e se houver tradição da coisa, um previlégio creditório, que não um direito real de garantia.
Não temos qualquer dúvida que assiste toda a razão à Recorrente
Efectivamente, reza o art. 2° do dito diploma legal: "Havendo tradição da coisa prometida vender, o crédito do promitente-comprador é pago peto valor dessa mesma coisa, com preferência sobre os outros credores comuns."
Por outro lado, o Código Civil de 1966, então em vigor, no seu art. 733.°, dá-nos a seguinte noção: "Previlégio creditáMo é a faculdade que a lei, em atenção à causa do crédito, concede a certos credores, independentemente do registo, de serem pagos com preferência em relação a outros."
É por demais evidente a identidade entre estes dois preceitos, sendo pois inequívoco que a vontade do Legislador, no caso que nos ocupa, foi a de proteger os interesses do promitente-comprador garantindo-lhe, mediante a atribuição de um previlégio creditório, a defesa dos seus legítimos direitos enquanto consumidor, medida necessária tendo em vista a estabilidade do comércio jurídico.
Ora, este direito especial, concedido ao crédito do promitente-comprador, como muito bem resulta do que fica dito, jamais se poderá convolar num direito real de garantia.
Nos termos do disposto no art. 745.° do CC, n.º 1, alínea 1), goza de um direito de retenção especial "o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 436.º;"
Assim, destina-se o direito de retenção, conferido ao promitente-comprador de prédio urbano com traditio, a garantir que este seja ressarcido do crédito emergente do incumprimento por parte do promitente-vendedor, mantendo o seu direito a reter a coisa.
Designadamente, no caso de incumprimento definitivo por a prestação se tornar impossivel, garantir o crédito relativo à restituição do sinal em dobro, integrável na previsão do art. 436.°, por remissão do art. 745°, ambos do CC.
Ou, por outro lado, prevalecer-se do direito de retenção que lhe assiste sobre tal bem, de molde a salvaguardar e garantir o crédito à prestação de facto - mediante sentença que produza os mesmos efeitos da declaração negocial - em que consiste a execução específica do contrato promessa (cfr. art. 820, do CC).
Acontece que o suposto direito de retenção reconhecido ao Réu nunca poderia ser exercido contra o ora respondente, pois, contra ele, ficou provado no douto acórdão recorrido, não possui o recorrido crédito de qualquer natureza.
A existir qualquer crédito, facto que desconhecemos sem obrigação de conhecer por não ser um facto próprio e a existir essa garantia, ela teria de ser accionada, é por demais evidente, contra a recorrente, pois foi esta que incumpriu a promessa, e nunca contra o ora respondente que, claramente, não é devedor de qualquer prestação ao Réu.
Logo, tudo como resulta à transparência do art. 754.° do Código Civil de 1966, só goza do direito de retenção "(...) o devedor que disponha de um crédito contra o seu credor (...)", mas o que ficou provado é coisa bem diversa.
Ou seja, provou-se que o Autor nada deve e nem nunca deveu ao Réu.
Logo, existe uma contradição insanável entre os factos dados como provados e o veredicto proferido a final, sendo certo que é nula a sentença “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”, (cfr. art. 571.°, n.º 1, do CPP).
É ainda nulo o acórdão porque os fundamentos de facto e de direito doutamente invocados não justificam a decisão (cfr. art. 571°, n.º 1, b), do CPC).
Termos em que, declarando procedente o recurso da chamada e, consequentemente, revogando, por nulo, o acórdão proferido pelo Tribunal a quo e substituindo o mesmo por outro que condene o recorrido a abster-se de fazer uso da referida fracção autónoma.
4. B, réu nos autos acima referenciados, vem contra-alegar, concluindo:
Em 1988, o legislador ao dispor sobre o regime de contrato-promessa de compra e venda de imóveis, particularmente no que respeita à posição do promitente-comprador, a quem se operou a traditio do imóvel objecto do contrato, fê-lo com nítida finalidade de proteger os interesses deste último.
A Lei n° 20/88/M, para além do disposto sobre a execução específica, veio a conferir ao promitente-comprador o direito de ser pago pelo valor da coisa objecto da promessa de compra e venda, contanto que houvesse a tradição da coisa.
Embora inominado, tal direito tem a natureza de um direito real de garantia à semelhança da hipoteca e do penhor, um direito directo sobre a coisa, independentemente de quem seja o seu proprietário, que garante ao promitente-comprador o ressarcimento do seu crédito.
Tal direito é um verdadeiro direito de retenção na medida em que permite ao promitente-comprador deter/possuir (ou reter) até que o seu crédito seja realizado.
Mesmo. que assim se não entenda, o novo Código não vem modificar o regime do contrato promessa, não cria novas condições de validade substancial ou formal sobre o contrato-promessa ou dos seus efeitos.
Porém, independentemente do regime do contrato-promessa veio a definir quem em especial é titular do direito de retenção, e entre os casos especiais figura o promitente-comprador, nos termos do art. 745°, f)
Nos termos do n° 2, do art. 11° do CCM, quando a nova lei dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.
Paralelamente, o novo Código Civil de Macau seria aplicável à execução específica, nos contratos celebrados antes da entrada em vigor daquele, se não fosse a norma do art. 16° do DL n° 39/99/M, que aprovou aquele mesmo Código.
Semelhante norma não temos quanto ao direito de retenção.
Posto o que deve o recurso ora interposto ser julgado improcedente, negando-se-lhe o provimento, e mantendo-se o julgado em primeira instância.
5. Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
“Dos factos assentes
A) O A. é actualmente dono e legítimo proprietário da fracção autónoma designada por XX do XXº andar XX, para habitação, do prédio nºs XX a XX, sito na Avenida XXX, em Macau.
B) A referida fracção foi adquirida pelo A., por escritura pública, em 4 de Junho de 1999.
C) O R. e a anterior proprietária A, Limitada ora chamada celebraram em 10 de Março de 1999 um acordo cujos termos constam do doc. n.º 1 junto com a contestação.
D) Nos termos do mesmo acordo, o preço convencionado foi no valor de HKD$250,000.00.
Da base instrutória
1. O A. celebrou a 11 de Janeiro de 1999, com a anterior proprietária A, Limitada ora chamada um acordo a fls. 16 a 17 dos autos, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido.
2. Após a aquisição, o A. veio a saber que a referida fracção estava sendo ocupada pelo R. sem o seu consentimento, pelo que comunicou-lhe que deveria abandoná-la, deixando-a livre e desocupada.
3. Mas o R. recusou peremptoriamente do pedido.
4. Em 28 de Setembro de 2005, o A. enviou uma carta registada com aviso de recepção ao R. para que este a desocupasse.
5. Porém, essa tentativa também não resultou.
6. O preço mencionado na alínea D) da matéria de facto assente foi totalmente pago no acto de assinatura do acordo especificado na alínea C).
7. No acto de assinatura do mesmo acordo, a anterior proprietária ora chamada fez entrega ao R. das chaves da fracção em causa.
8. Tendo em consequência disso tomado “posse” da referida fracção.
9. Desde que o R. tomou “posse” da fracção, realizou obras de beneficiação, que lhe custaram cerca de MOP$100,000.00 (cem mil patacas).
Bem como várias outras despesas de manutenção, de reparação, e de outra natureza mas conexa com a utilização da fracção.”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente por saber se assiste ao R. o direito de retenção sobre a fracção em causa.
Não obstante a complexidade da questão jurídica que a o caso comporta, iremos procurar simplificar as coisas de forma a tornar clara a fundamentação da decisão a proferir.
2. Em termos esquemáticos o caso é o seguinte:
Em 4/6/99, o A. (Autor) compra X ( a fracção objecto do litígio) a C (Chamada, A Lda).
Em 10/3/99, B (Réu) prometeu comprar X a C por MOP 250.000,00, preço esse pago no momento daquela promessa, sendo-lhe entregues as chaves e passando ele a ocupar X.
A prometera comprar X em 11/1/99.
A pretende que B lhe entregue X.
Quid juris?
3. A questão decidenda acima identificada emerge, tal como colocada, na medida em que fica de fora a comprovação da versão sustentada nos autos relativa à simulação do contrato celebrado por B.
O R. contrapõe à reivindicação do A., baseado na aquisição da propriedade, face à escritura de compra e venda, que, aliás, não contesta o seu direito de retenção.
O A. diz que, ao tempo, da celebração do contrato, regia o Código Civil anterior que não conferia tal direito.
Para além de que o invocado direito de retenção não lhe é oponível.
4. Do direito de retenção; noção e função
A função do direito de retenção é uma função de garantia, atribuindo-se ao retentor faculdades de realização pecuniária nos termos do credor hipotecário, tratando-se de coisas imóveis, e a sua tónica real significa que pode ser actuado onde quer que a coisa se encontre, incluindo nas mãos de terceiros, nos termos geris dos direitos reais, dada a inerência que os caracteriza.1
O direito de retenção pressupõe que aquele que retem tenha um crédito sobre outrem, por causa da coisa retida, mas não deixa de estar obrigado à entrega quando o seu crédito for satisfeito.2
Esse crédito, pelo incumprimento, no caso do contrato-promessa de compra e venda, pode ser, v.g., o dobro do sinal, ou o valor da coisa, determinado objectivamente à data do incumprimento, acrescido do sinal e da parte do preço que tenha pago, ou, se houver convenção de indemnização pelo incumprimento, o que se achar estabelecido nos termos do convencionado.
O direito de retenção destina-se, não a proporcionar o gozo ou a fruição da coisa ao titular desse direito, mas a permitir-lhe apenas a execução da coisa retida e o pagamento sobre o valor dela com preferência sobre os demais credores.3
Donde se pode concluir que o direito à retenção não confere mais do que esse poder; o de reter e se fazer pagar pela coisa para garantia do seu crédito. Com ele não se transmite ipso jure qualquer direito de propriedade sobre a coisa.
Estamos, pois em condições de definir o direito de retenção como o direito que tem o detentor da coisa, obrigado à sua entrega, de a recusar, retendo, pois, o objecto, enquanto não for pago do crédito que por sua vez lhe assiste. 4
Ou numa outra asserção, consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lhe pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele.5
Como está bem de ver há aqui uma nuance, não despicienda na questão ora em juízo, qual seja a de saber se aquela faculdade de não entrega da coisa é oponível ou não a quem não seja o devedor.
Deixemos por ora esta questão em aberto.
5. Consagração do direito de retenção; regime aplicável
Muito sumariamente, diremos que no novo Código Civil, entrado em vigor em 1 de Nov./99, o direito de retenção é expressamente previsto nos casos das promessas de compra e venda no art. 745º, n.º 1, f), quando haja sinal e traditio - “o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 436º”.
Considerando que o incumprimento, traduzido na não entrega por parte do R. ocorreu no domínio do velho Código, será este o aplicável, tendo aqui presente o já decidido pelo nosso Tribunal de Ultima Instância.6
Então como se passavam as coisas no velho Código?
Embora só com a entrada em vigor do novo CC de Macau se consagrasse expressamente este direito ao promitente comprador, já anteriormente, por via jurisprudencial e doutrinária, se adoptava o entendimento que ia no sentido de se considerar consagrado esse direito, desde que o possuidor agisse como senhor da coisa.7
Na verdade, já anteriormente se entendia que a tradição da coisa, por via do contrato-promessa de compra e venda, para o promitente-comprador, conferia a este o acesso à tutela possessória, desde que aquela tradição fosse seguida da prática, por aquele, de actos próprios de quem age em nome próprio, na esteira de Pires de Lima e Antunes Varela, o contrato promessa, com efeito, não é susceptível de, só por si, transmitir a posse ao promitente - comprador. Se este obtém a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, adquire o "corpus" possessório, mas não assume o "animus possidendi", ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.8
Porém, como defende o Prof. Antunes Varela, casos há em que a posição jurídica do promitente-comprador preenche os requisitos de uma verdadeira posse. Como exemplo, é indicada a situação em que com a entrega da coisa o preço é pago na totalidade.
Mas, outros casos há em que a tradição da coisa é seguida da prática de actos, pelo promitente - comprador, próprios de quem age em seu nome, e não em nome do promitente-vendedor.
O artigo 875º do Código Civil de 66, conjugado com o artigo 89º, n.º 1 do Código de Notariado pré-vigente, determinava, por seu lado, que a forma para transmissão de propriedade sobre imóveis é a escritura pública, tal como hoje acontece. Pelo que não existe outro modo idóneo, com eficácia translativa para um direito real de gozo sobre um imóvel, que não a celebração de escritura pública.
E se a lei prevê um direito de retenção a favor do promitente-comprador, quando haja tradição da coisa, tal direito é para ser usado contra o promitente vendedor, traduzindo-se num direito real de garantia, não impedindo, por si, o arresto, ou a penhora, apenas permitindo ao promitente-comprador reclamar, a par com outros credores com garantia real, o seu crédito.
Esta situação é diferente daquela em que a qualidade de promitente-comprador, se verifica sem traditio, e que integra tão somente um direito de crédito a concretizar pelo promitente vendedor, que fica por essa via obrigado a vender-lhe a coisa prometida – cfr. art. 413º, nº 1 e 830º, nº 1 e 2 do CC de 66 -, na esteira do entendimento de Pires de Lima e Antunes Varela9, o contrato-promessa não é susceptível, só por si, de transmitir a posse ao promitente-comprador, já que este, mesmo obtendo a entrega da coisa antes da celebração do negócio translativo, só adquire o corpus possessório mas não o animus possidendi, ficando, pois, na situação de mero detentor ou possuidor precário.10
Também outros autores defendiam não ser admissível a posse nos direitos reais de garantia, entre eles o direito de retenção sobre a coisa que é objecto do contrato-promessa.11
E parte da jurisprudência também vinha defendendo, até uma determinada altura, que o promitente-comprador, titular do direito de retenção sobre a coisa que lhe foi antecipadamente entregue, não podia deduzir embargos de terceiro.12
Porém, opinião diferente tinha Vaz Serra13, para quem o promitente-comprador que toma conta do prédio e pratica actos correspondentes ao exercício do direito de propriedade, sem que o faça por uma tolerância do promitente-vendedor, mas com a intenção de agir em seu próprio nome, passando a agir como se a coisa já fora sua, embora ainda a não tenha comprado, pratica actos possessórios sobre a coisa e com o animus de exercer em seu nome o direito de propriedade; daí o gozar dos meios possessórios que a lei reconhece ao possuidor para defesa da posse, com os embargos de terceiro, e, assim, a penhora da coisa em execução contra o promitente-vendedor autoriza o promitente-comprador a deduzir tais embargos de terceiro; no caso de antecipação da entrega da coisa, as partes, além do contrato-promessa, terão celebrado outro contrato inominado susceptível de protecção possessória, através do qual os promitentes-vendedores concederam aos promitentes-compradores o direito ao uso e fruição da coisa até à conclusão do contrato prometido ou resolução do contrato-promessa.
Por seu turno, Orlando de Carvalho14sustenta que pode haver posse em certos direitos reais de garantia, como o direito de penhor e o direito de retenção, que conferem poderes de facto sobre a coisa, dado que a lei estabelece que o credor pignoratício tem o direito de usar, em relação à coisa empenhada, das acções destinadas à defesa da posse, ainda que seja contra o próprio dono (artigo 662º, alínea a), o que também valia, por força dos artigos 758º e 759º, n.º 3 do Código Civil de 66, para o titular do direito de retenção.
Finalmente, J. Calvão da Silva15 refere que para se saber se houve posse ou mera detenção no poder de facto do promitente-comprador sobre a coisa objecto do contrato prometido, que lhe foi entregue antecipadamente, tudo depende do animus que acompanhe o corpus, isto é, se o promitente-comprador tiver animus possidendi, o que não é de excluir a priori, será possuidor, situação que pode ocorrer nos termos da alínea b) do artigo 1263º do Código Civil de 66 (v.g. o promitente-vendedor diz ao promitente-comprador que pode entrar para a casa e proceder como proprietário desde logo, como se ela fosse desde já sua, passando ele a actuar com animus rem sibi habendi, ou originariamente, nos termos da alínea a) do mesmo artigo 1263º), mas, se tiver animus detinendi, será detentor ou possuidor precário; e acrescenta que, em todos os casos de tradição da coisa para o promitente-comprador, a ocupação, uso e fruição da coisa por este é lícita e legítima, até à resolução do contrato-promessa ou celebração do contrato prometido, porque se constitui uma relação jurídica obrigacional que confere ao promitente comprador o direito relativo de ocupar, usar e fruir a coisa até uma daquelas duas referidas situações, seja qual for a classificação dada a essa relação jurídica; e certo é que o facto de o promitente-comprador gozar do direito de retenção da coisa é irrelevante para a questão de saber se houve posse ou mera detenção.
Pelo que toca à Jurisprudência, parece poder concluir-se pela tendência no sentido de que o promitente-comprador, tendo havido tradição da coisa, é um verdadeiro possuidor e não um mero detentor, ou pelo menos que, como titular do direito de retenção, goza de tutela possessória e por isso até pode embargar de terceiro.16
E não se deixa de registar que o entendimento acima explanado já anteriormente vinha sendo acolhido nos Tribunais de Macau17
6. Das consequências do reconhecimento de um direito de retenção oposto à pretensão do A. em relação a terceiros adquirentes do primitivo transmitente
Posto isto, a natureza de um verdadeiro real de garantia confere a possibilidade de oponobilidade não só contra o transmitente como contra terceiros de boa-fé, face ao disposto nos artigos 744º e 749º, ambos do Código Civil.
Mas como vimos, apenas dentro dos limites e conteúdo desse direito.
Como diz Henrique Mesquita18 “A circunstância, porém, de o credor não poder proceder directa e autonomamente à alienação do objecto de garantia não impede a conceituação do seu direito como um verdadeiro jus in re. A finalidade precípua de tal direito (a soberania que confere) é a realização, pelo titular, de certo valor pecuniário à custa da coisa sobre que incide.
(...)
Pelo facto de se constituir um direito real limitado, o proprietário da coisa não fica impedido de o alienar; mas o titular daquele direito poderá fazê-lo valer contra o subadquirente. Ele tem sobre a coisa o chamado poder de sequela.
O poder de sequela (ou de seguimento) existe em todos os direitos reais.
O titular de qualquer jus in re, sempre que a coisa que constitui o respectivo objecto se encontra sob o domínio de um terceiro, pode actuar sobre ela - pode segui-la - na medida necessária ao exercício do seu direito.
(...) como destinar-se a possibilitar o exercício do direito em caso de transmissão, pela titular do jus disponendi, da coisa sobre que o direito incide... o direito real do credor hipotecário ou do proprietário dominante segue a coisa, isto é, pode ser exercido em face do novo proprietário.
Do que se trata, aqui, não é de defender o direito de hipoteca ou o de servidão contra uma agressão cometida por terceiro (a alienação do prédio é lícita), mas de os fazer valer contra subadquirente".
Estamos assim em condições de constatar que, ao reconhecer o direito de retenção ao R.., embora esse direito não contenha a virtualidade de operar a transferência da propriedade sobre a coisa, o certo é que lhe confere o direito de o reter para garantia do seu crédito, face ao incumprimento do promitente vendedor.
E não foi sem razão que, por isso mesmo, o R chamou aos autos a promitente vendedora, a dita A Lda.
7. Concluindo
Somos desta forma a concluir no sentido da existência de um direito de retenção ao R., porquanto promitente compradopr, tendo pago o sinal correspondente à totalidade do preço da coisa, tendo tomado posse sobre a coisa, efectuado nela obras de beneficiação, de manutenção e reparação, em termos que se podem entender como se de um verdadeiro dono se tratasse.
Nesta conformidade se decidirá, mantendo a decisão recorrida com os fundamentos acima desenvolvidos.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 11 de Novembro de 2010,
_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeiro Juiz-Adjunto)
_________________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Menezes Cordeiro, Dtos Reais, 1979, 771
2 - Oliveira Ascensão, Dto Civil, Reais, 1993, 552
3 - A. Varela, RLJ, 119º, 204
4 - Galvão Telles, Dir.das Obrigações, 4ª ed., 265 ou Paulo Cunha, Garantia das Obrigações, 2ª, 155
5 - P. Lima e A. varela, CC Anot, nota I ao art. 754º
6 - Ac- TUI, proc. 41/2008, de 5/12/08 e Ac. 42/2004, de 1/12/04
7 - Cfr. acs deste TSI, proc. 409/2007, onde se faz uma resenha doutrinária e jurisprudencial do reconhecimento do direito de retenção como garantia real a c reconhecer ao promitente comprador, com traditio e 729/2007, de 22/5/2008
8 - Cód. Civil Anotado, Vol. III, 2ª ed., pg. 6, e A. Varela na R.L.J., Ano 124, pg. 348
9 - Código Civil Anotado, volume III, 2. edição, 6
10 - R.L.J. 124, páginas 347 e 348
11 - Mota Pinto, Dtos Reais, 1971, 196 e Henrique Mesquita, Direitos Reais, edição de 1967, 80
12 - Entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 28 de Novembro de 1975, 29 de Janeiro de 1980, 31 de Março de 1993, 23 de Janeiro de 1996, in, respectivamente, R.L.J. 109, página 334, R.L.J. 114, página 17, C.J. do Supremo, 1993, Tomo II, 44, C.J. do Supremo 1996, Tomo, página 70
13 - R.L.J. 109, páginas 347 e seguintes e 114, páginas 20 e seguintes
14 - R.L.J. 122, página 106
15 - Sinal e Contrato-Promessa, 112
16 - Entre outros, os acórdãos do S.T.J. de 18 de Novembro de 1982, 4 de Dezembro de 1984, 25 de Fevereiro de 1986, 16 de Maio de 1989, 22 de Junho de 1989, 21 de Fevereiro de 1991, 7 de Março de 1991, in, respectivamente, B.M.J. 321, página 387, 342, página 347, 354, página 549, 387, página 579, 388, página 437, 404, página 465, 405, página 456.
Cfr. ainda acs. deste TSI, procs. 246/2002 e 247/2002, de 27/2/03 e de 13/3/03
17 - Cfr. Proc. 195/2004, deste TSI, de 2/!2/2004 e Ac. de 15/2/95 do então TSJ, in Tribunal Superior de Justiça de Macau – Jurisprudência, 1995, I Tomo, pags. 102 e segs, entre outros
18 - Obrigações Reais e Ónus Reais, 77 e segs
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583/2009 1/23