Processo n.º 494/2010
(Recurso Penal)
Data: 2/Dezembro/2010
Assuntos :
- Leitura de declarações não permitidas; anulação do julgamento
Sumário :
Sendo lidas em audiência declarações do arguido não permitidas e não se comprovando que essa leitura, será de desvalorizar em termos de convicção há que anular o julgamento efectuado, sendo o vício incorrido de conhecimento oficioso.
O Relator,
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
Processo n.º 494/2010
(Recurso Penal)
Data: 2/Dezembro/2010
Recorrente: A
Objecto do Recurso: Acórdão condenatório da 1ª Instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, arguido nos autos à margem referenciados, tendo sido notificado do acórdão proferido no dia 30 de Abril de 2010, em que foi considerado autor material de um crime de denúncia caluniosa previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 329.° do Código Penal, foi o ora Recorrente condenado em pena de prisão de um ano, suspensa por três anos, inconformado, recorre.
Alega em síntese conclusiva:
Considerado autor material de um crime de denúncia caluniosa previsto e punido pelo n.º 1 do artigo 329.º do Código Penal, foi o ora Recorrente condenado em pena de prisão de um ano, suspensa por três anos.
Foi no entanto também decidido que a dita suspensão ficava condicionada a que o Arguido, no prazo de trinta dias, (i) apresentasse um pedido de desculpas por escrito dirigido à Polícia Judiciária de Macau e (ii) pagasse MOP30.000,00 (trinta mil patacas), a título de indemnização, à Região Administrativa Especial de Macau.
O arguido A pretende, em primeiro lugar, recorrer da condenação da prática do sobredito crime de denúncia caluniosa.
O Tribunal a quo formou a sua convicção com base em: confissão do arguido B; declarações prestadas pelo arguido A; depoimento das testemunhas C, D, E, F e Inspector G; e documentação constante dos autos (cf. página 4 do douto acórdão).
O arguido B confessou apenas os factos relativos à ofensa à integridade física contra o ora Recorrente A.
O Recorrente A não confessou os factos de que vinha acusado relativamente ao crime de denúncia caluniosa.
Na audiência, e ao longo do inquérito (cf. fls. 123 e 124), o Recorrente A negou quaisquer acusações relativas à prática do crime de denúncia caluniosa e reiterou que foi vítima de um crime de roubo.
Na audiência, as testemunhas C e D declararam que já não se lembravam do incidente, que supostamente ocorreu em 4 de Setembro de 2005, dado ao período de mais de quatro anos que decorreu desde então.
As ditas testemunhas C e D prestaram depoimento nas instalações da Polícia Judiciária em 15 e 16 de Setembro de 2005, respectivamente;
neles consta que as mesmas tinham regressado ao estabelecimento de comidas antes do termo do incidente (cf. última linha da fls. 115, primeira linha da fls. 116, primeira linha da fls. 119), pelo que as mesmas presenciaram apenas parte do incidente;
o que aconteceu depois do regresso das ditas testemunhas ao estabelecimento de comidas, estas simplesmente desconheciam em absoluto.
Salvo o devido e incondicional respeito, o conteúdo dos depoimentos prestados pelas testemunhas E e F, para além de ser expectável, não pode ser isento de reserva especial, tendo em consideração a estreita ligação entre o ora Recorrente A, o arguido B, a testemunha E e a testemunha F: (i) B e F foram, inicialmente, co-arguidos no inquérito de investigação do crime de roubo, aberto por denúncia do lesado e aqui Recorrente A; (ii) B foi, posteriormente, acusado de ofensa à integridade física contra A; (iii) a testemunha E é mulher do arguido B; (iv) a testemunha F é amigo e excolega do B.
O Inspector G não presenciou a ocorrência do incidente.
A documentação organizada ao longo do inquérito pelas respectivas entidades competentes e que se juntou aos autos (autos de apreensão de objectos, autos de reconhecimento de objectos e de pessoas, etc) não prova seguramente a verificação efectiva de factos qualificáveis de roubo.
Salvo melhor opinião em contrário, no nosso modesto entendimento, parece-nos que os depoimentos prestados pelas testemunhas E e F não poderiam deixar de ser desvalorizados na apreciação feita pelo Tribunal a quo sobre a verificação ou não dos factos qualificáveis de denúncia caluniosa, uma vez que (i) compete a qualquer Tribunal apreciar dinamicamente quaisquer factos com base em provas, tanto quanto possível, fiáveis e isentas de quaisquer reservas; (ii) a valorização de depoimentos não isentos de reservas corre o risco errar; e (iii) à luz da experiência comum, os depoimentos prestados pelas testemunhas E e F, pela relação que os une ao Arguido B, poderiam, nas circunstâncias concretas do caso em questão, ser facilmente desviados/viciados.
Pelo acima exposto, restam assim as provas referidas nas alíneas i, ii., iii., iv., vii., e viii. do ponto quarto anteriormente referido, para convencer o Tribunal a quo que efectivamente se verificaram os factos qualificáveis de denúncia caluniosa.
Salvo melhor opinião, as provas mencionadas nas referidas alíneas i, ii., iiL, iv., vii., e viii. não comprovam a verificação efectiva dos factos qualificáveis de roubo, conforme denunciados pelo lesado e ora Recorrente A.
Porém, a não comprovação da verificação dos factos qualificáveis de roubo não implica necessariamente a não verificação de qualquer roubo, não podendo, consequentemente, concluir-se sem mais que o Recorrente A denunciou falsamente determinadas pessoas, lançando sobre elas a suspeita da prática de um crime de roubo, tendo assim praticado um crime de denúncia caluniosa.
Pelo exposto, dos elementos constantes dos autos conjugados com as regras da experiência comum, a condenação do Recorrente A pela prática de um crime de denúncia caluniosa, em conformidade com o disposto no n.º 1 do artigo 329.° do Código Penal, padece de erro notório na apreciação da prova, ao abrigo do disposto na alínea c) do n.º 2 do artigo 400.° do Código de Processo Penal,
pelo que impõe-se revogar a condenação do Recorrente A pela prática de um crime de denúncia caluniosa, e decidir pela absolvição do ora Recorrente.
Na eventualidade de o Tribunal não conceder provimento - o que não se concede -, o Arguido A pretende recorrer da fixação da sobredita condição (ii).
É verdade que o artigo 49.° do Código Penal prevê que a suspensão da execução da pena de prisão possa ser subordinada ao cumprimento de deveres impostos ao condenado e destinados a reparar o mal do crime.
No entanto, não sem se ter em atenção a regra geral do n.º 2 do artigo 48.° do Código Penal, que subordina a imposição desses deveres a juízos de conveniência e adequação à realização das finalidades da punição.
E, nos termos do n.º 2 do artigo 49.° do mesmo Código, os deveres impostos não podem em caso algum representar para o condenado obrigações cujo cumprimento não lhe seja razoável exigir.
O ora Recorrente conhece a cominação prevista na alínea b) do número 1 do artigo 54.° do Código Penal, e entende que ela é uma condição de cuja não verificação depende a manutenção da suspensão de execução da pena de prisão de um ano.
O ora Recorrente entende também que a suspensão da execução da pena de prisão de um ano depende do cumprimento pontual do dever de apresentar um pedido de desculpas por escrito dirigido à Polícia Judiciária de Macau no prazo de trinta dias, ao abrigo do disposto na alínea a) do número 1 do artigo 54.º do Código Penal a contrario.
Conforme constante da página 4 do acórdão condenatório, o Tribunal a quo, em relação ao ora Recorrente, deu como provado que este é primário.
Conforme o relatório social constante de fls. 257 e ss., o Recorrente A exerce uma actividade empresarial, tendo registado, ao longo de vários anos de exercício, prejuízos que ascendia a cerca de um milhão e quinhentas mil patacas, e tem, a seu cargo, a sua mãe e dois filhos.
Atendendo à condição económica do ora Recorrente, crê-se que a cominação (acessória) que lhe foi imposta, de ter que pagar, no prazo de trinta dias, MOP30.000,00 (trinta mil patacas), é manifestamente desadequada e desrazoável.
Por ser desadequado e desrazoável sujeitar a suspensão da execução da pena de prisão fixada ao ora Recorrente ao pagamento de qualquer quantia monetária, impõe-se revogar a parte do acórdão de que se recorre, decidindo ser de aplicar ao ora Recorrente a suspensão da execução da pena de prisão sem condicioná-la ao pagamento de qualquer quantia monetária.
Em todo o caso, ainda que houvesse de decidir-se existirem razões de justiça e de finalidade das penas que justificassem a imposição ao ora Recorrente de uma obrigação de pagar uma determinada quantia monetária à Região Administrativa Especial de Macau como condição da suspensão da execução da pena de prisão, sempre essa deveria ser de montante inferior a MOP30.000,00 (trinta mil patacas) e pagável em prestações, com o fim de proteger as pessoas e os núcleos familiares mais desfavorecidos, ainda que a custo de outros valores jurídicos perfeitamente válidos.
Impõe-se portanto revogar a parte do acórdão de que se recorre, decidindo-se a final ser de aplicar ao ora Recorrente (1) a suspensão da execução da pena de prisão sem condicioná-la ao pagamento de qualquer quantia monetária, ou (2) a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao pagamento de montante inferior a MOP30.000,00 (trinta mil patacas) e pagável em prestações.
Termos em que, entende, deve ser concedido provimento ao presente recurso e em consequência, revogar-se a douta decisão condenatória da prática de um crime de denúncia caluniosa, substituindo-a pela absolvição do ora Recorrente, ou,
na eventualidade de o Tribunal não conceder provimento - o que não se concede -, revogar-se a parte do acórdão respeitante à sobredita condição (decidindo-se a final ser de aplicar ao ora Recorrente a suspensão da execução da pena de prisão sem a condicionar ao pagamento de qualquer quantia monetária, ou a suspensão da execução da pena de prisão condicionada ao pagamento de montante inferior a MOP30.000,00 (trinta mil patacas) e pagável em prestações, assim se fazendo JUSTIÇA.
A Digna Magistrada do MP oferece a seguinte douta resposta, no essencial:
O Tribunal a quo condenou o arguido A, pela prática de um crime de denúncia caluniosa, p. e p. pelo art.º 329º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 1 ano de prisão, com suspensão da execução da pena por 3 anos, sob condição de o arguido, no prazo de 30 dias, dirigir o pedido de desculpas por escrito à P.J. e efectuar o pagamento do montante no valor de MOP$30.000,00, destinado à reparação do dano provocado à R.A.E.M.; e, também, julga procedente a acusação deduzida contra esse arguido pela prática de um crime de ofensa simples à integridade física, p. e p. pelo art.º 137º, n.º 1 do Código Penal, porém era impossível a instauração do respectivo procedimento criminal, uma vez que o ofendido (1º arguido) não exerceu o direito de queixa contra o mesmo.
O recorrente (ora 2º arguido) não concordou com o acórdão do Tribunal a quo e interpôs recurso por ter verificado no aludido acórdão a existência de erro notório na apreciação da prova indicado no art.º 400º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, pedindo a revogação do referido acórdão e a absolvição do crime imputado que lhe foi imputado; se não entender assim, o recorrente solicitou que revogasse a segunda parte da condição que lhe foi imposta para suspender a execução da pena condenada, ou seja, efectuar o pagamento do montante no valor de MOP$30.000,00, destinado à reparação do dano provocado à R.A.E.M.; ou então efectuasse o pagamento da multa em prestações, com valor inferior a MOP$30.000,00.
Quanto ao aspecto de que o acórdão violou o disposto no art.º 400º, n.º 2, al. c) do Código de Processo Penal, o recorrente entendeu que o 1º arguido B apenas confessou os factos que lhe foram imputados, além disso, as testemunhas C e D alegaram na audiência que não se lembravam da situação daquela noite, e, também, os depoimentos dados pela esposa do 1º arguido E e por F, que foi considerado como cúmplice do crime de roubo, não conseguiram apurar se neste caso existia ou não o crime de roubo, já que eles tinham relação especial com o arguido.
O erro na apreciação da prova consiste no facto que se dá como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se deve provar ou não provar, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável, ou, na apreciação da prova, o tribunal violou as regras sobre o valor da prova vinculada ou as regras da experiência comum que deviam ser necessariamente respeitadas. O tribunal do recurso só pode intervir na apreciação da convicção do tribunal de 1ª instância através do mecanismo do recurso, quando existir informações que revelam que o tribunal de 1ª instância, ao formar a sua convicção, cometeu erro notório na apreciação da prova, senão a convicção do tribunal de 1ª instância não seria apreciada pelo tribunal superior (Recurso em Processo Penal n.º 569/2009 e n.º 279/2009 do T.S.I.).
Consultados os autos, não custa nada detectar que, na madrugada do dia 5 de Setembro de 2005, o recorrente apresentou queixa à Polícia, alegando que, no dia 4 de Setembro, pelas 22H30, foi roubado de forma premeditada pelo 1º arguido e por H e F no parque do estacionamento do Edf. Hoi Pan Garden na Areia Preta, subtraindo do recorrente uma mala de mão colocada no interior do carro, e foi agredido pelos mesmos quando seguiu atrás deles. Pelo que a Polícia instaurou o inquérito n.º 3065/2005, investigando os envolventes, o local da ocorrência dos factos, o veículo em causa, bem como o registo de chamadas telefónicas do recorrente. Perante o caso, todos os envolventes negaram a prática do crime de roubo e disseram que tinha discussões com o recorrente. Respectivamente em 15 e 16 de Setembro foram inquiridos o patrão do Estabelecimento de comida “XX Sio Hao” (XX燒烤店) C e o empregado que responsabiliza pelo estacionamento dos carros dos clientes D, ambos referiram expressamente que o 1º arguido e o recorrente eram clientes do dito estabelecimento de comida; naquela noite, eles encontraram-se em discussões e empurrões, consequentemente, cada um convocou os seus apoiantes para deslocar-se ao local em causa, mas nenhum deles praticou roubo.
Dado que existe incompatibilidade notória entre os depoimentos e aquilo que foi dito pelo recorrente, bem como, na altura, os envolventes estavam apenas a jantar no local da ocorrência dos factos, mais, conjugado com todos os indícios, a Polícia concluiu no seu despacho final que o recorrente simulou factos criminosos, pelo que este foi suspeito da prática do crime de denúncia caluniosa, previsto no art.º 329º, n.º 1 do Código Penal (vide fls. 136 a 141). Posteriormente, o MºPº procedeu à investigação suplementar e chegou também a mesma conclusão.
Finda a audiência de julgamento e com base nos depoimentos dados pelas testemunhas e nas declarações prestadas pelos arguidos, conjugado com as informações constantes dos autos, o Tribunal Colectivo a quo concluiu que, no dia 4 de Setembro de 2005, pelas 10H30, o recorrente, ao conduzir o carro até à saída do aludido parque do estacionamento, meteu em conflitos com o 1º arguido, H e F, e resultou em agressões com o 1º arguido, mas não como alegado pelo recorrente perante a Polícia, isto é, o recorrente foi roubado por várias pessoas, incluindo o 1º arguido.
Face a esta questão, o recorrente apenas duvidou que o Tribunal a quo não devia acreditar nos depoimentos dados pelas testemunhas, mas nunca indicou como é que o Tribunal Colectivo a quo tinha violado notoriamente o raciocínio geral e a lógica no apuramento dos factos, nem produziu nenhuma prova respeitante ao crime de roubo por ele imputado.
De facto, o recorrente estava a duvidar sobre a livre convicção do Tribunal Colectivo a quo.
Face à questão de aplicação do princípio da livre convicção, o T.S.I. referiu expressamente diversas vezes nos processos n.ºs 569/2009, 541/2009, 421/2007 e 110/2008 que a livre convicção consiste em formar a convicção com base na apreciação e análise das provas em forma objectiva e compatível com a lógica e o raciocínio geral. Caso o Tribunal a quo forme a convicção com base no princípio da livre convicção e na análise objectiva e sintética feita a todas as provas do caso, e, sem qualquer violação das regras sobre o valor da prova ou as regras da experiência comum, o recorrente não pode duvidar sobre o resultado do conhecimento de facto do Tribunal a quo.
Por outras palavras, o tribunal do recurso só pode intervir na apreciação da convicção do tribunal a quo através do mecanismo do recurso, quando o tribunal a quo, ao formar a sua convicção, cometeu erro notório na apreciação da prova e violou regras sobre o valor da prova ou as regras da experiência comum, senão não seria apreciado pelo tribunal superior o apuramento dos factos realizado pelo tribunal a quo em conformidade com a sua convicção.
Com base na análise dos depoimentos dados pelas testemunhas, das declarações prestadas pelos arguidos e das informações constantes dos autos, o Tribunal a quo concluiu que o recorrente simulou factos criminosos por ter denunciado caluniosamente perante a Polícia que foi roubado pelo 1º arguido e outras pessoas, pelo que não existia qualquer violação das regras do valor da prova ou das regras da experiência comum.
Mais, o recorrente invocou que era notoriamente irrazoável que o Tribunal a quo suspendia a execução da pena sob condição de efectuar o pagamento de multa, violando assim o disposto no art.º 49º, n.º 2 do Código Penal, já que o recorrente era primário e que embora fosse comerciante, tinha dívida em todos os anos, perfazendo o valor acumulado de $1.500.000,00 e, por cima, tinha a mãe e os filhos a seu cargo.
O recorrente encobriu dolosamente a verdade, abusou os poderes públicos, queixou-se caluniosamente à P.J. de que foi roubado pelo 1º arguido e outras pessoas, fazendo com que a Polícia realizou investigação de diversos aspectos, provocando enorme desperdício dos recursos humanos e materiais. Quanto a isso, o Tribunal Colectivo a quo atendeu a que o recorrente era primário e suspendeu-lhe a execução da pena, mas, simultaneamente, o tribunal considerou que a denúncia caluniosa do recorrente trazia consequência funesta à Polícia e à R.A.E.M., pelo que se deve sancionar rigorosamente o autor daquela espécie de crime.
Pela ilicitude e gravidade do comportamento do recorrente, verifica-se que a suspensão da execução da pena sob condição de indemnizar pecuniariamente o Governo da R.A.E.M. é compatível com as disposições legais, é um caso ordinário encontrado na jurisprudência e não existe nele qualquer irrazoabilidade ou excesso.
O recorrente invocou que o valor de indemnização fixado pelo Tribunal Colectivo a quo era excessivamente alto, pelo que solicitou que reduzisse o valor de indemnização e efectuasse o pagamento deste em prestações.
Na apresentação da queixa, o recorrente alegou que exercia funções de segurança numa companhia de construção civil e antes disso era bate-fichas de casinos; e, na audiência de julgamento, ele ainda alegou que era porteiro duma companhia de construção civil, mas tinha confessado no relatório social que era comerciante e tinha uma grande dívida de $1.500.000,00.
Pelas informações constantes da página electrónica da Direcção dos Serviços de Estatística e Censos, verifica-se que, em Dezembro de 2009, o salário médio dos operários não qualificados é de MOP$6.380,00. O recorrente não precisa de pagar amortização de moradia ao banco, tem dois filhos que estão a estudar, e a sua esposa é a empregada de cozinha. Embora o grau da intensidade do dolo e da culpa do recorrente seja alto, o pagamento de MOP$30.000,00, no prazo de 30 dias, é efectivamente um encargo para a vida quotidiana do mesmo, deste modo, consideramos que é mais adequado condená-lo a pagar, no prazo de 3 meses, um montante no valor não inferior a MOP$20.000,00 à R.A.E.M., como uma das condições da suspensão da execução da pena.
Nestes termos, deve-se julgar parcialmente procedente o recurso interposto pelo recorrente. Quanto às condições da suspensão da execução da pena, em convolação, deve-se condenar o recorrente a dirigir o pedido de desculpas por escrito à P.J., no prazo de 30 dias, e efectuar o pagamento do montante no valor de MOP$20.000,00, no prazo de 3 meses, destinado à reparação do dano provocado à R.A.E.M..
O Exmo Senhor Procurador Adjunto emitiu o seguinte douto parecer:
Acompanhamos as criteriosas explanações da nossa Exmª Colega.
E nada temos, de facto, a acrescentar-lhes.
O recorrente, ao invocar o erro notório na apreciação da prova, mais não faz, realmente, do que manifestar a sua discordância em relação ao julgamento da matéria de facto, afrontando o princípio da livre apreciação da prova estabelecido no art. 114º do C. P. Penal.
É incontroversa, por outro lado, a bondade da imposição da obrigação em questão.
Há que ter em conta, nesse âmbito a sua “função adjuvante da realização da finalidade da punição” (cfr., a propósito, Figueiredo Dias, Direito Penal Português – As Consequências Jurídicas do Crime, pg. 353).
Na esteira da resposta do MºPº, entretanto, cremos que o respectivo montante deve sofrer uma redução acompanhada do alargamento do prazo de pagamento.
Este o nosso parecer.
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se do acórdão recorrido o seguinte:
”(…)
Em 4 de Setembro de 2005, por volta das 20H00, B (1º arguido) conduzia motociclo, levando a sua esposa E para jantar no Estabelecimento de comida “Lam Kei Sio Hao” (林記燒烤店), sito na Rua XXXXX, bloco 8, R/C.
Naquela noite, por volta das 22H30, no momento em que o 1º arguido, a sua esposa e os seus amigos, com quem jantaram juntos (H, F e a sua esposa Leong In I (梁燕儀)), saíram do referido estabelecimento de comida, F foi quase atropelado por A (2º arguido) quando este conduzia o automóvel ligeiro de matrícula MC-XX-XX à saída do parque do estacionamento do Edf. XXXXX. Consequentemente, o 2º arguido saiu do carro e entrou em discussões com o 1º arguido, H e F.
Durante as discussões, o 1º arguido atendeu ao conselho do seu amigo e conduziu o motociclo, fugindo do local em causa com a sua esposa. Depois, H reparou que o seu carro estava a chegar, por ter sido trazido pelo trabalhador do referido estabelecimento de comida, pois entraram ele, F e a esposa no aludido carro.
O 2º arguido viu que as pessoas começaram a ir-se embora, por isso, resolveu usar o seu corpo como obstáculo para impedir a circulação do automóvel. Pelo que F saiu do carro e discutiu com o 2º arguido.
Posteriormente, o 1º arguido regressou ao local em causa por estar preocupado com a segurança dos seus amigos.
Quando o 1º arguido chegou ao local em causa, F e o 2º arguido ainda se encontravam em discussões. No momento em que o 1º arguido aproximou-se deles, foi repentinamente agredido a soco na parte direita da cara pelo 2º arguido, fazendo com que o mesmo caiu no chão. Como retorsão imediata, o 1º arguido agrediu em diversas partes do corpo do 2º arguido com socos e pontapés.
A agressão feita pelo 2º arguido ao 1º arguido causou, directa e necessariamente, ao segundo a contusão nos tecidos moles da testa e dos dois joelhos, ficando este com 3 dias de convalescença.
A agressão feita pelo 1º arguido ao 2º arguido causou, directa e necessariamente, ao segundo a contusão nos tecidos moles da testa, da cara, do dorso nasal, do tórax e das costas, ficando este com 5 dias de convalescença.
Em 5 de Setembro de 2005, por volta das 00H20 da madrugada, o 2º arguido dirigiu-se à Polícia Judiciária, onde se queixou que foi roubado pelo 1º arguido, H e F, com base nas agressões acima referidas.
Os dois arguidos agiram livre, voluntária, consciente e deliberadamente o acto supracitado, com o intuito de ofender o corpo do adversário.
Mesmo que soubesse que a imputação não era verdadeira, o 2º arguido ainda se queixou à Polícia da prática do crime de roubo pelo 1º arguido e por outros envolventes que tiveram conflitos com ele, com o intuito de vingá-los.
Os dois arguidos sabiam perfeitamente que a sua conduta era proibida e punida por lei.
Mais se provou:
Os dois arguidos são primários, conforme a Certidão do Registo Criminal.
*
Factos não provados: Nenhum.
*
Com base na confissão efectuada voluntariamente e sem reserva pelo arguido B), nas declarações prestadas pelo arguido A, nos depoimentos dados pelas testemunhas C, D, E, F e G, e nos documentos constantes dos autos, deram como provados os factos acima referidos.
(...)”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões, tal como suscitadas pelo recorrente:
- erro na apreciação da prova:
- análise da justeza da condição imposta à suspensão da execução da pena;
- montante do pagamento reparador à RAEM
2. 1. Antes, porém, no seio da análise feita pelo Colectivo de juízes que integra este Tribunal, surgiu uma questão que se configura como prévia à apreciação do presente caso e se prende com a utilização de um meio de prova não consentido, qual seja o da leitura de declarações do arguido prestadas perante a Polícia Judiciária, conforme fls 2 e 15 dos autos e como da acta de fls 273 consta.
2.2. Foi invocado o art. 338º, n.º 1, al. b) como justificativo de tal procedimento.
Dispõe tal preceito:
“1. A leitura de declarações anteriormente feitas pelo arguido só é permitida:
a) A sua própria solicitação e, neste caso, seja qual for a entidade perante a qual tiverem sido prestadas; ou
b) Quando, tendo sido feitas perante o juiz ou o Ministério Público, houver contradições ou discrepâncias sensíveis entre elas e as feitas em audiência que não possam ser esclarecidas de outro modo.
2. É correspondentemente aplicável o disposto nos n.os 7 e 8 do artigo anterior.”
E é do seguinte teor a prescrição deste últimos preceitos:
“(...)
7. Os órgãos de polícia criminal que tiverem recebido declarações cuja leitura não for permitida, bem como quaisquer pessoas que, a qualquer título, tiverem participado da sua recolha, não podem ser inquiridas como testemunhas sobre o conteúdo daquelas.
8. A permissão de uma leitura e a sua justificação legal ficam a constar da acta, sob pena de nulidade.”
2.3. No caso, face à negação do crime de denúncia caluniosa e a fim de se poder aferir se o arguido falava verdade e da linearidade ou não das suas declarações, ao dizer ter sido roubado, a leitura de tais declarações não terá deixado de assumir especial relevância.
Não é, pois, de desprezar a valia substancial que tal leitura terá representado para a formação da convicção do julgador.
O que se refere para efeitos de valorizar ou desvalorizar essa prova em termos de relevância com significado no conjunto de toda a restante fundamentação.1
2.4. Qual o valor ou o desvalor que essa leitura assume em termos processuais penais?
Diz a lei que, retirando a contrario, - o que é possível a partir do advérbio só -, que essa leitura não é permitida.
Mas não sendo permitida, qual o vício de que enferma a produção dessa prova?
A lei não o diz expressamente. Não estando o acto sujeito à previsão do art. 360º ou ao regime das nulidades dos artigos 105º a 110º do CPP, teremos de cair no regime das provas proibidas - art. 112º do CPP -, por não admissíveis.
O efeito útil desta inadmissibilidade terá de conduzir necessariamente à nulidade dessas provas. Assim o diz o Prof. Germano Marques da Silva, a prova proibida é nula.2
Isto independentemente do regime sui generis da nulidade das provas, como aquele autor assinala.3
Isto, independentemente de se considerarem apenas proibidas as provas como tal expressamente assim designadas, ou aquelas donde a proibição resulte do texto e contexto, como será o presente caso – a prova é proibida, mas não está como tal prevista nessa categoria..4
2.5. De qualquer modo, como acima visto, não se incluindo tal prova no elenco das leituras únicas permitidas, teremos de concluir pela sua proibição.
E isso é que importa relevar.
A nulidade ou o vício daí resultante, da produção de prova proibida ou não consentida será de conhecimento oficioso até decisão final.5
Donde, resultar daqui inquinado um julgamento com base nessas provas, julgamento esse que deve ser repetido.6
Donde, dever, em consequência, ser anulado o julgamento7, não sendo mais possível sanar aquilo que não é possível sanar, ou seja, formar uma convicção sem esse elemento probatório.
Face ao exposto o julgamento não deixará de ser anulado, sendo certo que a questão supra analisada prejudica o conhecimento das demais questões.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, conhecendo oficiosamente da questão relativa à prova que se configurou como relevante e como prova proibida, acordam em anular o julgamento.
Sem custas por não serem devidas.
Macau, 2 de Dezembro de 2010,
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira (Relator)
Tam Hio Wa (Primeira Juiz-Adjunta)
Lai Kin Hong (Segundo Juiz-Adjunto)
1 - Ac. STJ, proc. 4/00 -3ª sec., de 7/2/2001, SASTJ, n.º 48, 49
2 - Curso de Processo Penal, II, Verbo, 1999, 121
3 - Ob. cit. , 120 e 121
4 - Cfr. Leal-Henriques, Manual de Formação de DPP de Macau, 2006, 248
5 - Germano Marques da Silva, ob. cit., 121
6 - Ac RP, de 19/1/2000, proc. 9941268
7 - CPP, Comentários e Notas Práticas, Magistrados do MP, Distrito Judicial do Porto, 2009, 899
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494/2010 1/21