Processo n.º 507/2010
(Reclamação para a Conferência em sede de recurso contencioso)
Data : 4 de Novembro de 2010
Recorrente: A
Recorrido: Chefe do Executivo da RAEM
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
A, melhor identificada nos autos, nos autos à margem referenciados, em que é Recorrido S. Exa., o CHEFE DO EXECUTIVO DA R.A.E.M., tendo sido notificada do douto despacho de fls. 75 e v., que rejeitou liminarmente o presente recurso, por ser manifesta a irrecorribilidade contenciosa do referido acto recorrido, por não se tratar, em suma, de um acto praticado com exercício da autoridade pública a impor sobre a própria Recorrente.
com este não se conformando, vem, ao abrigo do disposto no n.º 2 do artigo 15.º do CPAC, deduzir reclamação para a Conferência,
alegando, no essencial:
O acto recorrido foi praticado por Sua Excelência o Chefe do Executivo ao abrigo do art. 50.° da Lei Básica, no exercício de poderes da direcção do Governo da RAEM e, portanto, no exercício de um poder público, investido pelo jus imperii, ou seja, no exercício de uma função pública e por causa desse exercício, numa posição de desigualdade com a recorrente e fora do quadro de uma actividade exclusivamente praticada sob a égide do direito privado.
A Lei Orgânica da Direcção dos Serviços de Saúde, aprovada pelo Decreto-Lei n.º 81/99/M, de 15 de Novembro, autoriza, na verdade, no seu art. 48.°, «a contratação de pessoal de enfermagem, em Macau ou no exterior, em regime de contrato individual de trabalho» (n.º 3), «fazendo aplicar ao contrato o regime jurídico geral dos trabalhadores da Administração Pública» (n.º 2), sendo que se trata de uma direcção de serviços «sujeita à tutela do Chefe do Executivo», como decorre do seu art. 2º, n.º 1.
Do que decorre que o contrato individual de trabalho celebrado à luz de tal condicionamento normativo não tem a natureza de um contrato individual de trabalho propriamente dito, regulado na Lei das Relações de Trabalho, a Lei n.º 7/2008, de 12 de Agosto, cujo art. 3.°, n.º 2, alínea 1), estabelece que «o disposto na lei não é aplicável às relações jurídicas de emprego púbico que confiram a qualidade de trabalhador da Administração Pública».
Independentemente da forma de provimento, os enfermeiros providos por contrato individual de trabalho, que é o caso da recorrente, justamente porque lhes é aplicável o regime dos trabalhadores da Administração Pública de Macau, estão inseridos numa carreira, a carreira pública de enfermagem (cfr. o cap. III da Lei 18/2009, de 4 de Agosto de 2009), estão sujeitos às regras gerais do regime jurídico da função pública também no que se refere à acumulação de funções e incompatibilidades (art. 25.°, n.º 1), sendo-lhes vedado o exercício de actividades privadas em regime de profissão liberal (art. 25.°, n.º 2), o que é claramente demonstrativo que, mau grado a forma de provimento (que é, afinal, aquilo que menos importa) exercem uma actividade pública sujeita às regras de direito público.
E tanto é assim que o Despacho do Chefe do Executivo n.º 6/2009, de 9 de Janeiro de 2009, determinou que aos trabalhadores dos serviços e entidades públicas providos em regime de contrato individual de trabalho é aplicável o disposto na Lei n.º 7/2008 (Lei das Relações de Trabalho) naquilo que lhes fôr mais favorável, o que é demonstrativo de que uma enfermeira contratada em regime de contrato individual de trabalho por um hospital público, como é o caso da recorrente, tem um estatuto jurídico laboral misto, com prevalências das regras que regem os trabalhadores da Administração Pública.
Do que decorre que o acto homologatório de Sua Excelência o Chefe do Executivo do averbamento do contrato de trabalho da recorrente é um acto que se inscreve numa competência própria, de natureza pública (um acto de gestão pública), sendo, consequentemente recorrível contenciosamente para os tribunais, face à prevalência hodierna do critério o enquadramento institucional na distinção entre actos de gestão privada e os de gestão pública, impondo a qualificação jurídica do contrato de trabalho da recorrente com a Administração Pública como um contrato especial, sendo decisivo para a conformação do seu estatuto laboral/profissional a natureza pública do regime jurídico que lhe é aplicável, marcadamente público e apenas subsidiariamente privado, como resulta da aplicação suplectiva da lei das Relações de Trabalho apenas e quando em concreto seja mais favorável do que a regulamentação pública prevalecente e decorre do citado Despacho do Chefe do Executivo n.º 6/2009, de 9 de Janeiro de 2009.
A reforçar, ainda, a posição que se sustenta perante Vossas Excelências, também o Regulamento Administrativo n.º 31/2004, de 18 de Agosto de 2004, que o «Regime Geral de Avaliação do Desempenho dos Trabalhadores da Administração Pública», cujos princípios gerais foram estabelecidos pela Lei n.° 8/2004, de 5 de Agosto de 2004, preceitua, no seu art. 1°, alínea a) que «o presente regulamento administrativo estabelece as normas complementares respeitantes ao regime geral de avaliação do dsempenho dos Trabalhadores da Administração Pública, neles abrangendo os contratados em regime de direito privado».
De resto, nos termos da cláusula 14.ª do contrato individual de trabalho da recorrente com o Governo da Região Administrativa Especial de Macau representado pelo Senhor Director dos Serviços de Saúde, sobre o qual agora incidiu o presente averbamento contratual «Nos casos omissos, o presente contrato rege-se pelas regras gerais vigentes para os trabalhadores da Administração Pública de Macau», o que consubstancia fuma remissão para o Estatuto dos Trabalhadores da Administração Pública de Macau aprovado pelo Decreto-Lei n.º 87/89/M, de 21 de Dezembro.
Tendo acontecido, por duas vezes, que os tribunais administrativos conheceram de recursos interpostos pela ora recorrente de despachos homologatórios da sua classificação de serviço (processos n.ºs 491/2008 e 570/08 do Tribunal Administrativo de Macau) nos exactos termos em que conhecem dos recursos do pessoal de enfermagem provido por nomeação ou contrato além do quadro.
Também a jurisprudência do TSI em matéria de responsabilidade civil - tem considerado como actos de gestão pública os actos praticados pelo pessoal de enfermagem do hospital público (cfr. Ac. no processo n.º 23/2003), irrelevando a forma de provimento respectiva.
Deve, em conformidade, conclui, ser proferido acórdão que, revogando o despacho de rejeição do Meritíssimo Relator, admita o recurso da recorrente, ordenando-se a citação da entidade recorrida nos termos , requeridos na respectiva petição.
A entidade recorrida não se pronunciou.
O Digno Magistrado do MP emite o seguinte douto parecer:
Encontra-se em escrutínio acto do Chefe do Executivo de 27/4/10 que, tendo autorizado a revisão do contrato de trabalho da recorrente, enquanto enfermeira dos SSM, relativamente a cláusulas atinentes à categoria, escalão e vencimentos decorrentes do novo regime da carreira de enfermagem, aprovado pela Lei 18/2009, determinou a actualização salarial com efeitos retroactivos apenas a partir de 18/8/09 e não a contar de 1/7/07, conforme pretendido pela recorrente, mostrando-se esta inconformada e reclamando para a conferência do despacho do Mmo Juíz relator que rejeitou liminarmente recurso desse acto ''por ser manifesta a irrecorribilidade do acto ... por o mesmo não ser um acto administrativo do direito público com exercício da autoridade pública, a impor sobre um interessado particular".
Cremos assistir-lhe razão.
Atentando:
- O art. 48° da Lei Orgânica da DSS aprovada pelo Dec Lei 81/99/M de 5/11, permitindo a contratação de pessoal de enfermagem, em Macau ou no exterior, em regime de contrato individual de trabalho, manda aplicar ao pessoal dos SSM o regime jurídico geral dos trabalhadores da Administração Pública;
- A contratação de tal pessoal compete ao director dos SSM (art. 8°, n.º 2), mas sempre sob a tutela do Chefe do Executivo (art. 2°, n.º 1) ;
- O art. 3°, n.° 2, al. 1) da Lei 7/2008 de 12/8 (Lei da Relações de Trabalho) dispõe não ser o consignado em tal diploma aplicável às relações de emprego público que confiram a qualidade de trabalhador da Administração Pública;
- O n.° 1 do Despacho do Chefe do Executivo 6/2009 de 9/1 determina que aos trabalhadores de serviços e entidades públicas providos em regime de contrato individual de trabalho é aplicável a Lei de Relações de Trabalho naquilo que lhes for mais favorável;
- O Regulamento Administrativo 31/2004 de 18/8/04 estabelece as normas complementares. .respeitantes ao regime geral de desempenho dos trabalhadores da Administração Pública, neles incluindo os "contratados em regime de direito privado" (art. 1°, n.° 2, não se encontrando o caso da recorrente abrangido por qualquer das excepções consignadas) ;
- Nos termos da cláusula 14ª do contrato individual de trabalho do recorrente, "Nos casos omissos, o presente contrato rege-se pelas regras gerais vigentes para os trabalhadores da Administração Pública de Macau".
Do exposto cremos poder concluir-se que os enfermeiros dos SSM providos por contrato individual de trabalho, como o caso da recorrente, se encontram sujeitos a uma espécie de "regime misto" com sujeição a regras gerais do regime da função pública, designadamente no que respeita às incompatibilidades e avaliações de desempenho, sendo que a autorização em crise, do Chefe do Executivo, no exercício de poderes de direcção do Governo da RAEM e de tutela sobre os SSM, no exercício da função pública e por causa desse exercício, investido, pois, de ''jus imperii" (que o director dos SSM, na declaração negocial subsequente se limita a executar), determina uma relação de prevalência com o recorrente, não podendo a mesma ser vista exclusivamente à luz de actividade puramente do domínio do direito privado, antes se apresentando o despacho em crise como autêntica decisão de órgão da Administração que, ao abrigo de normas de direito público, produziu efeitos jurídicos na situação individual e concreta do recorrente, tratando-se, pois, de acto administrativo contenciosamente impugnável, independentemente de, para tal efeito, para isso apontar a notificação efectuada ao recorrente, circunstância que, por si, para o caso, se mostraria irrelevante.
Neste contexto, merece, pois, em nosso critério, atendimento a presente reclamação.
Foram colhidos os vistos legais.
II - É do seguinte teor o douto despacho recorrido, na parte pertinente:
“(...)
Ora, tratando-se de um acto de autorização material da averbamento a um contrato individual de trabalho, este não é um acto administrativo em sentido próprio, i.e. que encerra por si o exercício do “jus imperium”, mas sim uma declaração negocial em vista de uma relação contratual de trabalho, em que caso a a ora interessada não aceitasse as condições laborais a resultar de tal averbamento, poderia sempre sair livremente dessa relação contratual, e sempre em pé de igualdade com a sua entidade patronal e, da mesma maneira correspectiva, a entidade patronal (i.e., a Administração da RAEM) também poderia não aceitar as condições exigidas pela sua trabalhadora, sendo certo que não se pode esquecer de que no caso está em causa uma relação de direito privado e não de direito público, embora o empregador seja um ente público. Pelo exposto, rejeito liminarmente o presente contencioso, por ser manifesta a irrecorribilidade do acto atrás identificado, por o mesmo não ser um acto administrativo do direito público com exercício da autoridade pública a impor sobre um interessado particular (...)”
III - FUNDAMENTOS
1. A questão que se coloca é a de saber se o Tribunal competente para dirimir o presente conflito é o Tribunal Administrativo, neste caso sendo a competência diferida a este Tribunal de Segunda Instância, visto o autor do acto impugnado ou se, como doutamente entendeu o primitivo Mmo Juiz Relator, por se tratar de um acto tradutor de uma vontade negocial ainda recondutível a uma relação emanada de uma relação de direito privado, consubstanciada num contrato individual de trabalho, a acção devia ser interposta na Jurisdição comum, no caso, no Tribunal Judicial de Base.
Por outras palavras, se nos encontramos perante um acto administrativo praticado pelo Exmo Senhor Chefe do Executivo ou em matéria administrativa, casos em que é este Tribunal de Segunda Instância o competente, como determina o art. 36º, n.º 8, al. 1 da Lei 9/1999, de 20 de Dez.
2. A questão não se afigura pacífica e tem sido objecto de inúmeras decisões na Jurisprudência Comparada, assistindo-se hoje em dia, cada vez mais, como que a uma privatização da Administração Pública, entendendo-se que a regulação de Direito Privado pode dar resposta cabal às necessidades que se fazem sentir no que tange à regulação da actividade e situação jurídico funcional dos diferentes agentes que prestam serviço na Administração Pública e até, numa fuga para o Direito Privado, que o Direito Contratual Comum contém as virtualidades bastantes para enformar e iluminar cada vez mais o contrato administrativo (c.a.).1
Mas é o Prof. Freitas do Amaral, entre outros, que aplaca a fogosidade deste este voo doutrinário, dizendo não concordar com esta posição, realçando as diferenças entre o recorte do c.a. e o de direito privado e evoluindo até na concepção do c.a., diferenciando entre os casos em que este associa o particular ao desempenho de atribuições administrativas (como dizia o Prof. Marcello Caetano), ou outras em que o c.a. associa a Administração ao desempenho de actividades privadas.2
Isto, para concluir que um contrato é administrativo se o respectivo objecto respeitar ao conteúdo da função administrativa e se traduzir em regra em prestações referentes ao funcionamento dos serviços públicos, ao exercício de actividades públicas, à gestão da coisa pública, ao provimento de agentes públicos ou à utilização de fundos públicos. Em alternativa, se o objecto não for nenhum destes, o contrato só será administrativo se visar um fim de utilidade pública.3
O que se reconduz, no fundo, à identificação da natureza da relação jurídica administrativa que existirá quando um dos sujeitos, pelo menos, actue na veste de autoridade pública, munido de jus imperium, numa relação especial de poder, abstraindo das diferenças de objectos e intensidade dessas diferenças, conforme se trate de relações da Administração com os seus funcionários, com os militares, com os presos, com os internados ou admitidos numa instituição, com os utentes dos serviços públicos.4
A dilucidação da questão agrava-se na medida em que é cada vez mais frequente a existência, não só de relações administrativas dissimétricas, pelo recurso ao contrato ou a outras formas de acordo entre a Administração e os particulares, como de relações poligonais, em que muitas vezes os particulares, e também as entidades administrativas, aparecem com posições conflituantes entre si, interessados em actuações diferentes (ou até contrárias) da Administração.5
3. Aqui chegados, se nada disto se mostra decisivo ainda, para enquadrar a situação, tanto assim que o Mmo Juiz nada descortinou de atributivo de qualquer especial relação que não se pudesse reconduzir a uma relação de direito privado, importa avançar e esmiuçar a pretensão da interessada.
Analisemos então os contornos da situação em concreto.
A recorrente requereu aos respectivos serviços, oportunamente 2009, em razão do novo regime da carreira de enfermagem, aprovado pela Lei n.º 18/2009, a respectiva actualização salarial, pugnando ainda pela retroactividade a 1 de Julho de 2010.
Despoletado o respectivo procedimento administrativo e apreciadas ambas as questões - i.e., revisão do contrato e efeitos retroactivos - pela Divisão de Pessoal dos SSM, veio esta pugnar pela não aplicação do novo regime da carreira de enfermagem à recorrente, alegando que esta fora contratada ao exterior, propondo, todavia, que se efectuasse a actualização salarial, «por averbamento ao contrato com referência à nova carreira de enfermagem e respectivos requisitos, tendo em consideração a necessidade de serviço e o princípio "Salário igual para trabalho igual"»,embora com efeitos retroactivos «à data da entrada em vigor desta Lei, ou seja, 18 de Agosto de 2009 (…)».
Sujeita a proposta a sucessiva consideração superior, veio Sua Excelência, o Chefe do Executivo, manifestar a sua concordância, através de despacho exarado em 22 de Fevereiro de 2010, na sequência do qual foi a recorrente notificada de que «desta decisão cabe recurso contencioso para o Tribunal de Segunda Instância»
4. Por outro lado, mostra-se pertinente actualizar o enquadramento jurídico-funcional em presença, lembrando que:
- O art° 48° da Lei Orgânica da DSS aprovada pelo Dec Lei 81/99/M de 5/11, permitindo a contratação de pessoal de enfermagem, em Macau ou no exterior, em regime de contrato individual de trabalho, manda aplicar ao pessoal dos SSM o regime jurídico geral dos trabalhadores da Administração Pública;
- A contratação de tal pessoal compete ao Director dos SSM (art. 8°, n.º 2), mas sempre sob a tutela do Chefe do Executivo (art. 2°, n.º 1) ;
- O art. 3°, n.º 2, al. 1) da Lei 7/2008 de 12/8 (Lei da Relações de Trabalho) dispõe não ser o consignado em tal diploma aplicável às relações de emprego público que confiram a qualidade de trabalhador da Administração Pública;
- O n.º 1 do Despacho do Chefe do Executivo 6/2009 de 9/1 determina que aos trabalhadores de serviços e entidades públicas providos em regime de contrato individual de trabalho é aplicável a Lei de Relações de Trabalho naquilo que lhes for mais favorável;
- O Regulamento Administrativo 31/2004 de 18/8/04 estabelece as normas complementares respeitantes ao regime geral de desempenho dos trabalhadores da Administração Pública, neles incluindo os "contratados em regime de direito privado"(art. 1º, n.º 2, não se encontrando o caso do recorrente abrangido por qualquer das excepções consignadas).
5. Perante este quadro, os laivos da relação pública administrativa assumem-se agora muito mais evidentes, não se podendo confundir a questão substantiva, eventualmente a ser dirimida por remissão para o contrato individual de trabalho, como mui sagazmente, desde já se avançou na decisão ora reclamada, com o pressuposto relativo à competência.
Tais laivos resultam, por, desde logo, estar em causa a anulação de um acto do Exmo Senhor Chefe do Executivo, não se podendo dizer que esse acto foi um acto de gestão privada. Por esse acto ter sido praticado sobre um pedido que pressupunha uma relação especial de serviço público, vista a actividade de enfermagem desenvolvida. Pela natureza e vestes dos sujeitos dessa relação concreta. Pelo regime subsidiariamente aplicável.
Tanto assim que o pedido não se baseou no contrato individual de trabalho, antes sim numa pretensão de aplicação de regras perspectivadas para outros servidores relativamente à carreira de enfermagem, sendo invocados princípios gerais do Direito Administrativo.
Delimitada deste modo a pretensão da recorrente, forçoso é reconhecer que a competência para dirimir esse litígio pertence à jurisdição administrativa e fiscal, concretamente a este Tribunal.
6. Fazemos, pois, eco do entendimento lavrado pelo Digno Magistrado do MP, enquanto diz que
“os enfermeiros dos SSM providos por contrato individual de trabalho, como o caso da recorrente, se encontram sujeitos a uma espécie de "regime misto" com sujeição a regras gerais do regime da função pública, designadamente no que respeita às incompatibilidades e avaliações de desempenho, sendo que a autorização em crise, do Chefe do Executivo, no exercício de poderes de direcção do Governo da RAEM e de tutela sobre os SSM, no exercício da função pública e por causa desse exercício, investido, pois, de ''jus imperii" (que o director dos SSM, na declaração negocial subsequente se limita a executar), determina uma relação de prevalência com a recorrente, não podendo a mesma ser vista exclusivamente à luz de actividade puramente do domínio do direito privado, antes se apresentando o despacho em crise como autêntica decisão de órgão da Administração que, ao abrigo de normas de direito público, produziu efeitos jurídicos na situação individual e concreta da recorrente, tratando-se, pois, de acto administrativo contenciosamente impugnável, independentemente de, para tal efeito, para isso apontar a notificação efectuada à recorrente, circunstância que, por si, para o caso, se mostraria irrelevante.”
7. A presente situação pode bem ser compreendida à luz da reflexão do Prof. Vieira de Andrade, mutatis mutandis, válida para o nosso ordenamento, enquanto diz que a Administração também recorre, nas empresas públicas de direito público (EPEs), ao contrato individual de trabalho (contrato privado), que é diferente do contrato de trabalho em funções públicas (contrato administrativo).
A figura do “contrato de trabalho em funções públicas”, em vez da nomeação de funcionários, constitui hoje a regra das relações laborais públicas, fora das funções nucleares do Estado, não apenas na administração indirecta (nos institutos públicos não empresariais), mas na própria Administração directa, central e local – trata-se de um contrato administrativo, embora decorra do contrato individual de trabalho transformado.6
Ora, no nosso caso, a especificidade da relação assume ainda contornos mais marcantes, porquanto para além de estamos perante Administração directa, deparamos ainda com o desempenho de uma função nuclear da administração, qual seja a de garantir a eficácia do serviço público de saúde.
8. Há ainda um outro critério que pode ser encarado e não se afigura despiciendo.
Será de relevar em última análise o critério estabelecido em função dos termos em que a acção é proposta. Assim, tem-se jurisprudencial e comparativamente entendido que, se o recorrente solicita pronúncia sobre a legalidade de um determinado acto que entende ser um acto administrativo, os tribunais administrativos são competentes para apreciar a sua pretensão, mesmo que seja de entender que será de rejeitar o recurso, por falta de um pressuposto relativo ao objecto do processo, como seja a existência de um acto administrativo.7
Por todo o exposto somos a considerar que é aos Tribunais Administrativos que caberá dirimir a presente questão.
Como está bem de ver, não será aqui e agora que caberá a este Colectivo ordenar a citação da entidade recorrida.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento à presente reclamação, e, em consequência, revogam o mui douto despacho recorrido, devendo os autos prosseguir seus termos, se outras razões de ordem adjectiva não impedirem o seu prosseguimento.
Sem custas por não serem devidas.
Macau, 4 de Novembro de 2010
Presente João A. G. Gil de Oliveira
Vitor Coelho Tam Hio Wa
Chan Kuong Seng (com declaração
de voto vencido)
Declaração de voto vencido apendiculada ao
Acórdão de 4 de Novembro de 2010 do
Processo n.º 507/2010
Como relator do processo acima identificado, fiquei vencido, nos termos a seguir expostos, na decisão tomada no douto Acórdão definitivo que antecede, proferido a propósito da reclamação para a conferência do meu despacho liminar de rejeição do recurso contencioso:
1. Veio a Senhora A, enfermeira dos Serviços de Saúde de Macau contratada em regime de contrato individual de trabalho, interpor recurso contencioso de anulação do despacho de 27 de Abril de 2010 do Senhor Chefe do Executivo da Região Administrativa Especial de Macau na parte em que materialmente lhe tinha excluído da “retroactividade decorrente dos novos índices introduzidos desde 1 de Julho de 2007” mas apenas a tinha concedido a partir de 18 de Agosto de 2009 (data da entrada em vigor do novo Regime da carreira de enfermagem) (cfr. o teor da petição do recurso, a fls. 2 a 20 dos presentes autos correspondentes).
Por despacho liminar (a fls. 75 a 75v dos autos), foi decidido rejeitar liminarmente este recurso contencioso, por ser manifesta a irrecorribilidade contenciosa do referido acto do Senhor Chefe do Executivo, por não se tratar, em suma, de um acto praticado com exercício da autoridade pública a impor sobre a própria Recorrente.
Notificada, deduziu a Recorrente (a fls. 78 a 82 dos autos) a reclamação desse despacho para a conferência, para pedir, mediante a invocação da sua tese de recorribilidade contenciosa do acto sob impugnação na petição do recurso, que fosse emitido acórdão por este Tribunal Colectivo no sentido de revogar a decisão liminar do relator, com vista à determinação da citação da Entidade Recorrida para, querendo, contestar o recurso contencioso.
2. Ora, depois de examinados os elementos constantes dos autos, e para efeitos de decisão da única questão em causa na presente sede de reclamação, qual seja, a de saber se o acto acima identificado do Senhor Chefe do Executivo é ou não recorrível para este Tribunal de Segunda Instância na veste de tribunal com jurisdição administrativa, afigura-se-me que:
– se bem que o art.o 40.o, n.o 2, da Lei n.o 18/2009, de 17 de Agosto (estabelecedora do Regime da carreira de enfermagem) reze que “As valorizações indiciárias decorrentes das transições a que se refere o n.o 1 do artigo 34.o e das alterações a que se refere o n.o 1 do artigo 35.o retroagem a 1 de Julho de 2007 [...]”, esta norma, tal como ela própria prevê, só se destina às “transições a que se refere o n.o 1 do artigo 34.o” e às “alterações a que se refere o n.o 1 do artigo 35.o” da própria Lei, ou seja, só se destina às transições dos enfermeiros do quadro a que aludem os n.os 1 a 3 do art.o 31.o e às alterações extensíveis aos enfermeiros contratados além do quadro e assalariados a que alude o n.o 1 do art.o 35.o, e, por isso, nunca se destina aos enfermeiros que se encontrem a exercer as suas funções sob o regime de contrato individual de trabalho, já que para estes enfermeiros não pertencentes ao quadro nem contratados além do quadro nem assalariados, o respectivo contrato individual de trabalho ainda em vigor e celebrado antes do início de vigência dessa Lei em 18 de Agosto de 2009, continua sujeito à disciplina emergente do próprio contrato, sem prejuízo de as Partes contratantes, por sua iniciativa e mútuo acordo, poderem optar por celebrar um novo contrato individual de trabalho regido pela mesma Lei (cfr. o expressamente estatuído nos n.os 1 e 2, do art.o 36.o e no n.o 1 do art.o 40.o dessa Lei);
– assim sendo, a supra identificada decisão do Senhor Chefe do Executivo não pode ser considerada como um acto administrativo em sentido próprio e contenciosamente impugnável, porquanto não foi tomada em gestão pública com exercício da autoridade pública, mas sim emitida como uma declaração negocial em vista de uma relação contratual individual de trabalho já existente, em que quer a Parte ora Recorrente quer o Senhor Chefe do Executivo não podem fazer impor unilateralmente o seu ponto de vista sobre o clausulado do correspondente contrato, por estarem as Partes contratantes em pé de igualdade a nível de formação e formulação do contrato (daí que, aliás, não é por acaso que o atrás referido n.o 2 do art.o 36.o da Lei n.o 18/2009 salienta nomeadamente o mútuo acordo na questão de celebração de um novo contrato individual de trabalho).
Seria, portanto, de validar a decisão liminar de rejeição do presente recurso contencioso, então tomada nos termos dos art.o 46.o, n.o 2, alínea c), e art.o 15.o, n.o 1, alínea a), do Código de Processo Administrativo Contencioso, por ser realmente manifesta a irrecorribilidade contenciosa do acto acima identificado do Senhor Chefe do Executivo, por não se tratar, em suma, e atenta a decisão materialmente tomada no próprio acto em causa, de um acto praticado em gestão pública com exercício da autoridade sobre a Recorrente, mas sim tão-só de uma manifestação de vontade negocial de recusa da revisão salarial com efeitos retroactivos, não se podendo, pois, considerar essa decisão de recusa como uma determinação que tenha imposto autoridade pública sobre a própria pessoa da Recorrente.
Finalmente, sobre a questão jurídica congénere, e em sentido convergente, veja-se a doutrina vertida pelo Supremo Tribunal Administrativo de Portugal, no Acórdão de 5 de Dezembro de 2006, no Processo n.o 08/06 (in http://www.dgsi.pt/jsta.nsf/...).
3. Dest’arte, deveria ser indeferida a reclamação, com confirmação da decisão já tomada no despacho liminar, de rejeição liminar do recurso contencioso.
Macau, 4 de Novembro de 2010.
O juiz,
Chan Kuong Seng
1 - Maria João Estorninho, a Fuga para o Direito Privado, 167 e Requiem pelo Contrato Administrativo, Almedina, 2003
2 - Freitas do Amaral, Curso de Dir Adm, II, Almedina, 202, 516
3 - Freitas do Amaral, ob. cit. 519, sendo certo que outros autores escolhem outros critérios destrinçadores, como seja o estatutário (Sérvulo Correia)
4 - Vieira de Andrade, Justiça Administrativa, Almedina, 2002, 77, 78 e 79
5 - Vieira de Andrade, Introdução ao Dto Administrativo, Lições, Sumários, Coimbra, 2009-2010 (c/ publicação na net)
6 - Int ao Dto Adm, ob. cit, 2009/2010
7 - Ac. STA, proc. 780/07, de 16/1/2008 e 06/05, de 26/4/2006, http://www.dgsi.pt
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507/2010 1/22