打印全文
Processo nº 723/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão do Colectivo do T.J.B. decidiu-se:
– condenar o arguido A, pela prática, em autoria material e na forma consumada, de um crime de “ofensas graves à integridade física por negligência grave” (de acordo com o art. 142°, n° 3, art. 138°, al. c) do Código Penal, e o art. 66°, n° 1, nº 2, nº 3, al. a) e art. 73º, n° 1, al. a) do Código da Estrada), na pena de 2 anos de prisão, suspendendo-se a execução de tal pena pelo período de 2 anos, e na pena acessória de suspensão da validade da licença de condução pelo período de 9 meses; (cfr., fls. 441 a 442).

*

— Quanto ao pedido civil enxertado nos autos, decidiu-se condenar a “COMPANHIA DE SEGUROS B” a pagar à ofendida C uma indemnização no valor de MOP$140.565,48, com juros legais contados da data do trânsito em julgado decidido.

*

Inconformada a demandada seguradora recorreu, alegando e concluindo nos termos seguintes:
“1. Do documento constante de fls. 17 dos autos resulta: a declaração de “a não efectivação da responsabilidade criminal ou jurídica de A” foi feita pela lesada em 27 de Janeiro de 2006, altura em que a mesma era plenamente capaz para manifestar esta vontade de não efectivação, pelo que tal declaração deve produzir todos os devidos efeitos jurídicos.
2. Em 28 de Março de 2006, na sua prestação do depoimento ao CPSP, a lesada “pediu de novo a efectivação da responsabilidade penal de A emergente das lesões causadas a ela” (vide fls. 33 e v dos autos), no entanto, nos termos do art.º 108.º, n.º 1 do Código Penal, o direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado.
3. Nos termos do art.º 37.º conjugado com art.º 38.º do Código de Processo Penal, a lesada (o titular do direito de queixa) expressamente renunciou ao direito de queixa, e o Ministério Público não tem legitimidade para instaurar o processo penal contra o arguido, pelo que não se pode proceder o tal processo.
4. O acórdão recorrido não tomou posição nem procedeu ao tratamento em relação à esta questão. Tal acórdão viola assim o art.º 349.º,n.º 1 do Código de Processo Penal, padecendo do vício de nulidade, que não é considerado sanado.
5. O pedido da indemnização civil da lesada foi apresentado à recorrente em anexo deste processo penal. Pelo que, se este processo penal seja nulo, não podia admitir o Tribunal o pedido da indemnização civil da ofendia.
6. A lesada comprometeu-se expressamente em 25 de Janeiro de 2006 a responsabilizar-se por todos os danos sofridos neste acidente de viação, compromisso esse com efeito equivalente à renúncia ao direito de indemnização por tais danos.
7. Vem agora a lesada pedir à recorrente a indemnização por todos os danos emergentes deste acidente depois de já lhe ter renunciado, acto este nulo por violar manifestamente o princípio de boa fé previsto no art.º 326.º do Código Civil.
8. No entanto, o acórdão recorrido não tomou posição nem procedeu ao tratamento em relação à esta questão. Tal acórdão viola assim o art.º 326.º do Código Civil e o art.º 571.º, al. d) do Código de Processo Civil, padecendo do vício de nulidade.
9. Dos “factos provados” no acórdão recorrido resulta: “quando o automóvel passou pelo Terminal Marítimo do Porto Exterior e mudou de direcção, outro automóvel ligeiro ultrapassou subitamente o do arguido pela sua direita, altura em que o arguido girou imediatamente o volante para evitar o choque, no entanto, por o arguido não controlar adequadamente a velocidade do veículo durante a mudança de direcção, este passou a ser descontrolado e embateu com enorme força no candeeiro n.º 181C03 que ficou na esquerda, fazendo com que a lesada C entrasse em coma e sofresse lesões (vide fls. 33 e 35).”
10. Não fls. 33 nem fls. 35 acima referidos pode mostrar nenhum teor relacionado com “fazendo com que a lesada C entrasse em coma e sofresse lesões”. Além disso, dada a leitura de tais depoimentos não foi efectuada na audiência, estes não valem para o efeito de formação da convicção do tribunal ao abrigo do art.º 336.º do Código de Processo Penal.
11. Não há nos autos nenhum documento ou prova que mostrou factos relacionados com o referido “fazendo com que a ofendida C entrasse em coma e sofresse lesões”.
12. O Tribunal a quo tem erro notório na apreciação da prova, nomeadamente no reconhecimento dos factos relacionados com a situação da lesada na ocorrência do acidente. O acórdão recorrido padece do vício de nulidade por violar o art.º 400.º, n.º 2, al. c) e art.º 336.º do Código de Processo Penal.

Caso não acompanhem, a recorrente mais apresenta, com base na prudência no processo, a motivação seguinte:
13. O acórdão recorrido foi proferido sem considerar que neste acidente, a responsabilidade da indemnização da recorrente funda-se na culpa. A recorrente entende que a indemnização não foi reconhecida equitativamente pelo Tribunal a quo, o qual viola o disposto no art.º 487.º do Código Civil.
14. Mesmo que a lesada sofresse dores por causa deste acidente de viação, encontrava-se interna por apenas 3 dias. A recorrente entende que a indemnização pelo dano não patrimonial fixada pelo Tribunal a quo no valor de MOP$130.000,00 é excessivamente elevada, a qual viola a equidade prevista no art.º 560.º do Código Civil.
15. A recorrente entende excessivamente elevado o valor da indemnização fixado pelo acórdão recorrido, principalmente por este não teve em conta a aplicação da equidade. Por isso, tal valor deve ser reduzido.
16. Face ao exposto, o acórdão recorrido viola, no reconhecimento do valor da indemnização civil, a equidade prevista no art.º 487.º e art.º 560.º do Código Civil, pelo que, se o tribunal superior entenda que não é revogado tal acórdão (mera hipótese, não é que a recorrente concorda com isso), violaria o disposto no Código Civil o valor da indemnização fixado pelo mesmo acórdão, peço então o tribunal superior reduza tal valor.”; (cfr., fls. 457 a 460).

*

Respondendo, assim conclui a demandante:
“1- Vem o presente recurso interposto pela Demandada, ora Recorrente, do Acórdão proferido em 12 de Maio de 2010, limitado, porém, à matéria cível;
2- Ao contrário do defendido pela Demandada, ora Recorrente - o douto Acórdão ora recorrida é uma decisão acertada e fez uma correcta e inatacável aplicação do Direito à matéria de facto que resultou provada, razão pela qual o recurso sub judice está fatalmente condenado ao insucesso;
3- As duas questões principais suscitadas pela Demandada, ora Recorrente, na sua motivação de recurso, são totalmente extemporâneas;
4- Tais questões deveriam ter sido suscitadas pela Demandada na sua contestação ao pedido de indemnização cível. O que não sucedeu;
5- Não tendo essas questões sido oportunamente suscitadas pela Demandada, não poderia o Acórdão ora recorrido proferir qualquer decisão sobre as mesmas;
6- Atento o supra exposto não se verifica qualquer violação do disposto no artigo 349.°, n.° 1 do CPC;
7- Caso assim não se entenda - o que não se concede e apenas se admite por mera cautela e dever de patrocínio - sempre se dirá que, as declarações prestadas no CPSP pela Demandante, ora Recorrida, respectivamente, em 25 e 27 não têm a relevância jurídica pretendida pela Demandada, ora Recorrente.
8- Pois, como a própria explicou, quer no dia 27 e, por maioria de razão, também no dia 25 de Janeiro de 2006 (data do acidente) ainda estava um pouco atordoada;
9- Com efeito, a Lesada ainda estava sob um clima emocional intenso, possivelmente, em estado de choque, além de que, como facilmente se compreenderá, em 25 de Janeiro de 2006, ainda não tinha uma percepção concreta da gravidade dos danos que sofreu em consequência do acidente objecto dos presentes autos;
10- Acresce que, a Demandante não foi advertida das possíveis consequências legais de tais declarações;
11- Os factos denunciados eram susceptíveis de integrar a eventual prática de crime de ofensa à integridade física por negligência p.p. pelo artigo 142.°, n.° 3 do CP e pelo artigo 138.°, alínea c) do CP, o qual depende de queixa;
12- Porém o exercício do direito de queixa não está sujeito a qualquer formalidade, apenas sendo essencial a revelação inequívoca da vontade do queixoso de que contra o agente do crime seja instaurado procedimento criminal;
13- Resulta dos autos que a Demandante, ora Recorrida, exerceu tempestivamente o seu direito de queixa - em 28 de Março de 2006;
14- Por sua vez, não só tinha legitimidade como deduziu oportunamente pedido de indemnização cível;
15- Por todo o exposto, deverá ser julgado improcedente o recurso da Demandada, ora Recorrente com fundamento na alegada violação do disposto nos artigos 349.°, n.° 1 do CPP, 326.° do CC e 571.°, alínea d) do CPC;
16- A Demandada, ora Recorrente, entende ainda que o Acórdão recorrido enferma do vício do erro notório na apreciação da prova, a que alude a alínea c) do n.° 2 do artigo 400.° e 336.° do CPP, o que, na sua opinião motivou uma errada aplicação do direito;
17- Ora, o erro notório na apreciação da prova só existe quando a convicção do julgador (fora dos casos de prova vinculada) for inadmissível, contrária às regras elementares da lógica ou da experiência comum;
18- Deve assim, tratar-se de um erro manifesto, isto é, facilmente demonstrável, dada a sua evidência perante o texto da decisão recorrida, por si só ou conjugada com as regras da experiência comum;
19- Ora, na fundamentação da convicção do Tribunal a quo não encontramos erro algum, muito menos patente ou manifesto e claramente saliente;
20- No modesto entendimento da ora Recorrida, aquilo que a Recorrente apelida de erro notório na apreciação da prova não passa de uma discordância da sua interpretação em relação ao julgamento da matéria de facto, afrontando o princípio da livre apreciação da prova consagrado no artigo 114.° do CPP;
21- Ora, o facto de o Tribunal a quo não ter aceite a versão proferida pela ora Recorrente não pode ser considerado como erro notório na apreciação da prova;
22- Com efeito, o referido erro notório na apreciação da prova nada tem que ver com a eventual desconformidade entre a decisão do Tribunal a quo e aquela que teria sido a do próprio recorrente, pelo que carecendo esta de qualquer relevância jurídica, é óbvio que aquela desconformidade não pode deixar de ser também ela juridicamente irrelevante;
23- Atento o exposto, sufraga-se, assim, a decisão proferida no Acórdão ora recorrido que, no modesto entendimento da ora Recorrida, não merece qualquer censura;
24- A Demandada, ora Recorrente alega, subsidiariamente, que o Acórdão ora recorrido violou o disposto nos artigos 487.°, 489.° e 560.° todos do Código Civil na fixação do quatum indemnizatório. Porém, salvo o devido respeito, não lhe assiste qualquer razão;
25- Atendendo à matéria de facto dada por provada no texto do Acórdão recorrido e vistas, em especial, as lesões sofridas pela Demandante, ora Recorrida, em consequência do acidente de viação de que foi vítima e devidamente descritas nos relatórios médicos juntos aos autos e referidos expressamente na própria fundamentação fáctica do aresto ora recorrido, é de considerar que a decisão tomada pelo Tribunal a quo no que se refere à fixação do quantum indemnizatório dos danos morais da Ofendida não se mostra desajustado à luz dos critérios previstos nos artigos 487.°, ex vi do artigo 489.° e 560.°, todos do CC;
26- Assim sendo, é de naufragar também patentemente o recurso nesta última parte subsidiária, dado que in casu não se verifica nomeadamente a violação pelo Tribunal recorrido dos supra referidos normativos;
27- É, em suma, de rejeitar todo o recurso interposto pela Demandante, ora Recorrente, por ser manifestamente infundado, nos termos já acima expostos.”; (cfr., fls. 377 a 394).

*

Nesta Instância juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte Parecer:
“Prende-se o presente recurso, no essencial, com a litigância relativa a questão cível, sobre a qual entendemos não nos pronunciar.
De todo o modo, no que respeita à matéria que, de alguma forma, poderá conflituar com o decidido a nível penal, acompanham-se, de perto, as doutas considerações da demandante, quer no que tange à efectiva existência do exercício do direito de queixa e consequente legitimidade do M.P. para o exercício da acção penal, quer quanto à inexistência de pretendido erro notório na apreciação da prova, tratando-se, neste concreto, de mera discordância pessoal na interpretação do julgamento da matéria factual, havendo que respeitar o princípio da livre apreciação da prova consagrado no at 114° CPP, sendo certo nada indicar que a convicção do julgador seja inadmissível, contrária às elementares regras da lógica ou da experiência comum.
Razões por que, quanto a tais questões, entendemos não merecer provimento o presente recurso”; (cfr., fls. 464).

*

Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Está provado que:
“Em 25 de Janeiro de 2006, cerca das 4h da manhã, o arguido A conduziu em estado de embriaguez o automóvel ligeiro de matrícula n.º MI-XX-XX, circulando pela Avenida da Amizade em direcção da Rua dos Pescadores, altura em que se encontraram no carro também os dois amigos seus C e D.
Naquele momento, a taxa de álcool no sangue do arguido alcançou a taxa de 1,04 gramas por litro.
Quando o automóvel passou pelo Terminal Marítimo do Porto Exterior e mudou de direcção, outro automóvel ligeiro ultrapassou subitamente o do arguido pela sua direita, altura em que o arguido girou imediatamente o volante para evitar o choque, no entanto, por o arguido não controlar adequadamente a velocidade do veículo durante a mudança de direcção, este passou a ser descontrolado e embateu com enorme força no candeeiro n.º 181C03 que ficou na esquerda, fazendo com que a lesada C entrasse em coma e sofresse lesões (vide fls. 33 e 35).
Tal embate causou à lesada as lesões descritas e verificadas na perícia de medicina legal constante de fls. 45 dos autos. Segundo o parecer de medicina legal, a lesada precisa de 180 dias para recuperar-se, e as lesões lhe causadas preenchem ofensas graves previstas pelo art.º 138.º, al. c) do Código Penal, as quais lhe provocaram doença que durou mais de 30 dias, com possível sequelas de visão turva do olho direito e de diplopia. Dá-se as lesões respectivas por integralmente reproduzidas nesta acusação.
Tal acidente de viação causou também ao candeeiro acima referido dano no valor de MOP$3.464,90.
O arguido já pagou a multa ao Departamento de Trânsito do CPSP em relação às contravenções de conduzir sob o efeito do álcool e de não controlar a velocidade do veículo.
O arguido conduziu o veículo na via pública sob o efeito do álcool.
O arguido não conduziu com cautela nem tomou precauções para evitar a ocorrência do acidente.
O arguido bem sabia que tais condutas são proibidas e punidas por lei.
*
Factos que se teve como provados e importantes relativos ao reconhecimento do pedido de indemnização civil, designadamente:
Depois de ser lesada, a ofendida C encontrou-se interna por 3 dias: de 25 a 27 de Janeiro de 2006.
As despesas com o internamento, os tratamentos médicos e a medicina pagas pela lesada C em Hong Kong e Macau a fim dos tratamentos das lesões causadas no acidente de viação foram pelo menos 9.965,48 patacas.
A lesada deslocou-se, pelo menos 15 vezes, para o Centro Hospitalar Conde S. Januário e o Hospital Keang Wu de Macau para o tratamento médico, sendo os custos de transporte cada vez pelo menos 40 patacas, isto é, no total pelo menos 600 patacas.
A lesada tem o rendimento cerca de MOP$8200.
Após ser lesada no acidente, a ofendida sofreu dores físicas e teve muitas vezes dores na cabeça e estonteamento desta. Além disso, a ofendida passou a ser mentalmente instável e facilmente assustada, bem como sentir-se ansiosa pelas sequelas das lesões, sugerindo o médico que ela se submetesse a orientação psicopedagógica.
Através do apólice de seguro n.º XXX, A transferiu a responsabilidade de indemnização civil de trânsito do automóvel ligeiro de matrícula MI-XX-XX à Companhia de Seguros B, sendo o limite máximo do valor segurado de MOP$1.000.000,00.
*
De acordo com o registo criminal, o arguido é delinquente primário.
O arguido foi condenado, no âmbito do processo penal colectivo n.º CR3-05-0052-PCC, pela prática de um crime de falsificação de documento de especial valor, na pena de multa de 90 dias, com taxa diária de MOP$80, já se encontrando cumprida a pena respectiva.
O arguido é corrector, com rendimento mensal de MOP$5.500,00, acrescido das comissões, sem encargo económico. O mesmo anda agora no primeiro ano da universidade à noite.
*
Factos não provados:
Os restantes factos importantes que não estão em conformidade com os provados, constantes da acusação, da petição da indemnização civil e da contestação, designadamente:
O arguido conduziu o veículo sob o efeito do álcool, causando perigo à vida de terceiro.
A lesada não era capaz de trabalhar depois da ocorrência do acidente de viação.”; (cfr., fls. 425 a 428).

Do direito

3. Vem a demandada seguradora recorrer do Acórdão proferido pelo Colectivo do T.J.B., colocando as questões seguintes:
– falta de legitimidade do Ministério Público para deduzir acusação e nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;
– renúncia do direito à indemnização e nulidade do acórdão por omissão de pronúncia;
– erro notório na apreciação de prova; e,
– excesso do montante arbitrado a título de indemnização pelos danos não patrimoniais.

— Comecemos pela primeira, quanto à “legitimidade do Ministério Público”.

Nos termos do art. 37° do C.P.P.M.:
   “O Ministério Público tem legitimidade para promover o processo penal, com as restrições constantes dos artigos seguintes.”

E, em conformidade com o art. 38° do mesmo código:
“1. Quando o procedimento penal depender de queixa, é necessário que a pessoa com legitimidade para a apresentar dê conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2. Para o efeito previsto no número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3. A queixa é apresentada pelo titular do direito respectivo ou por mandatário munido de poderes especiais.”

Por sua vez, o procedimento penal pelo crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, depende, como é sabido, de queixa; (cfr., art. 142°, n° 3 do C.P.M.).

In casu, no dia 27.01.2006 (e perante um guarda da P.S.P. como testemunha), a ofendida, C, declarou, “para os devidos efeitos”, que não desejava procedimento criminal ou judicial contra o arguido A, pelos factos ocorridos em 25.01.2006, ou seja, o “acidente” matéria do presente processo.

Ora, a “renúncia ao procedimento criminal” extingue o direito de queixa ainda não exercido.

De facto, nos termos do art. 108°, n° 1 do C.P.M.,
“O direito de queixa não pode ser exercido se o titular a ele expressamente tiver renunciado ou tiver praticado factos donde a renúncia necessariamente se deduza.”

Porém, no caso dos presentes autos, verifica-se que em 28.03.2006, e em sede do Inquérito que corria termos na P.S.P., declarou a mesma ofendida que desejava procedimento criminal, (cfr., fls. 33), o que fez com que o Ministério Público viesse a deduzir acusação contra o arguido dos presentes autos, A, e a requerer o seu julgamento, o que veio a suceder, proferindo-se, a final, a decisão que atrás já se deu conta.

Quid iuris?

Temos para nós – tal como já entendeu a Relação de Coimbra; cfr., Ac. de 29.04.1986, in C.J. XI, T3, pág. 77 – que a renúncia ao procedimento criminal é um negócio jurídico informal não receptício, e declarada a renúncia a procedimento criminal pelo ofendido não pode este vir mais tarde a requerer o procedimento criminal pelos mesmos factos.

É, por assim dizer, irretractável.

Nesta conformidade, claro é que não se pode dar relevância às declarações pela ofendida prestadas em 28.03.2006, e sendo então de se considerar como válida e eficaz a “renúncia” manifestada em 27.01.2006, constata-se que ao Ministério Público não assistia legitimidade para o procedimento criminal que promoveu contra o arguido A.

Na sua resposta ao recurso, diz a mesma ofendida que extemporânea é tal questão, que a ora recorrente deveria ter suscitado tal questão em sede de contestação do pedido civil, que no dia 27.01.2006 encontrava-se sob um “clima emocional intenso”, possivelmente em “estado de choque, não tendo uma percepção concreta da gravidade dos danos que sofreu” e que “não tinha sido advertida das possíveis consequências de tal declaração”.

Não nos parece de acolher o assim alegado.

Sendo a questão da “legitimidade do Ministério Público” uma questão de conhecimento oficioso, nada obsta a que este Tribunal sobre a mesma se pronuncie até ao trânsito em julgado da decisão.

Quanto ao “estado emocional” e “desconhecimento da gravidade dos danos”, é matéria tão só alegada, não se podendo considerar a mesma assente, não nos parecendo também que na fase em que se encontram os autos se possa dar qualquer relevância.

Por sua vez, quanto à “falta de advertência”, diz-se apenas que a declaração foi prestada por escrito, nela referindo-se a ofendida que “para os devidos efeitos, não desejava procedimento criminal e judicial...”

Ignora-se se lhe foi feita a dita advertência, mas, de qualquer modo, nada na Lei impõe que a mesma lhe fosse feita, sendo também de consignar que a mesma declaração (efectuada em 27.01.2006) é clara e “fala por si”.

Dest’arte, há que declarar a ilegitimidade do Ministério Público na promoção do procedimento criminal em questão.

Diz ainda a recorrente que o Tribunal a quo incorreu em nulidade por omissão de pronúncia.

Não nos parece.

Tal questão nunca lhe tinha sido colocada, não sendo assim de acolher tal entendimento.

— Aqui chegados, cabe agora apreciar da consequência da declarada “ilegitimidade” do Ministério Público.

Pois bem, quanto à “acção crime”, evidente é que a decisão proferida não se pode manter, devendo-se antes considerar o arguido absolvido da instância.

E quanto a “acção civil”?

Atenta a situação dos presentes autos, com decisão proferida quanto ao pedido civil, não nos parece que se deva considerar a mesma sem efeito em virtude da solução a que se chegou na acção crime.

De facto, o C.P.P.M. consagra o “princípio de adesão”, nos termos do qual “O pedido de indemnização civil fundado na prática de um crime é deduzido no processo penal respectivo, só o podendo ser em separado, em acção cível, nos casos previstos na lei.”; (cfr., art. 60°).

E, por sua vez, nos termos do art. 358°, n° 1 do mesmo C.P.P.M.:
“A sentença, ainda que absolutória, condena o arguido em indemnização civil sempre que o pedido respectivo vier a revelar-se fundado, sem prejuízo do disposto no n.º 2 do artigo 71.º e no artigo 74.º”

Para além disto, válido não se apresenta o (eventual) argumento no sentido de que “caindo” a acção penal, insuficiente é a restante matéria do Acórdão proferido para a decisão do pedido civil.

É que, no seu pedido de indemnização deu a ofendida demandante como “integralmente reproduzida a acusação deduzida”, (cfr., art. 1° do pedido civil de fls. 124 e segs), motivos não parecendo assim haver para em consequência do decidido quanto à acção penal se dar como “sem efeito” a decisão proferida em relação ao mencionado pedido civil.

Esclarecido este aspecto, vejamos.

— Entende a recorrente que a ofendida renunciou ao direito de indemnização e que nulo é o Acórdão por omissão de pronúncia quanto a esta questão.

Outra é a nossa opinião.

A ora recorrente teve oportunidade de se pronunciar sobre o pedido civil deduzido, pois que foi citada para o contestar, o que fez; (cfr., fls. 198 a 202-v).

E, como se sabe, em processo civil, vigora o “princípio da concentração da defesa”, consagrado no art. 409° do C.P.C.M., nos termos do qual:
“1. Toda a defesa deve ser deduzida na contestação, exceptuados os incidentes que a lei mande deduzir em separado.
2. Depois da contestação só podem ser deduzidas as excepções, incidentes e meios de defesa que sejam supervenientes, ou que a lei expressamente admita passado esse momento, ou de que se deva conhecer oficiosamente.”

Nesta conformidade, e não tendo a ora recorrente suscitado oportunamente tal questão, à vista está a solução.

Por sua vez, inexiste nulidade por omissão de pronúncia, pois que tal questão – como se deixou dito – nunca antes tinha sido colocada.

Assim, e sendo que a título de indemnização pelos danos não patrimoniais fixou o Tribunal a quo o montante de MOP$130.000,00, vejamos das restantes questões que nos vem colocadas.

— Considera a mesma recorrente que houve “erro notório na apreciação da prova” e que excessivo é o dito montante.

Quanto ao “erro”, diz a recorrente que “Não há nos autos nenhum documento ou prova que mostrou factos relacionados com o referido “fazendo com que a ofendida C entrasse em coma e sofresse lesões”.

Ora, tem este Tribunal entendido que “erro notório” verifica-se “quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”; (cfr., v.g., Ac. de 14.06.2001, Proc. n° 32/2001, do ora relator).

Com efeito, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 20.09.01, Proc. n° 141/2001, do ora relator).”

E, analisando os autos, não nos parece que tenha o Colectivo a quo violado as regras sobre o valor da prova, as legis artis ou regras de experiência, pelo que não existe o imputado erro.

— No que toca ao quantum indemnizatório, cabe decidir se perante a factualidade provada, excessiva é a indemnização de MOP$130.000,00 fixada a título de “danos não patrimoniais”.

Pois bem, está provado que o “embate causou à lesada as lesões descritas e verificadas na perícia de medicina legal constante de fls. 45 dos autos. Segundo o parecer de medicina legal, a lesada precisa de 180 dias para recuperar-se, e as lesões lhe causadas preenchem ofensas graves previstas pelo art.º 138.º, al. c) do Código Penal, as quais lhe provocaram doença que durou mais de 30 dias, com possível sequelas de visão turva do olho direito e de diplopia.”

Ponderando no assim provado, e atento os critérios do art. 487° e 489° do C.C.M., excessivo não se nos mostra o dito montante de MOP$130.000,00.

Tudo visto, resta decidir.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos que se deixam expostos, acordam absolver o arguido da prática do crime de “ofensas graves à integridade física por negligência”, confirmando-se a condenação da recorrente a pagar o total de MOP$140.565,48 a título de indemnização à demandante recorrida.

Custas pela recorrente.

Honorários à Exm.ª Patrona da demandante e ao Exm° Advogado que a substitui na sessão da leitura do acórdão no montante de MOP$1.500,00 e MOP$500,00, respectivamente, e ao Exm° Defensor do arguido no montante de MOP$800,00.

Macau, aos 11 de Novembro de 2010

_________________________
José Maria Dias Azedo
(Relator)

_________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Segundo Juiz-Adjunto)

Proc. 723/2010 Pág. 14

Proc. 723/2010 Pág. 1