Processo nº 709/2010
Acordam em conferência no Tribunal de Segunda Instância da RAEM:
I
No âmbito dos autos de providência cautelares de arresto suspensão de deliberação, com o nº CV3-10-0050-CAO-A, do 3º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, foi proferida a seguinte sentença:
A工程(澳門)有限公司, doravante designada A, com os demais sinais dos autos, vem requerer procedimento cautelar de arresto contra Obras de Decoração B (Macau) Limitada, também, com os demais sinais dos auots, pedindo que se decrete o arresto dos saldos bancários em nome da requerida, créditos da B sobre a Companhia de Construção de Obras Portuárias C Limitada pelos trabalhos realizados no Hotel XXX e dos eventuais bens móvies e imóveis registados em nome da Requerida nas respectivas conservatórias dos Registos Comercial e de Bens móvies e do registo Predial, tudo para garantia do crédito de MOP$15.999.959,89.
Para tanto invoca que entre a Requerente e requerida foi celebrado um contrato de subempreitada da construção e decoração interior do 24º e 25º andares e sala nº 5 do 23º andar do Hotel XXX.
A Requerente pagou as quantidades necessárias à obra aos fornecedores designados pela requerida e adquiriu os materiais que não afectavam a aparência. A Requerida pediu a realização de trabalhos a mais o que foi aceite pela requerente.
Os trabalhos foram iniciados em 14 de julho de 2007 e tinham que estar terminados em 20 de Novembro de 2007, não tendo sido fixado prazo para a realização dos trabalhos a mais.
Em 12 de Dezembro de 2007 data em que a Requerida expulsou a Requerente da obra, esta tinha realizado 100% dos trabalhos na sala nº 5 do 23º andar, 74,22% dos trabalhos no 24º andar e 73,62% dos trabalhos no 25º andar.
O preço total dos trabalhos realizados pela requerente incluindo os trabalhos a mais é igual a MOP$27.631.919,89 dos quais a Requerida pagou o valor de MOP$11.847.605,10, tendo assim a requerente a receber MOP$15.999.959,89.
A Requerente incorreu em custos para a realização dos trabalhos no valor de MOP$13.056.613,40.
Considerando que o preço global da empreitada era de MOP$29.809.000,00 acrescido de MOP$5.455.479,89 e o custo orçamentado da obra de MOP$19.035.868,40 e de MOP$3.483.869,00 para os trabalhos mais, a Requerente esperava obter um proveito com a obra inicial de MOP$10.733.131,60 e de MOP$1.971.610,43 com os trabalhos mais, no valor global de MOP$13.953.750,33.
A Requerida tem-se recusado a pagar o preço, os seus sócios retiraram a documentação do escritório, a totalidade do preço da obra já foi paga à Requerida sem que esta tenha solvido as suas obrigações, não lhe sendo conhecido património suficiente para solver as suas obrigações.
Pelo que conclui estão demonstrados os requisitos para que seja decretado o arresto.
Procedeu-se a inquirição das testemunhas.
Dos elementos existentes nos autos consta que.
a) Em 1 de novembro de 2007 foi celebrado entre a Requerente e a requerida o contrato de obras de decoração que consta de folhas 57/58 cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
b) A execução das obras relativamente ao contrato supra referido havia sido iniciada em Julho de 2007 – depoimento das testemunhas -.
c) Pela requerida foi pedida a realização de trabalhos a mais relativamente ao contrato referido em a) no valor de MOP$5.455.479,89 – cfr. fls. 117 e depoimento das testemunhas -;
d) A Requerente em 12 de Dezembro de 2007 abandonou a obra invocando que a requerida não lhe efectuava os pagamentos – depoimento das testemunhas -;
e) Até à data referida no item anterior a requerente havia realizado 100% dos trabalhos do quarto nº 5 do 23º andar, 74,22% das obras do 24º andar e 73, 62% das obras do 25º andar – cf. Doc. de fls. 147 a 151 -;
f) A Requerente incorreu na realização da obra em custos no valor de MOP$13.154.463,78 – cf. fls. 162 -;
g) A Requerida efectuou pagamentos à requerente por conta dos trabalhos realizados no valor de MOP$11.847.605,10 nas datas e nos valores indicados a folhas 152 que aqui se dá por integralmente reproduzida para todos os efeitos legais,
h) Instada por várias vezes a proceder ao pagamento das obras a requerida não efectuou outros pagamentos para além dos indicados no item anterior – depoimento das testemunhas -;
i) A requerente não efectuou pagamentos aos demais subempreiteiros com quem contratou para a execução da obra – depoimento das testemunhas –;
j) Não são conhecidos bens à requerida para solver as dividas aos subempreiteiros para além de dinheiro depositado em conta bancária - depoimento da primeira testemunha ouvida -.
A convicção do tribunal relativamente aos factos indiciáriamente demonstrados resultou dos documentos e depoimentos das testemunhas indicados relativamente a cada um deles.
No que aos depoimentos das testemunhas concerne estas referiram expressamente a matéria constante das alíneas indicadas, factos dos quais tiveram conchecimento porquanto a primeira trabalha para um dos subempreiteiros com quem a requerida também contratou a execução de parte das obras e acompanhou nas diligências que realizaram para obter desta o pagamento dos seus créditos, a segunda por ser capataz da Requerente e ter estado na execução das obras e a ultima contabilista da requerente e ter conhecimento dos valores que haviam sido pagos e estavam em débito bem como toda a situação da obra no que respeita a pagamentos.
Cumpre apreciar e decidir.
As providências cautelares podem ser conservatórias – manutenção do statu quo de modo a garantir a reintegração – ou antecipatórias – antecipação da realização do direito que venha, eventualmente, a ser reconhecido -.
O arresto integra a primeira categoria1
«O sucesso da acção cautelar depende sempre de dois requisitos.
- A verificação da aparência dum direito,
- A demonstração do perigo de insatisfação desse direito.»2
De acordo com o disposto no nº 1 do artº 615º do CC «o credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial do seu crédito pode requerer o arresto de bens do devedor».
Segundo o nº 1 do artº 618º do CC «os actos de disposição dos bens arrestados são ineficazes em relação ao requerente do arresto, de acordo com as regras próprias da penhora. »
Assim sendo, no caso do arresto, impõe-se que o requerente demonstre que é titular do crédito e que há receio de ocultação ou dissipação patrimonial por banda do devedor de forma a tornar impossível ou dificultar a cobrança do mesmo.
A propósito veja-se Pires de Lima e Antunes varela em Código Civil Anotado, 3ª ed., Vol. 1, pág. 605 e 606: «O direito de requerer arresto é conferido ao credor que tenha justo receio de perder a garantia patrimonial. Não é necessário, portanto, que a perda se torne efectiva com a demora; basta que haja um receio justificado (no mesmo sentido, cf., art. 403.º do Cód de Proc. Civ., que manda ao requerente deduzir os factos que justificam o receio invocado). Também não é necessário, contra o que se dizia no Código de Processo de 1961, que haja receio de insolvência do devedor ou de ocultação de bens por parte deste;. Todo o receio de perda da garantia patrimonial, fora daqueles dois casos, é relevante.
Para que haja justo receio de perda da garantia patrimonial basta que, com a expectativa da alienação de determinados bens ou a sua transferência para o estrangeiro, o devedor torne consideravelmente difícil a realização coactiva do crédito (cfr. § 917.° do Cód. de Proc. Civ. alemão), ficando no seu património só com bens que, pela sua natureza, dificilmente encontrem comprador, numa venda judicial. Basta igualmente, conforme se decidiu no ac. do S.T.J., de 11 de Dezembro de 1973 (B.M.J., n.° 232, págs. 110 e segs.), que exista acentuada desproporção entre o montante do crédito e o valor do património do devedor, desde que este património seja facilmente ocultável.
Sendo o direito conferido ao credor, cabe ao requerente mostrar que é credor, e consequentemente, provar, em princípio, a existência do crédito. Como, porém, a prova do crédito se há-de fazer na acção principal e não no procedimento cautelar, a lei contenta-se neste caso com a prova da probabilidade da existência do crédito (cfr. art. 403.°) à data do pedido (cfr. Vaz Serra, est. cit., n.° 3). Mesmo que se trate de um crédito fundado em responsabilidade extracontratual, basta que se demonstre a probabilidade da sua existência (cfr. o ac. do S.T.J., de 31 de Maio de 1968, no B.M.J., n.° 177, págs. 221 e segs.).»
No caso dos autos face à prova indiciária produzida resulta a aparência do direito de crédito por banda da requerente, uma vez que celebrou com a requerida um contrato de execução de obras o qual executou parcialmente não tendo recebido o respectivo pagamento.
Quanto ao valor do crédito a requerente invoca várias situações.
Considerando o valor global do contrato inicial e o acréscimo resultante dos trabalhos a mais realizados tudo no valor global de MOP$35.264.479,89 e a percentagem dos trabalhos realizados considera ser credora do montante de MOP$27.631.919,89. Pelo que tendo a requerida pago MOP$11.847.605,10 tem a requerente a receber MOP$15.784.314,79.
Considerando a indemnização prevista no art° 1155° do C.Civ. invoca a requerente que tem direito a uma indemnização no valor de MOP$15.999.959,89.
Vejamos então.
Reivindica a Requerente ser credora do valor de MOP$15.784.314,79 considerando a percentagem dos trabalhos realizados.
Da prova produzida o que resulta demonstrado é que foi a requerente quem abandonou a obra.
O que resulta do contrato celebrado pelas partes é que a Requerente tinha que entregar à Requerida até ao dia 5 de cada mês documento escrito de onde constasse as obras concluídas no mês em causa, para que esta lhe pagasse no prazo de cinco dias úteis.
Da relação de pagamento efectuados por banda da requerida o que resulta é que esta o realizou nos meses de Novembro, Dezembro, Janeiro e Fevereiro.
A Requerente não alega nem demonstrou que exigiu nos termos do contrato pagamentos em valores superiores aos que foram efectuados.
Destarte não se pode concluir que a Requerida não tenha pago o que devia à Requerente de acordo com a evolução das obras.
Por outro lado o que resulta demonstrado é que mesmo após o abandono das obras pela requerente a requerida ainda efectuou pagamentos.
Pelo que à mingua de prova não podemos concluir pela aparência do invocado direito por banda da Requerente.
Invoca a requerente ter direito a indemnização prevista no art. 1155° do C.Civ.
Para que a requerente pudesse invocar o direito à indemnização prevista no art. 1155° do C.Civ. havia que ter demonstrado que o empreiteiro havia desistido da subempreitada.
Ora o que resulta demonstrado é que foi a requente quem abandonou a obra.
Destarte, também no que a este respeita, não estando demonstrada a desistência do empreiteiro não há aparência do direito no que concerne à indemnização do art° 1155° do C. Civ.
Finalmente invoca a recorrente o enriquecimento sem causa.
Nos termos do n° 2 do art° 467° do CPC pode haver obrigação de restituir o que for recebido por virtude de uma causa que deixou de existir.
Ora, no caso em apreço tendo cessado o contrato que existia entre as partes e não sendo possível a restituição em espécie a recorrente tem direito a receber o que despendeu na execução da obra.
Da prova indiciária produzida resulta que a Requerente terá suportado custas no valor de MOP$13.154.463,78 incluindo as dívidas que terá ainda de pagar.
Da Requerida a Requente já recebeu a quantia de MOP$11.847.605,10.
Destarte a Requerente terá a receber a diferença no valor de MP$1.306.858,68.
Assim sendo, no que concerne à aparência do direito podemos considerar que a Requente terá sobre a requerida um direito de crédito naquele valor.
Relativamente ao perigo na mora, igualmente foi indiciariamente demonstrado que à Requerida não são conhecidos bens que possam garantir o pagamento da quantia de que a requerente é credora, para além de valores eventualmente depositados em contas bancárias.
Destarte, no caso em apreço não só ocorre a aparência do direito por banda do requerente, como também, a demonstração do perigo de insatisfação desse direito, pelo que, se verificam os requisitos de que depende a providência requerida, devendo ser decretado o arresto de bens suficientes para garantir o valor de MOP$1.306.858,68.
Nestes termos e pelos fundamentos expostos decreta-se o arresto até ao valor de MOP$1.306.858,68 dos seguinte bens e pela ordem indicada.
1°- Contas bancárias de que a requerida seja titular, ordenando-se que oficie à Autoridade Monetária de Macau para o efeito dispensando-se o sigilo bancário;
2°- Dos créditos da requerida sob a Companhia de Construção de Obras Portuárias C, Limitada pelos trabalhos no Hotel XXX;
3°- De bens móveis e imóveis que se encontrem inscritos a seu favor nas competentes Conservatórias.
Custas a cargo da requente a atender no acção respectiva – n° 1 do art° 382° do CPC –.
Notifique e cite nos termos do art° 330° n° 5 do CPC.
Não se conformando com essa sentença, veio a requerente A (A工程(澳門)有限公司) recorrer da mesma concluindo que:
A. A decisão que decretou o arresto, na parte em que não reconheceu a aparência do (i) direito à indemnização no valor de MOP25,801,355.43 prevista no art.º 1155.º do CCM ou do (ii) direito ao preço total de MOP27,631,919.89 correspondente à percentagem dos trabalhos acabados na obra do Hotel XXX, não se afigura correcta.
B. O depoimento da testemunha E não suporta a conclusão de que foi a a A quem abandonou a obra, dado que o que dele resulta provado ou sumariamente indiciado é que a B não pagou o que devia à A e que a A foi afastada da Obra pela B.
C. Este ponto da matéria de facto mostra-se, portanto, incorrectamente julgado.
D. Assim deveria o Tribunal a quo ter reconhecido a existência do direito de crédito a que se referem os art.os 63.º a 82.º do requerimento inicial.
E. Subsidiariamente, se assim não se entender, ainda que a A não tivesse exigido nos termos do contrato de subempreitada pagamentos em valores superiores aos que foram efectuados pela B, mesmo assim deveria o Tribunal a quo ter reconhecido a existência do direito de crédito a que se referem os art.os 83.° a 85.° do requerimento inicial.
F. Isto porque, ficou provado nas alíneas a) e e) da sentença ora recorrida:
- o teor do contrato de fls. 57 e 58, incluindo o seu preço total de MOP29,809,000.00, discriminado da seguinte forma: MOP609,000.00 para a sala n.º 5 do 23.º andar, MOP13,400,000.00 para o 24.º andar, e MOP15,800,000.00 para o 25.º andar do Hotel XXX; e
- que, até 12/12/2007, a A havia realizado 100% dos trabalhos do quarto n.º 5 do 23.º andar, 74.22% do 24.º andar e 73.62% do 25.º andar-cf. doc. de fls.147 a 151 do arresto.
G. E tendo ficado provado, (i) quer o preço total dos trabalhos, (ii) quer a percentagem dos trabalhos que foi realizada, o preço correspondente a essa percentagem dos trabalhos devido à A resulta de simples operação aritmética, pelo que se trata de um crédito que deveria ter sido reconhecido pelo Tribunal a quo.
H. A exigibilidade e consequente pagamento do preço dos trabalhos realizados pela A não dependia da observância de nenhuma formalidade especial, mas apenas da sua correcta realização.
I. Ainda que assim não fosse, a aparência do direito ameaçado (a que se referem os art.os 83.º a 85.º do requerimento inicial) não depende da exigibilidade do preço dos trabalhos realizados na obra do Hotel XXX, pelo que não é de afastar a sua existência pela circunstância de que «A Requerente não alega nem demonstrou que exigiu nos termos do contrato pagamentos em valores superiores aos que foram efectuados.»
J. É que «Tanta protecção merece o credor cujo crédito pecuniário se encontra vencido, como aquele que aguarda pela data de vencimento para exigir do devedor o seu cumprimento. »2
K. Acresce que ficou provado na alínea h) da sentença recorrida que, instada por várias vezes a proceder ao pagamento das obras a B não efectuou outros pagamentos para além dos indicados a fls. 152, pelo que ficou constituída em mora por força do disposto no art.º 794.°, n.º 1 do CCM.
L. É também o que resulta dos depoimentos das testemunhas F,G, E, os quais concorrem para a prova dos factos alegados nos art.º 88.° e 90.° do requerimento inicial.
M. Ainda que assim não se entendesse, sempre a B se encontraria em mora perante a A nos termos do disposto no art.º 1137.°, n.º 2 do CCM.
N. Isto porque em 6/11/2008, a …. & …. ARCHITECIS & ENGINEERS (HK) LTD. emitiu o certificado de "Practical Completion Date" (fls. 144), atestando que as obras dos quartos e suítes do 23.° ao 28.° andar se encontravam totalmente concluídas desde 13/03/2008, tendo o Hotel XXX aberto oficialmente ao público em 17/12/2008 (fls. 43).
O. Por último, como o preço de MOP27,631,919.89 - que resulta provado das alíneas a) e e) da sentença recorrida - correspondente à percentagem dos trabalhos acabados, incluindo o valor de MOP5.455,479,89 dos trabalhos a mais indicado no documento de fls. 116, é muito superior ao valor total indicado na alínea g) da sentença recorrida, improcede a conclusão de que "Destarte não se pode concluir que a B não tenha pago o que devia à recorrente de acordo com a evolução das obras."
P. Face ao exposto, a sentença ora recorrida violou o disposto no art.º 332.°, n.º 1, primeira parte, do CPCM, e os art.os art. º 794.°, n.º 1 e 1137.°, n.º 2, ambos do CCM, pelo que, na parte em que concluiu pela inexistência do direito de crédito a que se referem os art. os 65.° a 81.° e os art. os 83.° a 85.° do requerimento inicial, deverá ser revogada e substituída por outra que reconheça a probabilidade da existência do direito à indemnização prevista no art.º 1155.° do CCM ou, subsidiariamente, do direito ao preço correspondente à percentagem dos trabalhos acabados na obra do Hotel XXX.
NESTES TERMOS e no mais de direito que V. Ex.as mui douta e certamente suprirão, deve ser dado provimento ao presente recurso com as legais consequências.
Assim, mais uma vez, farão V. Ex.as a costumada Justiça.
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Para justificar a existência provável do direito, a requerente, ora recorrente alegou na petição de arresto, em síntese, como primeiro argumento, o seu direito ao pagamento do preço correspondente à percentagem dos trabalhos realizados, e subsidiariamente, a indemnização ao abrigo do disposto no artº 1155º do CC e o enriquecimento sem causa do dono das obras.
Como vimos na sentença recorrida, ora integralmente transcrita supra, os primeiros dois argumentos vieram a ser julgados improcedentes e veio apenas o argumento fundado no invocado enriquecimento sem causa a ser acolhido.
Não se conformando com a sentença nestes termos proferida, vem a requerente recorrer dela para esta instância.
Na petição do recurso, vem a recorrente apontar o erro na apreciação da prova na parte em que o Tribunal a quo julgou provado que “a requerente abandonou a obra”, e a partir daí pôr em causa a decisão que não reconheceu o seu direito à indemnização ao abrigo do artº 1155º do CC, e subsidiariamente invocou o seu direito ao preço correspondente à percentagem dos trabalhos por ela realizados.
Começamos então a debruçar-nos sobre o primeiro argumento.
Com a inquirição das testemunhas, o Tribunal a quo deu como provado que “a requerente em 12 de Dezembro de 2007 abandonou a obra invocando que a requerida não lhe efectuava os pagamentos” – cf. al. d) da matéria de facto assente.
Com base nesse ponto de matéria de facto provada, o Tribunal a quo considera na parte de fundamentação da sentença que “da prova produzida o que resulta demonstrado é que foi a requerente quem abandonou a obra” – cf. a pág. 14 da sentença recorrida.
No entanto, entende a recorrente que o depoimento da testemunha E não suporta a conclusão de que foi a requerente A quem abandonou a obra, mas sim do seu testemunho resulta sumariamente indiciado que a requerida B não pagou o que devia à requerente A e que a A foi afastada da obra pela B.
Pretende com isso ver alterada a matéria de facto nessa parte, com vista a sustentar o direito por ele reivindicado ao abrigo do disposto no artº 1155º do CC.
Se é verdade que, por força do princípio da livre apreciação das provas consagrado no artº 558º do CPC, como regra geral, o tribunal aprecia livremente as provas, decidindo os juízes segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto, não é menos certo que a matéria de facto assente de primeira instância pode ser alterada nos termos e ao abrigo do disposto no artº 629º do CPC.
Diz o artº 629º/1-a) do CPC que a decisão do tribunal de primeira instância sobre a matéria de facto pode ser alterada pelo Tribunal de Segunda Instância, se do processo constarem todos os elementos de prova que serviram de base à decisão sobre os pontos da matéria de facto em causa ou se, tendo ocorrido gravação dos depoimentos prestados, tiver sido impugnada, nos termos do artº 599º, a decisão com base neles proferida.
Reza, por sua vez, o artº 599º, para o qual remete o artº 629º/1-a), todos do CPC, que:
(Ónus do recorrente que impugne a decisão de facto)
1. Quando impugne a decisão de facto, cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição do recurso:
a) Quais os concretos pontos da matéria de facto que considera incorrectamente julgados;
b) Quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo nele realizado, que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda.
3. Na hipótese prevista no número anterior, e sem prejuízo dos poderes de investigação oficiosa do tribunal, incumbe à parte contrária indicar, na contra-alegação que apresente, as passagens da gravação que infirmem as conclusões do recorrente.
4. O disposto nos n.os 1 e 2 é aplicável ao caso de o recorrido pretender alargar o âmbito do recurso, nos termos do n.º 2 do artigo 590.º
No caso dos autos, houve gravação dos depoimentos.
O meio probatório que, na óptica da recorrente, impunha decisão diversa é o depoimento testemunhal.
E foram indicadas as passagens da gravação do depoimento.
Satisfeitas assim as exigências processuais para a viabilização da reapreciação da matéria de facto com vista à eventual modificação por este Tribunal de Segunda Instância da decisão do Tribunal a quo sobre a matéria de facto, passemos então a apreciar se existem as alegadas incorrecções na apreciação da prova pelo tribunal a quo.
Defende a recorrente que das passagens da gravação do depoimento da testemunha E deve resultar provado ou pelo menos sumariamente indiciado que a requerida B não pagou o que devia à requerente A e que a requerente A foi afastada da obra pela requerida B.
Auscultadas e analisadas as passagens da gravação identificadas pela recorrente, verificamos que essa testemunha se limita a dizer repetidamente que a requerente A foi expulsa pela B “porque” a B não lhe efectuava os pagamentos e que após a insistência por parte do Exmº Juiz em apurar o “porquê” da sua expulsão e a coerência das vicissitudes, a testemunha não conseguiu explicar como é que se estabelece o nexo de causalidade entre o não pagamento e a expulsão e acabou por dizer que foi por “ouvir dizer” levada ao seu conhecimento a “expulsão da A” por se encontrar a trabalhar na altura como contabilista da requerente.
O tal teor desse depoimento, em si pouco coerente, acompanhado das incertezas e hesitações demonstradas pelo modo de dizer da testemunha, bem notáveis, mesmo sem imediação, mas com a simples audição da gravação do seu depoimento, não nos parece de censurar a convicção do Tribunal a quo ao fixar como matéria indiciariamente assente que “a requerente em 12 de Dezembro de 2007 abandonou a obra invocando que a requerida não lhe efectuava os pagamentos”.
Não é pois de alterar esse ponto de matéria de facto.
Invoca agora a requerente o seu direito nos termos do artº 1155º do CC.
Nos termos do qual, o dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, ainda que tenha sido iniciada a sua execução, contanto que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra.
Isto é, o empreiteiro só tem direito à indemnização no caso de desistência do dono da obra após o seu início.
Face à não demonstração nos autos da desistência por parte da B, cai por terra toda a argumentação para invocar o seu direito à indemnização ao abrigo do disposto no artº 1155º do CC.
Passemos então ao segundo argumento.
Aqui, a requerente, ora recorrente, reitera as razões de facto constantes dos artºs 83º a 85º do requerimento inicial.
Ou seja, tendo sido indiciariamente provados os preços das três parcelas das obras objecto do contrato de subempreitada celebrado entre ela e a requerida e o preço do trabalho a mais, assim como a percentagem das obras entretanto realizadas e concluídas pela requerente, essa tem direito ao preço correspondente à percentagem das obras já realizadas.
Invoca para o efeito que ficou provado que instada por várias vezes a proceder ao pagamento das obras a B não efectuou outros pagamentos para além das fls. 152, pelo que ficou constituída em mora por força do disposto no artº 794º/1 do CC.
Vejamos.
Tal como vimos e concluímos supra, é de relembrar que com a improcedência do primeiro argumento do recurso, ficou intacto o ponto de matéria de facto de que “a requerente em 12 de Dezembro de 2007 abandonou a obra invocando que a requerida não lhe efectuava os pagamentos”, pois se trata, como passamos a ver infra, de um facto relevante e que influi na apreciação do segundo argumento sobre o qual nos passamos agora a debruçar.
Recapitulando a matéria de facto indiciariamente assente, podemos esboçar em síntese a seguinte cena:
* celebrado um contrato de sub-empreitada entre a A e a B, nos termos do qual o pagamento do preço total deveria ser escalonado em várias prestações consoante o progresso na execução das obras;
* o dono da obra B pagou algumas prestações e não pagou as demais;
* instado por várias vezes a proceder ao pagamento das obras o dono da obra não efectuou outros pagamentos para além do indicado a fls. 152; e
* o empreiteiro A abandonou a empreitada antes da conclusão da totalidade dos trabalhos;
Todavia, não se sabe a quê percentagem das obras correspondem os preços indicados a fls. 152.
E também não foi demonstrado se o abandono teve lugar antes ou depois de executados os trabalhos correspondentes às prestações em falta.
Como regra geral, a prestação deve ser realizada integralmente e não por partes, excepto se outro for o regime convencionado ou imposto por lei ou pelos usos – artº 753º/1 do CC.
In casu, estamos perante um contrato sinalagmático. Por força do mesmo princípio, ambas as partes devem cumprir mútua e integralmente as suas obrigações.
Assim, na falta da demonstração nos autos da verificação das circunstâncias que constituem qualquer das excepções do acima citado artº 753º/1 do CC, para o credor das obras, ou seja, a requerida B, só o cumprimento integral é que satisfaz o seu interesse.
Ao passo que para o credor dos preços, ou seja, a requerente A, o seu interesse satisfaz-se com o pagamento da totalidade dos preços.
Ficou indiciariamente provado nos autos que “a requerente em 12 de Dezembro de 2007 abandonou a obra invocando que a requerida não lhe efectuava os pagamentos” e “instada por várias vezes a proceder ao pagamento das obras a requerida B não efectuou outros pagamentos para além do indicado a fls. 152”.
Com o abandono da obra da empreiteira, ora requerente, tornou-se impossível a realização dos restantes trabalhos por parte da empreiteira.
A lei estabelece regimes diferentes à impossibilidade parcial do cumprimento, consoante a sua imputabilidade ou não ao devedor.
Na primeira hipótese, ou seja, quando a impossibilidade parcial imputável ao devedor, a lei estabelece que o credor tem a faculdade de resolver o negócio ou de exigir o cumprimento do que for possível, reduzindo neste caso a sua contraprestação, se for devida; em qualquer dos casos o credor mantém o direito à indemnização – artº 791º/1 do CC.
E no caso de a impossibilidade parcial não imputável ao devedor, este exonera-se mediante a prestação do que for possível, devendo, neste caso, ser proporcionalmente reduzida a contraprestação a que a outra parte estiver vinculada – artº 782º/1 do CC.
Ora, o direito cuja existência provável que a requerente ora recorrente pretende ver indiciariamente demonstrada é o seu direito ao preço correspondente à percentagem dos trabalhos já realizados.
O que é justamente o direito tutelado no artº 782º/1 do CC.
Assim, por força desse artº 782º/1, a pretensão da requerente A só procede se viermos a concluir pela impossibilidade do cumprimento parcial não imputável a ela.
Isto é, interpretando a contrario essa norma, a requerente A não pode reivindicar o seu direito ao preço correspondente à percentagem dos trabalhos entretanto executados ao abrigo do citado artº 782º/1 do CC, se a impossibilidade for imputável a ela.
Resulta provado dos autos que a empreiteira, a requerente A, abandonou a obra invocando que a requerida B, não lhe efectuava os pagamentos e que instada por várias vezes a proceder ao pagamento das obras, a requerida B não efectuou outros pagamentos para além dos indicados a fls. 152.
Serão esses pontos da matéria de facto bastantes para habilitar a requerente para resolver o contrato com fundamento no incumprimento por parte da requerida?
A resposta não pode deixar de ser negativa, conforme se adianta infra.
Ora, mesmo que correspondesse à verdade o que a requerente A invocou para deixar de continuar a realizar os trabalhos, isto é, o não pagamento por parte da requerida B, a tal alegada atitude da B constituiria quando muito a mora, e não já o incumprimento definitivo que conferiria à A, na veste do credor do preço, o direito de resolver o contrato nos termos do artº 790º/2 ou do artº 791º/1 do CC.
Pois, nos termos da lei, para o credor resolver o contrato, é preciso demonstrar não só a imputabilidade ao devedor da não prestação, como também a impossibilidade da prestação – artºs 790º/1 e 791º/1 do CC.
Face ao disposto no artº 797º do CC, para além da perda do interesse do credor em consequência da mora, a prestação por parte do devedor só se torne impossível pela não realização da prestação dentro do prazo que, por interpelação, for razoavelmente fixado pelo credor.
Todavia, de acordo com a matéria de facto indiciariamente provada, nenhuma dessas hipóteses se verificou.
Pois apesar de ter sido sumariamente provado que “instado por várias vezes a proceder ao pagamento das obras o dono da obra não efectuou outros pagamentos para além do indicado a fls. 152”, o certo é que a simples interpelação, mesmo várias vezes repetida, não é a mesma coisa que um “ultimatum” dirigido ao devedor sob pena de resolver o contrato.
Na verdade, o que a lei exige é a concessão expressa de um determinado prazo ao devedor para que ele cumpra a prestação, sob pena de, na hipótese de ainda não realização da prestação, conferir ao credor o direito de resolver o contrato e exonerar o credor da contraprestação que ele assume por força do contrato.
Assim, sem a verificação do tal “ultimatum”, a A não pode resolver unilateralmente o contrato e abandonar a obra, imputando à B a impossibilidade da continuação da prestação.
E na falta da demonstração de outras circunstâncias, não podemos deixar de considerar imputável à A a impossibilidade da prestação, pura e simplesmente por o abandono da obra por parte dela não ter sido legitimado a qualquer título.
Por isso, não pode vir agora a A, com base no disposto no artº 782º/1 do CC, reivindicar o seu direito ao preço correspondente à percentagem das obras entretanto realizadas, direito esse que, como vimos, só merece o devedor a quem não é imputável a impossibilidade da prestação.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam negar provimento ao recurso mantendo na íntegra a sentença de 1ª instância.
Custas pela recorrente.
Notifique.
RAEM, 21OUT2010
(Relator)
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
José Maria Dias Azedo
1 Veja-se Manual de Direito processual Civil, 2ª Ed., Viriato Manuel Pinheiro de Lima, pág. 596.
2 Manual de Direito Processual Civil, 2ª Ed., Viriato Manuel Pinheiro de Lima, pág. 597.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
709/2010-1