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Processo nº 300/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. Por Acórdão proferido nos Autos de Processo Comum Colectivo n° CR3-06-0118, decidiu-se:
– condenar o (1°) arguido A (A), como autor de 1 crime de “ofensa grave à integridade física por negligência”, p e p. pelo art. 142°, n° 3, e art. 138°, al. d) do C.P.M., e como autor da prática de uma infracção ao art. 30° da Lei n° 3/2007, fixando-se-lhe a pena única de 1 ano e 10 meses de prisão, suspensa na sua execução por 2 anos e na multa de MOP$300.00; e
– condenar os (2° e 3°) arguidos B (B) e C (C), como co-autores de 1 crime de “favorecimento pessoal” na forma tentada, na pena de 9 meses de prisão suspensa na sua execução por 18 meses.

Quantos aos pedidos de indemnização civil enxertados nos autos, julgou-os o Tribunal improcedentes, absolvendo os demandados “XXX International Insurance PLC - Macau Branch”, ora denominada “XXX INSURANCE (HONG KONG) LIMITED”, e o arguido A dos pedidos; (cfr., fls. 736-v a 738-v).

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Inconformados com a absolvição dos demandados dos pedidos civis que deduziram, do assim decidido recorreram os demandantes D (D), em representação dos filhos menores E (E) e F (F), e, G (G), H (H) e I (I); (cfr., fls. 747 a 774).

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Em apreciação dos referidos recursos, proferiu este T.S.I acórdão ordenando o reenvio dos autos para novo julgamento; (cfr., Ac. de 26.06.2008, Proc. n° 257/2008, a fls. 852 a 867).

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Realizado novo julgamento, por acórdão do Colectivo do T.J.B. de 03.02.2010, foram novamente os ditos demandados civis absolvidos dos pedidos deduzidos; (cfr., fls. 965 a 974-v).

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Inconformados com o assim decidido, vem novamente os demandantes civis recorrer para esta Instância; (cfr., fls. 984 a 1007).

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Na sua motivação de recurso, oferecem os demandantes G, H e I as conclusões seguintes:
“1- Dão-se aqui por reproduzidos os factos indicados sob o no. II.
2- Não obstante a matéria de facto que fica referida, deliberou-se de forma seguinte:
"Nesta conformidade, os ferimentos provocados por via do acidente, por não provado foram causa directa e necessária, sem qualquer excepção, da morte do lesado ".
"Pelo contrário, se o lesado aceitasse assistência médica de forma adequada, muito provavelmente não teria falecido".
"No nosso caso, conforme os factos provados, apenas podemos concluir que o embate causou de forma directa e necessária da lesão corporal ".
"O próprio ofendido recusou ser submetido aos tratamentos e observações, deste modo, perdeu a boa oportunidade de fazer o diagnóstico e receber adequados tratamentos".
3 - Isto depois e apesar de se ter feito consignar, de forma contraditória que:
e) do acidente haviam resultado para o ofendido consequências muito graves;
f) em consequência desse embate o ofendido caiu ao chão e ficou em estado de coma;
g) posteriormente o ofendido foi levado ao Centro Hospitalar para receber tratamento e onde pelas 10,30 horas do dia 7 de Agosto de 2003 faleceu em consequência das lesões sofridas;
h) realizada a autópsia concluiu-se que a morte do ofendido foi causada pela actuação de instrumento contundente, causadora de lesões cranianas graves, correspondentes ás causadas por um acidente de viação.
4 - Baseou-se o Tribunal recorrido para alcançar aquela conclusão "na análise crítica e comparativa dos documentos juntos aos autos, do depoimento de parte e dos depoimentos das testemunhas inquiridas, que depuseram com isenção e imparcialidade adequados ao apuramento dos factos nomeadamente:
- Por acordo unânime todos aceitaram os factos que não os respeitantes ao nexo de causalidade do acidente á morte, assim, ficaram provados os respectivos factos nomeadamente factos relativamente á dinâmica da ocorrência do acidente.
- Da análise dos relatórios médicos, dos elementos prestados pelos senhores peritos não se logrou chegar á prova de que os ferimento provocados pelo acidente foram causa directa da morte".
5 - As justificações que ficam referidas não integram, do nosso ponto de vista, a fundamentação exigida pela lei processual penal em vigor.
6 - No caso presente o Tribunal Colectivo absteve-se de invocar a razão da ciência que estará na base dos depoimentos e declarações colhidos ao longo da audiência do julgamento assim como dos documentos que terão sido examinados.
7 - Ocorre assim a nulidade do Acórdão recorrido prevista no art. 360 a) com referência ao art. 355 no. 2 ambos do Código de Processo Penal.
8 - Na contestação não foram alegados quaisquer factos interruptivos desse nexo pelo que há que dar crédito ao que ficou consignado no relatório da autópsia e no relatório pericial de fls. 480 e 481, impondo-se a conclusão de que a morte do ofendido resultou directa e necessariamente das lesões por ele sofridas em consequência do acidente, sendo de rejeitar o mero juízo de probabilidade e não de certeza formulado pelo Colectivo.
9 - Na sequência do douto acórdão desse Tribunal de Segunda Instância que determinou o reenvio do processo á Primeira Instância para os efeitos da repetição do julgamento, entendeu o Colectivo que agora não tinham ficado provados os " restantes factos da acusação, requerimentos dos pedidos de indemnização cível e das contestações nomeadamente:
A morte do ofendido foi devido ao incumprimento de uma norma estradal por parte do primeiro arguido.
A morte foi resultado directo das lesões causadas pelo acidente."
10 - Cotejando estas respostas com as que ficaram referidas no art.4°, desta peça é fácil constatar que entre elas existe uma contradição insanável.
11 - Efectivamente, se se entendeu dar como provado que o ofendido havia ficado em estado de coma em consequência desse embate; que este havia falecido em consequência das lesões sofridas ou seja do traumatismo craniano provocado pelo acidente e que a autópsia havia revelado que a sua morte havia sido causada pela actuação de instrumento contundente causador de lesões cranianas graves correspondentes ás causadas por um acidente de viação, não se compreende que contraditoriamente tenham sido dadas as respostas a que se reporta o art. 9°. que antecede.
12 - Tendo-se o tribunal limitado a declarar que a morte do ofendido nada tinha a ver com o acidente, ficou por esclarecer qual a verdadeira causa da mesma.
13 - Entende-se por isso que o douto acórdão recorrido está inquinado do vício da insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, além da contradição insanável da fundamentação. (art. 400 n°.2 a) e b) do Código do Processo Penal).
14 - Por outro lado como decorre do que atrás foi dito, a conclusão extraída pelo Colectivo e respeitante á falta do nexo de causalidade resulta de um erro notório da apreciação da prova. ( art.400 no. 2 c) ).
15 - O douto Acórdão recorrido violou o disposto dos arts. 360, a) ,355 n 2 e 400 ,a) b) e c) todos do Código de Processo Penal e nos arts. 477, 488, 489 e 557 do Código Civil.
16 - Consequentemente, deve der declarado nulo o Acórdão recorrido, revogando-se o mesmo e devendo ser julgado procedente o pedido formulado, condenando-se o réu A e a ré XXX International Insurance Macau Branch a pagar aos requerentes, ora recorrentes, as seguintes quantias:
MOP. 1,500,000.00 ( um milhão e quinhentas mil patacas ) devidos á vítima pela lesão do seu direito á vida;
MOP. 700,000.00 ( setecentas mil patacas ) a título de danos não patrimoniais da autora e dos filhos referentes ao sustento que o ofendido lhes prestava.
17 - Subsidiariamente se requer, no caso do pedido que fica referido não ser atendido, que os autos sejam reenviados ao Tribunal recorrido para, em novo julgamento, ficarem esclarecidas as questões suscitadas nestas alegações.”; (cfr., fls. 984 a 992-v).

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Por sua vez, apresentou a demandante D, (em representação de E e F), as seguintes conclusões:
“a) Vem o presente recurso interposto do acórdão de 3 de Fevereiro de 2010 que julgou improcedente o pedido de indemnização cível deduzido pela recorrente em representação dos seus filhos menores, absolvendo, consequentemente, do pedido os demandados, A (A) e XXX International Insurance PLC - Macau Branch;
b) Tendo em conta a matéria de facto assente, relevante para apreciação da questão, não concorda a recorrente com o acórdão em apreço, porquanto, salvo o devido respeito, em primeiro lugar, verifica-se erro notório na apreciação da prova, o que é fundamento de recurso, nos termos, da alínea c) do n° 2 do art° 400° do CPP; e, em segundo lugar, admitindo sem conceder que as lesões provocadas na vítima J (J) pelo arguido A (A) não tiveram como consequência directa a sua morte, mas apenas ofensa grave à sua integridade física, então, tal ofensa sempre seria facto gerador de uma indemnização a favor dos representados da recorrente.
Ora,
c) Entende a recorrente que, perante a prova documental e pericial produzida, sempre salvo o devido respeito, nunca poderia o Tribunal "a quo" ter concluído que a morte do J (J) não foi consequência directa do acidente de viação que resultou da exclusiva culpa do arguido A (A);
d) Na verdade, o óbito do J (J) foi declarado com base na prova que constitui o certificado de óbito de fls. 58 e 59 - documento autêntico que faz prova plena dos factos nele atestados - cfr. art°s 363° e 365° do Código Civil;
e) E neste documento - exarado nos termos do art° 144° do Cod°. Registo Civil - consta que a causa da morte do J (J) foi a fractura dos ossos do crâneo ("fracture of the vault of skull') cuja causa antecedente foi um acidente rodoviário que envolveu uma colisão de um carro ou de um motociclo ("road traffic accident involving collision of a car or a motocycle");
f) Aliás, tal conclusão do Tribunal "a quo" choca também com o "Relatório da Autópsia" de fls. 78 e 79, do qual consta, após uma breve descrição das circunstâncias em que ocorreu o acidente, as seguintes conclusões médico-legais:
• " ... o falecimento do J (J) foi devido a lesão grave do cérebro provocada por forte pancada externa",
• " ... esta lesão foi provocada por um instrumento contundente";
• " ... a morte foi devida a acidente rodoviário";
g) Não consta, pois, de tais documentos autênticos, exarados pela competente autoridade pública, a menor referência a que a morte do J (J) poderá ter estado relacionada com a sua eventual recusa de tratamento, como sugerido pelos médicos que o assistiram, aquando da sua primeira observação no CHCSJ.
h) Mas também, nunca poderia o Tribunal "a quo" ter formulado aquela conclusão, já que "o juízo técnico ... inerente à prova pericial presume-se subtraído à livre apreciação do julgador" (art° 149° do CPP);
Ora,
i) Do relatório do perito médico conclui-se que a causa directa do falecimento do J (J) foi a hemorragia cerebral, consequência do acidente, pelo que, na modesta opinião da recorrente, a resposta ao quesito segundo formulado pela demandada foi negativa; e
j) Assim sendo, aquela conclusão do Tribunal "a quo" contradita aquela resposta, devidamente fundamentada, situação que lhe estaria vedada, face ao disposto no n° 1 do art° 143° do CPP.
Finalmente, admitindo sem conceder,
l) Entende a recorrente que, se as lesões provocadas na vítima J (J) pelo arguido A (A) não tiveram como consequência directa a sua morte, mas apenas ofensa grave à sua integridade física, então, tal ofensa sempre seria facto gerador de uma indemnização a favor dos representados da recorrente;
m) Na verdade, da mesma forma que o Tribunal "a quo" convolou o crime imputado ao arguido A (A) de homicídio por negligência, no crime de ofensas graves à integridade física, estaria também em condições de, nos termos do art° 74° do CPP, arbitrar oficiosamente uma indemnização a favor dos representados da recorrente, já que estão reunidos os requisitos previstos neste comando.”

Entende pois que “tendo em conta o erro notório na apreciação de prova - por violação das normas dos art°s 1°, 8°, 3°, 4° n°1 e 144° do Código de Registo Civil; por violação das normas dos art°s 363° e 365° do Código Civil; e por violação das normas dos art°s 149° e 143° do Código de Processo Penal (...), deverá ser determinado o reenvio do processo para novo julgamento, apenas para que o Tribunal "a quo" se pronuncie sobre a indemnização a arbitrar aos descendentes do falecido, E (E) e F (F), tendo por base a matéria de facto assente, mais concretamente, nos n°s 21 a 25 do acórdão, e o inilidível nexo de causalidade entre o acidente dos autos e o falecimento do J (J).”, e, para o caso de assim não se entender “deverá igualmente ser reenviado o processo para novo julgamento para ser arbitrada a favor dos representados da recorrente uma indemnização pelo crime de ofensas graves à integridade física da vítima J (J), por violação do disposto nos art°s 477° do Código Civil e 74° do Código de Processo Penal.”; (cfr., fls. 1009 a 1021).

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Respondendo, pugna a demandada seguradora “XXX INSURANCE (HONG KONG) LIMITED” pela improcedência dos recursos; (cfr., fls. 1026 a 1032).

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Nada obstando, cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. No Acórdão ora recorrido, e no que toca à “factualidade provada”, consta o que segue:
“Discutida a causa quanto aos pedidos de indemnização cível, o Tribunal considera provados os seguintes factos relevantes para a decisão:
1. - Em 5 de Agosto de 2003, cerca das 4H25 da madrugada, o J (ofendido) conduzia o automóvel ligeiro com a matrícula MI-XX-XX na Ponte Nobre de Carvalho, no sentido Macau-Taipa.
2. Quando o ofendido chegou ao poste de iluminação n.° 69, a parte dianteira do automóvel com a matricula MI-XX-XX embateu no ciclomotor com a matrícula CMXXXXX, que circulava no mesmo sentido e à sua frente.
3. Do embate resultou a queda do ciclomotor com a matrícula CMXXXXX e da sua condutora, L, havendo o ciclomotor ficado tombado no meio da faixa de rodagem da ponte, em frente ao posto de iluminação n.° 69.
4. O ofendido depois de ter parado o automóvel ligeiro com a matrícula MI-XX-XX em frente do ciclomotor com a matrícula CMXXXXX, saiu do mesmo e dirigiu-se ao local entre o ciclomotor com a matrícula CMXXXXX e o automóvel com a matrícula MI-XX-XX para contactar com a L.
5. Enquanto o ofendido estava a dialogar com a L sobre os montantes indemnizatórios, o automóvel ligeiro com a matrícula MG-XX-XX, conduzido pelo 1° arguido, A, embateu no ciclomotor com a matrícula CM-XXXXX.
6. Por sua vez, o ciclomotor, por força desse embate, deslizou pelo chão e embateu no ofendido J que se encontrava em frente do referido motociclo.
7. Em consequência desse embate, o ofendido caiu ao chão, e ficou em estado de coma.
8. Naquela altura, o automóvel com a matrícula MG-XX-XX ia na direcção Macau-Taipa e levava a M, filha do 1° arguido.
9. Posteriormente, o ofendido foi levado pelos seus amigos, cuja identificação se ignora, num outro automóvel ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para receber tratamento e, pelas 10H30 do dia 7 de Agosto de 2003, faleceu em consequência das lesões sofridas.
10. Realizou a autópsia que, conclui-se a morte do ofendido foi causado pela actuação de instrumento contundente que provocou lesões cranianas graves, correspondente causada por um acidente de viação (cfr. fls. 78 e 79 o relatório da autópsia).
11. Na altura em que ocorreu o acidente, o estado do tempo era bom, o piso estava pouco molhado, a luminosidade era suficiente e havia pouco tráfico.
12. O acidente foi devido, nomeadamente, ao incumprimento de uma norma estradal por parte do 1° arguido (A), que não regulou a velocidade de modo a que, atendendo às características e estado da via e do veículo, pudesse fazer para o veículo que lhe surgisse em condições normalmente previsíveis, causando fermento cranianos ao ofendido.
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(Dos factos constantes do requerimento do pedido cível de indemnização de fls. 320/328):
13. N, H e I são mulher e filhos de J.
14. E e F, são filhos menores de J da relação que este teve com a D (D), que veio a falecer em 2003/08/07, cujo inventário corre no 2° Juízo Cível deste Tribunal com o n° CV2-03-0018-CIV.
15. O Sr. J, ficou hospitalizado no Hospital Conde S. Januário desde o dia 5 de Agosto de 2003 até ao dia 7 de Agosto de 2003, data que veio a falecer.
16. O automóvel MC-XX-XX, estava segurado pela apólice N° ....... da XXX International Insurance Macau Branch.
17. À data do acidente o J, tinha 45 anos de idade, era casado com N, da qual teve dois filhos menores H e I. E da relação que este teve com a D teve também dois filhos menores E e F.
18. Estes sofreram, grande desgosto e profunda dor com a morte de J.
19. A morte repentina e drástica impediu a autora e os seus filhos de beneficiarem da companhia do marido e pai quando este se deslocava à R. P. China.
20. Era o J quem sustentava estas duas famílias, encontrando-se a N e os dois filhos a residirem na República Popular da China e os outros em Macau.
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(Dos factos constantes no requerimento do pedido cível de indemnização de fls. 420/424) :
21. A vítima J (J), era o único sustento dos seus dois filhos menores, E (E) e F (F).
22. Os supra referidos filhos menores da vítima tinham, à data do falecimento deste, respectivamente, 7 anos (nascido em 04/09/96) e 3 anos (nascido em 19/08/00).
23. Pelo menos até atingirem a maioridade, ambos dependiam exclusivamente da vítima.
24. O menor E (E) atingirá a maioridade em 04/09/2014; o menor F (F) atingirá a maioridade em 19/08/2018.
25. Os menores sofreram com a morte do seu pai, e continuam a sofrer.
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(Dos factos constantes da contestação do 1° arguido ora 1° Demandado de fls. 386/400) :
26. E durante a discussão entre a J e a L, o veículo automóvel manteve-se imobilizado sobre a faixa de rodagem e o ciclomotor caído no chão sobre a linha contínua.
27. O veículo automóvel mantinha as luzes acesas.
28. E o ciclomotor, contrariamente, não dispunha de qualquer luz (o farol da frente encontrava-se partido.)
29. E era de cor preta.
30. O pavimento apresentava a cor preta, tal como é próprio das estradas asfaltadas e principalmente quando molhadas e se considera o período nocturno.
31. O 1° arguido utilizava a Ponte Nobre de Carvalho, no sentido Macau-Taipa.
32. Conduzia a uma velocidade entre 30 e 35 Km/hora.
33. Ao aproximar-se do local onde se encontra o poste de iluminação n° 69, com alguma antecedência, o arguido viu o veículo automóvel do ofendido J, parado a meio da faixa de rodagem.
34. Como viu que a sua via estava obstruída, o que fez foi verificar se faixa se faixa de rodagem de sentido contrário estava ou não desimpedida.
35. E como, naquele momento, nenhum veículo estava a utilizar a referida faixa de rodagem, o que pretendia fazer era contornar o obstáculo existente, utilizando a outra faixa de rodagem.
36. Foi então quando se preparava para entrar na faixa de rodagem contrária para contornar o referido obstáculo, embateu no ciclomotor.
37. Por sua vez, o ciclomotor, animado por esse embate, começou da deslizar pelo chão, indo embater nas pernas do ofendido J, que se encontrava a discutir com a L, a curta distância do local onde se encontrava caído o ciclomotor.
38. Em consequência desse embate, o ofendido J caiu ao chão, batendo com a cabeça no pavimento.
39. Verifica-se que a vítima, depois do acidente, foi observada no Serviço de Urgências do Centro Hospitalar Conde de S. Januário pelas 5:28 horas, tendo aí sido submetido a um exame de diagnóstico de trauma na cabeça.
40. Foi-lhe indicada a necessidade de realizar exames complementares.
41. No entanto, a vítima recusou a realização desses exames e prescindiu de tratamento médico, pelo que abandonou o referido Centro Hospitalar.
42. Acontece que a saúde da vítima piorou e familiares e amigos seus trouxeram-no de novo ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário, sendo, aí, novamente, observado pelas 8:15, quase 3 horas depois da primeira observação.
43. Resulta pois à evidência que a vítima recusou o tratamento médico que lhe foi recomendado, negligenciado os cuidados necessários à sua saúde.
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Mais se provou :
44. O 1° arguido é reformado, mas eventualmente, presta trabalhos administrativos numa companhia de gestão, auferindo um salário de mil e tal Patacas. A sua mulher faleceu em 2004, tem 3 filhos, e vive agora com duas filhas, sendo uma funcionária pública e a outra funcionária de uma companhia de seguros.
Recebe uma mesada de cerca de MüP$6.000,00, tem um filho que abre restaurante em Alemanha. O arguido tem como habilitações académica o 7° ano do ensino secundário. Neste momento, o olho esquerdo do arguido possui uma visão inferior a 10%. No ano passado o arguido (ano 2006) foi internado no hospital para fazer uma operação, este ano (ano 2007), foi internado por motivo de apoplexia.”

Seguidamente, e quanto a factos não provados, consignou que:
“Não ficaram provados os restantes factos constantes da acusação, requerimentos dos pedidos de indemnização cível e das contestações, nomeadamente:
- A morte do ofendido foi devido ao incumprimento de uma norma estradal por parte do 1° arguido.
- A morte foi resultado direito das lesões causados pelo acidente”; (cfr., fls. 967 a 971-v)

Do direito

3. Feito que está o relatório que antecede, e transcrita a factualidade em que assenta a decisão recorrida, apreciemos.

Dois são os recursos interpostos nos presentes autos, tendo ambos como objecto o segmento decisório que absolveu os demandados civis dos pedidos de indemnização deduzidos pelos atrás identificados demandantes.

No recurso dos demandantes G, H e I, imputa-se ao Acórdão recorrido os vícios de:
– “nulidade prevista no art. 360º, al. a) com referência ao art. 355º, nº 2, ambos do C.P.P.M.”;
– “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável de fundamentação”; e,
– “violação dos artºs 477°, 488º, 489º e 557º do C.C.M.”.

Por sua vez, no recurso apresentado por D, assaca-se ao mesmo veredicto recorrido o vício de “erro notório na apreciação da prova”.

Passa-se a apreciar, começando-se pelo (1º) recurso de G, H e I.

3.1. Desde já, consigna-se que não se irá conhecer da imputada “violação aos art. 477º, 488º, 489º, 557º do C.C.M.”, pois que observado não foi o previsto no art. 402º, nº 2 do C.P.P.M..

— Quanto à “nulidade prevista no art. 360º, al. a) do C.P.P.M.”, improcede o recurso.

De facto, basta uma leitura ao Acórdão recorrido para se concluir que está o mesmo fundamentado.

Poderão os recorrentes não concordar com a exposição que aí é feita, porém, tal não significa que não tenha o Colectivo a quo acatado o estatuído no art. 355º, nº 2 do C.P.P.M..

Aliás, como repetidamente temos afirmado, em sede de fundamentação, há que afastar “perspectivas maximalistas”.

Nesta conformidade, vejamos agora dos vícios da decisão da matéria de facto.

— Da “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

Como sabido é, o vício em causa ocorre quando o Tribunal não investiga toda a “matéria objecto do processo”.

No presente caso, não foi o que sucedeu, pois que o Colectivo do T.J.B. investigou e emitiu pronúncia sobre toda a dita matéria, declarando quais os factos que considerava provados e quais os que assim não ficaram, fundamentando, adequadamente, a sua decisão.

Assim, e ociosas nos parecendo outras considerações, inexiste o imputado vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”.

— Resta apreciar, no âmbito do presente recurso, os vícios de “erro notório na apreciação da prova” e “contradição insanável de fundamentação”.

Afigura-se-nos que evidente é a alegada “contradição”, passando-se a expor este nosso ponto de vista.

Ora, “Só existe a contradição insanável quando se verifica a incompatibilidade entre os factos dados como provados, bem como entre os factos dados como provados e os não provados, como entre a fundamentação probatória da matéria de facto”, sendo ainda de atentar que “a incompatibilidade entre os factos dados como provados e os dados como não provados deve ser absoluta e evidente, em face ao padrão de um homem médio, de maneira que impede o Tribunal da qualificação jurídica dos mesmos ou seja da decisão da causa”; (cfr., v.g., o Ac. de 20.3.2003, Proc. n° 8/2003).

E como se deixou dito, cremos que existe “contradição”, dado que, por um lado, deu-se como “provado” que:
– “o ciclomotor CM-XXXXX embateu no ofendido J, fazendo-o cair ao chão e em estado de coma”;
– “posteriormente, o ofendido foi (...) ao Centro Hospitalar Conde de S. Januário para receber tratamento e, pelas 10H30 do dia 7 de Agosto de 2003, faleceu em consequência das lesões sofridas”; e que,
– “Realizou a autópsia que, conclui-se a morte do ofendido foi causado pela actuação de instrumento contundente que provocou lesões cranianas graves, correspondente causada por um acidente de viação”.

Dando-se, simultaneamente, como “não provado” que:
- “A morte do ofendido foi devido ao incumprimento de uma norma estradal por parte do 1° arguido”; e que,
- “A morte foi resultado directo das lesões causados pelo acidente.”

De facto, tendo o Colectivo a quo dado como “provado” que o ofendido “faleceu em consequência das lesões sofridas” (com o acidente), e que “a morte do ofendido resultou de lesões cranianas graves, causadas por um acidente de viação”, não podia dar como “não provado” que “A morte do ofendido foi devido ao incumprimento de uma norma estradal por parte do 1° arguido” e que “A morte foi resultado directo das lesões causados pelo acidente.”

Reconhece-se que no novo julgamento, reduziu o Colectivo a quo a matéria que estava em contradição e que levou este T.S.I. a ordenar o reenvio dos autos através do Acórdão de 26.06.2008, atrás citado.

Porém, ter-lhe-à – quiçá – escapado a assinalada contradição, e, em face da mesma, outra solução não nos parece que exista que não seja a prevista no art. 418º do C.P.P.M..

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, julga-se procedente o recurso dos demandantes G, H e I, ordenando-se o reenvio dos presentes autos para novo julgamento, (e ficando assim prejudicada a apreciação do recurso apresentado por D).

Custas pelos recorridos

Macau, aos 29 de Julho de 2010

(Relator)
José Maria Dias Azedo


(Primeiro Juiz-Adjunto)
Chan Kuong Seng


(Segundo Juiz-Adjunto)
João A. G. Gil de Oliveira
Proc. 300/2010 Pág. 28

Proc. 300/2010 Pág. 1