打印全文
    Processo n.º 2/2010
    (Recurso Penal)
  
  Data: 2/Dezembro/2010
    
  Assuntos :
- Pronúncia; indícios do crime de ofensas corporais por negligência do dono de um cão

Sumário :

    Será de pronunciar o arguido por um crime de ofensas corporais por negligência cometidas na dona de um cachorro, se o dono de um pastor alemão soltou o cão que de imediato empreendeu um ataque sobre o cachorro, na altura, passeado na rua, tendo sobrevindo lesões na pessoa da ofendida.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira


Processo n.º 2/2010
(Recurso Penal)

Data: 2/Dezembro/2010

Recorrente: A

Objecto do Recurso: Despacho de não pronúncia

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I – RELATÓRIO
    A, assistente nos autos à margem referenciados, não se conformando com o despacho de fls. 170 a 173 verso dos presentes autos, datado de 9 de Novembro de 2009, na parte que decidiu pela não pronúncia do arguido, como autor material, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, vem recorrer, alegando em sede de conclusões:
    Encerrado o debate instrutório, foi proferido pelo Mmo. Juiz a quo um despacho, constante de fls. 171 e ss., que pronunciou o arguido B, pela autoria material, e na forma consumada, de um crime de dano (com dolo eventual), p. e p. pelo artigo 206°, n.º 1, do CP, pois considerou existirem muitos indícios suficientes nos autos de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena por aquele crime, aceitando assim, desta forma, quanto a este crime, as acusações deduzidas pelo Ministério Público ("MP") (vide fls. 47 a 48) e pela assistente (vide fls. 94 a 106), e, consequentemente, submetendo o arguido a julgamento.
    Sucede que, no mesmo despacho, foi igualmente decidido pelo Mmo. Juiz a quo não pronunciar o mesmo arguido pela prática de um crime de ofensa à integridade física por negligência contra a aqui Recorrente, p. e p. pelo artigo 142°, n.º 1 do CP, nos termos do disposto no artigo 289, n.º 2, 28 parte do CPP, por, no entendimento plasmando nesse despacho, não estarem recolhidos nos autos indícios suficientes da prática desse crime pelo arguido, do qual vinha o mesmo também acusado pelo MP (vide fls. 47 a 48) e pela assistente, ora Recorrente (vide fls. 94 a 106), decidindo, assim, não o submeter a julgamento quanto a esse crime.
    Ora, a aqui Recorrente não se conforma com o supra referido despacho, na parte que decidiu pela não pronúncia do arguido proferido pelo Mmo. Juiz a quo, pelo que dele recorreu, nessa parte, que constitui assim o objecto do recurso a que se refere esta motivação.
    Com efeito, salvo o devido respeito, o Mmo. Juiz, no despacho em causa, na parte recorrida, não procedeu a uma leitura integrada de toda a prova que foi recolhida nos autos e que revela indícios mais do que suficientes da prática pelo arguido., em autoria material, na forma consumada, e em concurso com o crime de dano pelo qual foi já pronunciado, de um crime de ofensas à integridade física por negligência p. e p. pelo artigo 142°, n.º 1, do CP, contra a aqui Recorrente.
    Dispõe o artigo 265°, n.º 2, aplicável ex vi o artigo 289°, n.º 3, ambos do CPP, e portanto aplicável assim à decisão instrutória, que existem suficientes indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou medida de segurança.
    "Os indícios suficientes são, como têm entendido os tribunais de Macau, “os sinais de ocorrência de um determinado facto, donde se pode formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que o facto foi praticado pelo arguido. Esta possibilidade razoável é uma possibilidade mais positiva que negativa, ou seja, a partir das provas recolhidas se forma a convicção de que é mais provável que o arguido tenha praticado o facto do que não o tenha praticado. Aqui não se exige uma certeza ou verdade como no julgamento criminal” (Ac. do TUI, de 27-4-2000, proc. n° 6/2000, entre os outros)" (vide Acórdão do TSI, de 2003/07/10, processo n.º 141/2003, in http://www.court.gov.mo/p/pdefault.htm).
    Ora, em relação ao crime ora em causa, o artigo 142°, n.º 1, do CP, estipula que, pratica, um crime de ofensa à integridade física por negligência, "quem, por negligência, ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa (...)", sendo que, relativamente a este tipo de crime, pressupõe-se um resultado, uma lesão, uma ofensa, a outrem, lesão essa da integridade física que terá de ser objectivamente imputada à conduta (acção ou omissão) do agente, o que supõe - sendo um comportamento negligente conforme o dispõe o artigo 14° do CP, - a violação de um dever objectivo de cuidado.
    E, dispõe o artigo 268°, n.º 1 do CPP, que a instrução« visa a comprovação judicial da decisão de deduzir acusação ou de arquivar o inquérito, em ordem a submeter ou não a causa a julgamento, pelo que, neste caso, estava, assim, confinada à comprovação da existência de terem (ou não) sido recolhidos indícios suficientes do crime de que vem o arguido acusado.
    Posto isto, verifica-se que a questão central do presente recurso é a de saber se os elementos fácticos constantes dos autos impunham uma conclusão diferente daquela que dela extraiu o Mmo Juiz a quo no despacho recorrido, ou seja, se se pode, razoavelmente, imputar indiciariamente ao arguido a autoria de um crime de ofensa à integridade física por negligência.
    Ora, quer o MP, quer a Recorrente, atentas as provas indiciárias recolhidas nos autos, sempre sustentaram, nas respectivas acusações que deduziram contra o mesmo, quanto ao preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência que:
    - no dia 15/10/2007, e enquanto a assistente (ora Recorrente) tentava separar o ataque do cão do arguido à sua cadela, foi também ferida na sua nádega esquerda por um ataque do cão do arguido;
    - desse incidente resultou uma ferida provocada pelo cão do arguido, para a qual teve de receber tratamento e que necessitou de 3 dias para ficar curada.
    - o arguido sabia e estava consciente que, ao abrir a porta da sua residência, o seu cão podia sair para rua e atacar quaisquer pessoas ou bens que aí se encontrassem, como efectivamente veio a suceder, não tendo realizado qualquer diligência preventiva para evitar as consequências supra expostas; e
    em resultado da falta de cuidado com o seu cão, e por causa disso, a ofendida foi também atacada, sofrendo, em consequência, uma ferida provocada pelo cão do arguido.
    Assim, em face dos factos supra expostos, quer o MP, quer a Recorrente, concluíram pela imputação ao arguido - em concurso com o crime de dano supra referido - da prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência, p. e p. pelo disposto no artigo 142°, n.º 1, do CP contra a Recorrente (cfr. acusação deduzida pelo MP a fls. 47 e 48, e a acusação deduzida pela assistente a fls. 94 a 106 dos autos).
    Ora, para suporte das respectivas acusações, foram tidos em conta os seguintes elementos constantes dos autos e que constituem, portanto, provas indiciárias da prática do citado crime por parte do arguido:
    - a queixa-crime apresentada pela própria Recorrente, no dia 17/10/2007 (dois dias após o factos em crise), junto da PSP de Coloane, e onde a mesma declara ter sido atacada pelo cão do arguido, quando o tentava separar da sua cadela, tendo em consequência desse acto sofrido feridas no seu corpo (cfr. auto da PSP de Coloane n.º 613/2007 a fls. 4 dos autos);
    - um relatório de exame directo, realizado no dia 17/10/2007, no Centro Hospitalar Conde de São Januário em Macau, e onde ficou assente, a existência de feridas na nádega esquerda e na mão direita da Recorrente, em virtude de ataque de cão (cfr. relatório de exame directo de fls. 20 dos autos);
    - diversas fotografias da Recorrente onde constavam as marcas da ferida provocada pelo cão do arguido na sua nádega esquerda (cfr. fotografias juntas a fls. 27, 105 e 106 dos autos);
    - um (parecer da perícia médico legal efectuada à Recorrente no dia 30/10/2007 e que confirmou, ipsis verbís, o teor do relatório de exame directo realizado à Recorrente no dia 17/10/2009 (cfr. fls. 29 dos autos); e
    - as declarações complementares da Recorrente junto da PSP de Coloane, no dia 04/11/2007, e em que a mesma, em complemento das anteriores declarações prestadas, vem esclarecer, a pedido da própria PSP, qual a causa de cada uma das feridas que sofreu no dia 15/10/2009 (cfr. auto da PSP de Coloane n.º 651/2007 a fls. 25 dos autos)
    Sucede que, finda a fase de instrução requerida pelo aqui arguido, e após a realização de diversos actos de instrução complementares, o Mmo. Juiz a quo concluiu não existirem indícios suficientes para a pronúncia do arguido pela prática do crime de ofensa à integridade física por negligência contra a aqui Recorrente.
    Para tal, sustentou o Mmo. Juiz a quo, no seu despacho de não pronúncia, que existiam muitas dúvidas em relação à matéria probatória indiciariamente trazida ao autos, e que em sínteses, são as seguintes: (cfr. despacho de pronúncia de fls. 170 a 173 verso):
    - apesar de se verificarem indícios de que a assistente teve lesões após o ataque do cão do arguido, não se conseguiram apurar os motivos dessas lesões, nem se as mesmas foram provocadas pelo cão do arguido;
    - não houve nenhuma testemunha que comprovasse que as lesões foram provocadas pelo cão do arguido;
    - a assistente não fez queixa oportunamente à polícia;
    - a assistente não referiu, imediatamente, ao arguido que também tinha sido atacada pelo seu cão;
    - no dia seguinte, a 16/10/2007, quando a assistente foi à polícia apresentar queixa pelo ataque do cão do arguido à sua cadela, não mencionou que tinha sido atacada por dois cães no dia 15/10/2007.
    - essa referência apenas aconteceu no dia 4/11/2007, em depoimento complementar à PSP, onde a assistente referiu que tinha sido atacada, no dia 15/10/2007, por dois cães ao mesmo tempo, sendo um deles o cão do arguido e o outro um cão pertencente a um proprietário residente na Estrada da Aldeia, n.º 1064;
    - e da análise das fotos das lesões da assistente, o depoimento do perito médico legal e, do médico do Serviço de Urgência apenas confirmaram que as lesões da assistente foram causadas por um objecto afiado, ou semelhante, mas não confirmaram que essas lesões tenham sido causadas por animais ou por objectos.
    Ora, apesar de ter sido apenas a Recorrente a sustentar sempre ter visto (e sofrido) a consumação da lesão provocada pelo cão do arguido à Recorrente, de onde resultou uma lesão no seu corpo, foi, contrariamente ao que resulta do despacho recorrido, recolhido diverso material probatório nos presentes autos, de onde resulta, de forma mais do que suficiente, a possibilidade razoável de a ferida provocada na nádega da Recorrente ter sido causada pelo cão do arguido, durante a tentativa desta em separar os ataques do cão do arguido à sua cadela e, assim, de ao arguido vir a ser aplicada, por força desses indícios, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, único pressuposto julgamento, uma pena ou medida de segurança, único pressuposto exigido pelos artigos 265°, n.º 2, aplicável in casu por força da remissão expressa do artigo 289°, n.º 3, e 268°, n.º 1, todo do CPC, para que o arguido fosse pronunciado.
    Desde logo constam dos autos as declarações prestadas pela própria Recorrente perante a PSP de Coloane, onde, por mais do que uma vez, afirmou que foi mordida pelo cão do arguido na sua nádega esquerda (cfr. autos de fls. 5, 25 e 31 dos autos), que não podem ser levianamente postas em causa pelo despacho recorrido só porque mais ninguém viu tal facto a ocorrer.
    Acresece, porém, que este facto (de a lesão ter sido provocada pelo cão do arguido) foi confirmado também pelas declarações da testemunha ouvida nos autos, Sr. XXX, que confirmou (a) ter visto as lesões (feridas) da Recorrente, no dia dos factos, depois da mesma ter regressado do veterinário com a sua cadela, e que (b) a Recorrente, nessa altura, a informou que tais lesões foram provocadas pelo cão do arguido. (cfr. auto de declarações de fls. 165 a 166 dos autos).
    Foi ainda confirmado pelos elementos que a seguir se referirão.
    Não colhe obviamente a alusão feita no despacho recorrido que a queixa da Recorrente não foi efectuada oportunamente, uma vez que, por uma lado, a Recorrente, nos termos do artigo 107° do CP, tem um prazo de 6 meses a contar da data em que tiver conhecimento do facto para efectuar a sua queixa, e, por outro, não se pode obviamente extrair que por o ter feito dois dias após os factos ocorridos tal corresponderá a um indício de que a Recorrente esteja a mentir (!!!!!), ou até que não sofreu ataque por parte do cão do arguido.
    Por outro lado, ainda que fosse verdade que a ofendida não informou imediatamente o arguido das leões provocadas pelo seu cão (o que só resulta das declarações do arguido em sede de instrução, onde o mesmo procura esquivar-se à sua responsabilidade e nem tem sequer de prestar juramento), não é admissível daí extrair qualquer dúvida quanto aos indícios de a lesão ter sido provocada pelo cão do arguido durante o ataque em questão, tanto mais que a principal preocupação da Recorrente, naquele momento, era obviamente a de salvar a vida da sua cadela, totalmente desfigurada e estraçalhada em resultado dos raivosos e ferozes ataques do cão do arguido, tendo apenas dedicado atenção às feridas que tinha no corpo em momento posterior.
    Por último, e salvo o devido respeito, também não se afigura como lógica a conclusão do Mmo. Juiz a quo de que o facto de só a 4/11/2007 constar das declarações complementares prestadas pela Recorrente à PSP, a referência que a mesma tinha sido atacada, no dia 15/10/2007, por dois cães ao mesmo tempo - um deles o cão do arguido, e o causador da ferida na nádega direita, e um outro um cão, pertencente a um proprietário residente na Estrada da XXX, o causador de uma ferida na sua mão direita -, seja revelador da falta de indícios do crime em causa, pois importante é, e suficiente para a existência de indícios do crime em questão, que a aqui Recorrente as tenhas prestado sendo, salvo o devido respeito, despropositada, e sem qualquer sentido, qualquer outra extrapolação que das mesmas se faça quanto ao tempo em que tais declarações foram prestadas.
    Consta também do presentes autos, como indiciador bastante para a pronúncia do arguido pelo crime do artigo 142°, n.º 1 do CP, quer um relatório de exame directo feito à Recorrente - e que, de forma clara e inequívoca, deu conta de lesões no corpo desta, designadamente na sua nádega esquerda, em resultado de mordida de um cão -, quer ainda de uma perícia médica legal que posteriormente confirmou integralmente o teor do relatório que foi efectuado (cfr. fls. 20 e 29 dos autos). E o certo é que, contrariamente ao que se sustenta no despacho recorrido, os depoimentos que os dois médicos, por aqueles responsáveis, prestaram em sede de instrução não põem obviamente em crise os indícios de que as lesões foram provocadas por um cão pois aí esses confirmaram que as lesões foram provocadas por algo afiado e que foi declarado na altura do exame e, assim, logo a seguir ao ocorrido, pela Recorrente que o foram por um cão (cfr. auto das declarações dos supra referidos médicos a fls. 137 e 139 dos autos).
    Por fim, convém ainda realçar que nos autos ficou ainda indiciariamente provado - designadamente no que toca a para prova indiciária recolhida do crime de dano - que, mal a Recorrente se deparou com o ataque do cão do arguido à sua cadela, esta tentou arrastá-la e separá-los, na tentativa de cessar os ataques, pelo que, é evidente que para o fazer, teve necessidade de se colocar no meio do dois cães, daí resultando, como consequência lógica, de acordo com as regras da experiência comum, a possibilidade mais do que razoável de a Recorrente ter sido mordida pelo cão do arguido, que se encontrava a morder a cadela.
    Deste modo, a fundamentação do despacho recorrido não poderia conduzir à não pronúncia do arguido pelo crime de ofensa à integridade física da Recorrente, por negligência, já que os motivos para tal despacho, ou seja, as dúvidas relativas aos elementos recolhidos referidas no mesmo em nada afectam a existência de elementos mais do que suficientes nos autos reveladores de indícios de onde resulta a possibilidade mais do que razoável de o arguido ter cometido o referido crime e, nomeadamente de as lesões da Recorrente na sua nádega terem sido provocadas pelo cão do arguido.
    Pelo que, o despacho, na parte recorrida, padece, se não mesmo de contradição insanável da fundamentação e erro notório na apreciação da prova, pelo menos de um deficiente interpretação e aplicação das normas legais aplicáveis, nomeadamente as dos artigos 142°, n.º 1, e 14° do CP único pressuposto exigido pelos artigos 265°, n.º 1, n.º 2, este aplicável in casu por força da remissão expressa do artigo 289°, n.º 3, 289°, n.º 2, e 268°, n.º 1, todo do CPC.
    Com efeito, os indícios recolhidos nos autos são mais do que suficientes para concluir pela possibilidade razoável de as feridas sofridas pela Recorrente na sua nádega terem sido causadas pelo cão do arguido, no âmbito do ataque deste à sua cadela e no decorrer da separação desse cão da sua cadela, e, assim, de o arguido ter praticado um crime de ofensas à integridade física contra a Recorrente, por negligência, p. e p. pelo artigo 142°, n.º 1, do CP e, assim, de ao arguido vir a ser aplicada, por força desses indícios, em julgamento, uma pena ou medida de segurança, único pressuposto exigido pelos artigos 265°, n.º 2, aplicável ex vi o artigo 289°, n.º 3, e 268°, n.º 1, todo do CPC, para que o arguido fosse pronunciado nos termos do artigo 289°, n.º 2 do mesmo diploma.
    Na verdade, se se tiver em conta:.
    - as diversas declarações da Recorrente à PSP de Coloane, quer quanto à descrição dos factos quer quanto à origem das lesões, de onde resulta que o arguido deixou sair o seu cão sem trela ou açaime para a rua, que o mesmo atacou ferozmente a cadela da Recorrente, que esta tentou debelar o ataque, tentando separá-lo da sua cadela, que o arguido nada fez para prevenir ou cessar o ataque, limitando-se a dar palavras de ordem ao seu cão, e que o cão do arguido provocou à Recorrente uma ferida na nádega esquerda (cfr. fls. 5, 25 e 31 dos autos);
    - o relatório de exame directo, realizado no dia 17/10/2007, no Centro Hospitalar Conde de São Januário em Macau, o parecer da perícia médico legal efectuada à Recorrente no dia 30/10/2007 e as declarações dos médicos, de onde resulta que a Recorrente foi ferida na sua nádega por algo afiado, que a Recorrente afirmou na altura dos exames, ter sido causado por um cão (cfr. fls. 20, 29, 137 e 139 do autos); e
    - as diversas fotografias da cadela da recorrente, de onde constam, mesmo após intervenção cirúrgica, as marcas e lesões sofridas pela cadela em consequência do ataque do cão do arguido, bem reveladoras da ferocidade do ataque e da perigosidade do cão do arguido (cfr. fls. 10, 100 a 104 dos autos),
    - as diversas fotografias da Recorrente onde constam as marcas da ferida que sofreu na sua nádega esquerda (cfr. fotografias juntas a fls. 27, 105 e 106 dos autos);
    - as diversas declarações do próprio arguido, de onde, não obstante as inúmeras contradições em que entra, resulta que este deixou sair o seu cão sem trela ou açaime para a rua, que o mesmo atacou a cadela da Recorrente e que esta tentou debelar o ataque, tentando separá-lo da sua cadela (cfr. 4, 15, 22, 37 e ss. dos autos);
    - o depoimento da empregada doméstica XXX que afirmou ter visto o ataque do cão do arguido à cadela, ter visto as lesões no corpo da Recorrente após o ataque, que afirmou que, nessa altura, a Recorrente lhe afirmou terem sido provocadas pelo cão do arguido e, bem assim, que afirmou também já ter sido vítima de ataques do mesmo cão no passado e que esse mesmo cão já havia perpetrado outros ataques a pessoas e cães - o que é bem revelador da perigosidade do cão do arguido e da absoluta falta de cuidado da conduta deste relativamente ao mesmo cão - (cfr. fls. 165 a 166 dos autos);
    - o relatório de uma queixa crime de 7/11/2007 de um ataque de dois cães do arguido a outra pessoa, dos quais resultaram ferimentos numa mão - bem revelador da perigosidade dos cães do arguido e da absoluta falta de cuidado do arguido relativamente aos mesmos e ao perigo que representam para outras pessoas e bens (cfr. fls. 33 dos autos);
    há que concluir que, de todos os elementos recolhidos nos autos, ou seja, quer a prova indiciária recolhida em sede de inquérito e posteriormente quer a resultante das diligência instrutórias que se realizaram, resulta confirmada a existência de indícios suficientes nos autos (ou sejam, indícios de onde resulta a possibilidade razoável) de o arguido ter praticado aquele crime de que vem acusado, e, assim, pronunciá-lo, nos termos 289°, n.º 2, do CPP.
    De facto, desses elementos recolhidos nos autos resulta a possibilidade razoável de ter sucedido, em síntese, o relatado nas acusações do MP e da Recorrente.
    Destarte, e dando-se por reproduzidos todos os argumentos invocados, resulta claro, evidente e lógico que, de toda a prova indiciária recolhida durante a fase de inquérito e de instrução - o Mmo Juiz a quo, salvo o devido respeito, não procedeu a uma leitura integrada e ampla, da prova que foi recolhida nos autos, violando até as próprias finalidades da instrução, pois, nessa fase processual, não se exige um certeza ou verdade da existência dos factos que são alegados ou recolhidos como sucede na fase de julgamento, mas tão só, uma possibilidade razoável de que o os mesmos existem, e são suficientes para o preenchido o tipo legal de crime pelo qual o mesmo vem acusado, tal e qual havia sido sustentado pelo MP e pela Recorrente nas acusação que, respectivamente, deduziram contra o arguido.
    Assim, com a decisão de não pronúncia, o despacho de fls. 170 a 173 verso do Mmo Juiz a quo, violou, o disposto nos artigos 289°, n.º 2, 265°, n.º 2, e bem assim, o disposto artigo 268° todos CPP, consequentemente, violando o disposto conjugadamente nos artigos 142º, n.º 1, 14°, do CP. 265°, n.º 1, n.º 2, este aplicável ex vi o artigo 289°, n.º 3, 289°, n.º 2, e 268°, n.º 1, todo do CPC.
    Termos em que, por todo o exposto, deverá ser dado provimento ao presente recurso, e, consequentemente, revogada a decisão contida no despacho de fls. 170 a 173 verso dos presentes autos, no tocante à não pronúncia do arguido, e, em consequência, que o mesmo seja substituído por outro que pronuncie o mesmo arguido, pelo factos constantes da acusação do MP e da aqui Recorrente (cfr. fls. 94 a 106 dos autos), submetendo-o a julgamento, pelo prática de um crime, na forma consumada, de ofensa à integridade física por negligência, contra a aqui Recorrente, crime esse p. e p. pelo artigo 142°, n.º 1 do CP.
    Termos em que requer seja dado provimento ao presente recurso, e, consequentemente, revogada a decisão contida no despacho de fls. 170 a 173 verso dos presentes autos, no tocante à não pronúncia do arguido, e, em consequência, que o mesmo seja substituído por outro que pronuncie o mesmo arguido, pelo factos constantes da acusação da aqui Recorrente, submetendo-o a julgamento, pelo prática de um crime, na forma consumada, de ofensa à integridade física por negligência, contra a aqui recorrente, crime esse p. e p. pelo artigo 142°, n.º 1 do CP.

Responde doutamente o Digno Magistrado do MP, dizendo no essencial:
    O M.P. e a assistente (recorrente), atentas as provas indiciárias recolhidas nos autos, sustentaram, nas respectivas acusações que deduziram contra o arguido, quanto ao preenchimento dos elementos objectivo e subjectivo do tipo de crime de ofensa à integridade física por negligência que:
    1) no dia de ocorrência (15/10/2007), quando a assistente (recorrente) tentava separar o ataque do cão do arguido à sua cadela, foi também ferida na sua nádega esquerda por um ataque do cão do arguido;
    2) desse incidente resultou uma ferida provocada pelo cão do arguido, para a qual teve de receber tratamento e que necessitou de 3 dias para ficar curada;
    3) o arguido sabia e estava consciente que, ao abrir a porta da sua residência, o seu cão podia sair para rua e atacar quaisquer pessoas ou bens que aí se concontrassem, como efectivamente veio a suceder, não tendo realizado qualquer diligência preventiva para evitar as consequências supra expostas; e
    4) em resultado da falta de cuidado com o seu cão, e por causa disso, a ofendida foi também atacada, sofrendo, em consequência, uma ferida provocada pelo cão do arguido.
    Assim, em face dos factos supra expostos, quer o M.P., quer a Recorrente, concluíram pela imputação ao arguido - em concurso com o crime dE1 dano supra referido- da prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência p. e p pelo disposto no artigo 142°, n° 1 do C. P. contra a Recorrente.
    
    Pelo exposto, em sua opinião, deve ser dado provimento do recurso requerido pela assistente (recorrente), e consequentemente, revogada a decisão contida no douto despacho supra citado, no tocante à não pronúncia do arguido, e que o mesmo seja substituído por outro que pronuncie o mesmo arguido, pelos factos constantes da acusação do M.P. e da Recorrente, submetendo-o a julgamento, pela prática de um crime, na forma consumada, de ofensa à integridade física por negligência, contra a assistente (recorrente) p. e p. pelo artigo 142°, n° 1 do C. P..
    
    B, arguido nos autos e neles melhor identificado, tendo sido notificado das alegações de recurso apresentadas pela assistente, ora recorrente, vem apresentar a sua resposta, dizendo, no essencial:
    Para que fosse proferido despacho de pronúncia do arguido necessário seria que o Juiz de instrução formasse a sua convicção no sentido de ser mais provável que o arguido tenha cometido o crime do que o não tenha cometido.
    Os elementos fácticos necessários para se formar a convicção sobre a existência de indícios da prática do crime de dano em nada se relacionam com os necessários para se verificarem indícios da prática do crime de ofensas à integridade física por negligência.
    O facto de o Tribunal a quo ter considerado que o arguido poderá vir a ser responsável criminalmente pelo crime de dano não significa que deva o mesmo ser responsável pelas lesões que a recorrente alega ter tido na sequência do ataque do cão do arguido à cadela da recorrente.
    Efectivamente, importa ter em consideração que durante o inquérito foi ouvida a ofendida, que posteriormente se constituiu assistente, o arguido, e durante a instrução foram ouvidas todas as testemunhas que podiam depor sobre o incidente que envolveu os cães do arguido e da assistente.
    E da prova produzida em sede de inquérito e instrução não resultaram indícios de facto que permitissem concluir ser o arguido responsável, em termos criminais, por ser dono do cão, pelas lesões que a assistente diz ter tido na sequência do incidente ocorrido no dia 15 de Outubro de 2007.
    Efectivamente, a prova produzida (e está-se em crer que outra não poderia ter sido produzida - pois foram ouvidas as testemunhas oculares e médicos que se podiam pronunciar sobre o assunto) não permite concluir que as lesões foram provocadas por um cão, e muito menos, pelo cão do arguido.
    Antes de mais, nenhuma testemunha referiu ter visto o cão do arguido a provocar quaisquer lesões na assistente.
    Por outro lado, se a assistente sabia ter sido o cão do arguido a provocar-lhe aquelas lesões, nada referiu ao arguido, ou às demais pessoas que presenciaram o incidente, naquele momento - o que teria sido uma reacção normal da parte da assistente e que não aconteceu.
    Quanto ao facto alegado pela recorrente de o depoimento da testemunha XXX vir confirmar que a lesão da assistente foi provocada pelo cão do arguido, cumpre salientar que, contrariamente ao que a recorrente invocou nas alegações de recurso, a testemunha em momento algum da inquirição disse ter visto as feridas da recorrente: a referida testemunha apenas ouviu a assistente a dizer que havia sido ferida nas costas pelo cão.
    Ora, a este respeito, é de referir que este depoimento de ouvir dizer deverá ser valorado com certa parcimónia, tendo em consideração não só o facto de aquela senhora continuar a ser empregada doméstica da assistente, bem como o facto de a pessoa a quem a testemunha ouviu dizer ser a ofendida, ora recorrente; particularmente interessada em fazer prova do facto de ter sido agredida pelo cão do arguido.
    Destes factos não decorre ter sido o cão do arguido a provocar tal lesão. Até porque dos autos decorre que, no momento da ocorrência, não estavam apenas o cão do arguido e a cadela da recorrente, mas também um terceiro cão que também terá participado naquele incidente.
    Quanto ao fundamento invocado no despacho de não-pronúncia do arguido, atinente ao facto de o direito de queixa ter sido exercido em momento distinto da queixa apresentada em relação ao crime de dano, e rebatido nas alegações de recurso, importa referir o seguinte:
    É óbvio que tratando-se o crime de ofensas à integridade física por negligência de um crime semi-público, o direito de queixa apenas se extingue no prazo de 6 meses a contar da data em que o titular toma conhecimento do facto e do seu autor.
    No entanto, o facto de a ofendida nada ter mencionado em relação às lesões alegadamente provocadas pelo cão do arguido quando apresentou queixa em relação ao facto de a sua cadela ter sido atacada pelo cão do arguido, permitirá concluir, tal como concluiu a Mma. Juiz de Instrução, em sede de apuramento de indícios, que, pelo menos, dúvidas a assistente terá tido em relação à origem e autor das lesões que o seu corpo apresentava, caso contrário teria apresentado queixa, em simultâneo, quer em relação ao crime de dano quer em relação ao crime de ofensas à integridade física por negligência.
    E se dúvidas a assistente teve no momento em que foi apresentar queixa contra o arguido, não tendo mencionado o facto de o cão do arguido ter também causado as lesões do corpo que a assistente já apresentava, segundo a versão que apresenta, também se revela, pelo menos, estranho que só mais tarde se tenha recordado de ter sido o cão do arguido o agente causador daquelas lesões...
    Quanto aos relatórios médicos e depoimentos prestados pelos médicos, nada decorre dos mesmos que permita imputar as lesões a uma mordedura de um cão.
    Dos exames levados a cabo nada permite concluir terem as lesões sido provocadas pelo cão do arguido ou por cão de porte idêntico.
    Acrescerá ainda que não deve ser valorado o que os médicos referiram em relação ao que lhes foi dito pela assistente. O que importa é, salvo melhor opinião, o depoimento dos médicos em relação ao que aqueles puderam observar na assistente, tendo em consideração o que viram e as conclusões a que chegaram depois da observação clínica da assistente. E essas nada acrescentam sobre o que a assistente pretende ver provado.
    Ora, no que diz respeito ao exame directo junto aos autos a fls. 20, destaca-se que do mesmo nada se poderá concluir pelo facto de não ser perceptível já que foi redigido por médico cuja caligrafia é praticamente ilegível; dos esclarecimentos prestados pelo médico decorre apenas o que a assistente lhe disse e que não poderia concluir que objecto ou animal teria provocado aquela lesão.
    Quanto à análise médica realizada no dia 30 de Outubro de 2007, cumpre referir que, atentos os esclarecimentos prestados pelo médico, já na fase da instrução, a assistente não compareceu ao segundo parecer médico-legal, e como tal as observações nele contidas foram feitas com base no que constava do exame anterior bem como em fotografias e que apenas podia confirmar que as lesões teriam sido provocadas por um instrumento contundente (e não, como é alegado pela recorrente, por um objecto afiado ou semelhante).
    Por conseguinte, está-se em crer que os exames e depoimentos prestados pelos médicos responsáveis pelos relatórios juntos aos autos em nada podiam contribuir para a formação da convicção no sentido de existirem indícios de que as lesões da assistente foram causadas por mordeduras de um cão.
    Por outro lado, a recorrente invocou ainda que ter sido ela quem tentou afastar os cães e cessar o ataque e que tal facto já era suficiente para indiciar que a recorrente teria sido mordida pelo cão do arguido.
    Porém, cremos que o mero facto de assistente se ter colocado entre os cães não permite retirar a ilação de ter sido o cão do arguido a provocar as feridas na assistente, até porque, tal como já se referiu supra, dos autos resulta que naquele momento se encontrava presente no local outro cão... Certo é que ninguém, além da assistente, viu o que terá originado aquelas lesões e se as mesmas foram efectivamente causadas durante aquele incidente.
    A recorrente ainda refere que deverá ser tido em conta um relatório de uma queixa-crime de 7 de Novembro de 2008 de um ataque de dois cães do arguido a outra pessoa.
    Quanto a esta alusão, cumpre chamar a atenção para o facto de que tal relatório de uma queixa-crime relativa ao ataque de dois outros cães do arguido a outra pessoa em nada se relaciona com os factos discutidos na presente acção - designadamente em relação ao facto de ter sido o cão do arguido "Bobo" a provocar as feridas da recorrente.
    Por outro lado, sempre se dirá que o facto de alguém exercer o direito de queixa não quer dizer que os factos tenham ocorrido, de facto, tal como os queixosos os descrevem.
    Além disso, tal queixa não diz respeito ao cão envolvido nos presentes autos, pelo que não se vislumbra, salvo melhor opinião, qual é a relevância dessa alegação feita pela recorrente, quando o que importa é verificar se existem, ou não, indícios de facto de ter sido o cão do arguido "Bobo" o autor das lesões que a assistente apresentava.
    Entende o arguido que o mesmo não poderia vir pronunciado por um crime quando não foram reunidos indícios suficientes que permitissem concluir que o arguido seria condenado se submetido a julgamento.
    Quanto às conclusões,
    No que tange às 31 conclusões tecidas pela recorrente, desde logo deve referir-se que aquelas constituem uma fiel reprodução, praticamente integral, do que é esgrimido em sede de motivações,
    Assim, estas padecerão, obviamente, das vicissitudes que se lograrão vislumbrar aquando do estudo das aludidas motivações.
    Assim, vem, por fim, requerer se dignem V, Exas. convidar a recorrente a sintetizar as conclusões, sob pena de rejeição do recurso, caso a recorrente não cumpra o que lhe for determinado.
    Termos em que, face ao exposto, deve o presente recurso ser julgado improcedente e mantida a douta decisão proferida pelo Tribunal a quo.
    O Exmo Senhor Procurador Adjunto emitiu o seguinte douto parecer:
     Pode dispensar-se, "in casu", a nosso ver, o convite à assistente, no sentido da sintetização das conclusões da sua motivação, propugnado na resposta do arguido.
     A pretensão deduzida, na verdade, é de fácil apreensão, devendo ter-se em conta, também, razões de economia e celeridade.
     *
     O objecto do presente recurso consiste em saber se é possível formular, em relação ao crime de ofensa à integridade física por negligência, o juízo de probabilidade que uma pronúncia pressupõe e exige (cfr. artigos 289°, nºs. 2. e 3 e 265°, n.º 2, do C. P. Penal).
     E propendemos, a propósito, pela afirmativa acompanhando, essencialmente, as explanações constantes da motivação da recorrente.
     A Mma Juíza reconhece, no douto despacho recorrido, haver indícios de que "a assistente ficou ferida após o incidente do ataque do cão".
     Questiona, no entanto, "a razão verdadeira das suas lesões".
     Que dizer?
     As declarações dos ofendidos, como é sabido, não assumem, sempre, a mesma relevância.
     Em casos como o presente, de qualquer forma, devem merecer credibilidade e conjugar-se com outros elementos probatórios.
     E é isso, efectivamente, que acontece.
     As declarações da assistente, no nosso entender, mostram-se dignas de crédito.
     E é compreensível, a propósito, que tenha subestimado, de imediato, as suas próprias lesões, face às lesões bem mais graves sofridas pela sua cadela.
     Há que atentar, também, nesse âmbito, no clima emocional gerado pela situação em questão.
     Impõe-se relevar, por outro lado, o depoimento da testemunha XXX.
     É certo que se trata da empregada doméstica da recorrente.
     Nem por isso, todavia, deixou de afirmar que – por estar com medo - não reparou no ataque do cão do arguido à sua patroa.
     Sublinhou, entretanto, que viu as suas lesões após o incidente, acrescentando que a mesma lhe referiu que tinham sido provocadas pelo cão do arguido.
     E há que considerar, igualmente, os elementos objectivos juntos aos autos.
     Não podem deixar de chamar-se à colação, finalmente, as presunções naturais, ligadas a princípios de normalidade ou a regras gerais da experiência.
     E não é crível, realmente, que as lesões em causa não tenham tido conexão com o ataque do cão e o contacto mantido com o mesmo.
     Os elementos recorridos permitem, em suma, em nosso juízo, "formar a convicção de que existe uma possibilidade razoável de que o facto foi praticado pelo arguido e de que por ele virá a ser condenado" (ac. deste Tribunal, de 24/11/05, proc. n.º 221/2005).
     Deve, pelo exposto, ser concedido provimento ao recurso.
     Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se do auto de debate instrutório o seguinte excerto da decisão proferida:
    “ (...)
    Depois de se efectuar a instrução e debate instrutório, o tribunal deve proferir a respectiva decisão.
    Nos termos do art.º 289º do Código de Processo Penal de Macau, “Se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não-pronúncia. ”
    Portanto, nesta fase não é necessário dar mais importâncias às provas autênticas, quer dizer que quando há indícios fortes de se terem verificado que o respectivo arguido praticou um acto ilegal e tem razão de estar convencido de que o arguido será condenado por isso, assim o juiz deve proferir o despacho de pronúncia, ao contrário, proferir o despacho de não-pronúncia.
    Os indícios suficientes supracitados são os indícios de se terem verificado razoavelmente que o arguido será provavelmente aplicado a pena ou a medida de segurança no julgamento final.
    ***
    Neste caso, como no dia 15 de Outubro de 2007, pelas 19h00 à noite, o cão criado pelo arguido B mordeu o cachorrinho da vizinha , ora a assistente, e resultou em lesões da assistente, o arguido B foi acusado pela prática, por crime doloso, em autoria e na forma consumada, de um crime de dano p.p. pelo n.º 1 do art.º 206º do Código de Processo Penal de Macau, e por crime negligente, em autoria e na forma consumada, de um crime de ofensa à integridade física por negligência p.p. pelo n.º 1 do art.º 142º do Código de Processo Penal de Macau.
    O arguido não se conformou com a decisão supracitada, assim solicitou-se ao tribunal a abertura da instrução e a concessão de não-pronúncia.
    A assistente apresentou a acusação no prazo legal (vide fls. 94 a 99 dos autos).
    Na fase de instrução, este tribunal completou várias instruções, depois de debate instrutório, vem julgar o seguinte:
    Quando ao 「crime de ofensa à integridade física por negligência」:
    A assistente indicou, na acusação, que as lesões na mão directa e nas nádegas (vide as fotografias fls. 105 e 106 dos autos) foram causadas pelo cão criado pelo arguido quando ela salvou o seu cachorrinho, mas o arguido B declarou que nas horas de ocorrência do caso, o seu cão de guarda não tinha contactos físicos com a assistente, negando que as lesões da assistente foram causadas pelo seu cão.
    Examinando e adquirindo detalhadamente os dados constantes nos autos pelo tribunal, nomeadamente, considerando o processo da participação da assistente, o seu depoimento e as alegações das testemunhas, o tribunal entende que neste processo, não há indícios suficientes favoráveis a intentar a acção ao arguido B.
    Neste processo, embora haja indícios de se terem verificado que a assistente ficou ferida após o incidente do ataque do cão, qual é a razão verdadeira das suas lesões? Se fosse mordida pelo cão criado pelo arguido? Não há testemunha ocular capaz de verificar. Os dados do caso apenas podem mostrar que a assistente não participou oportunamente nem disse imediatamente que a sua própria tinha sido atacada pelo cão do arguido, no dia seguinte da ocorrência do caso, quando à participação não disse que tinha sido mordida pelo cão, até ao dia 4 de Novembro, quando ao completar o depoimento à Polícia, disse que na ocorrência do caso, foi simultaneamente agredida pelos dois cães (o cão criado pelo arguido e o cão criado pelo proprietário na Estrada da XXX) e ficava ferida. Mais analisando as fotografias das suas lesões e os depoimentos do perito médico-legal e médico de urgência, ambos só poderiam confirmar que as lesões da assistente são causadas por arma apontada ou os análogos sem saber qual objecto ou animal, de modo a que o tribunal não pode ter confirmação mais específica sobre o facto constante da acusação apresentada pela assistente de que as lesões da assistente foram causadas pelos ataques directos do cão de guarda criado pelo arguido.
    No caso de ausência de indícios específicos, se fossem atribuídas as suas lesões aos ataques do cão de guarda criado pelo arguido e pronuncie-se ao arguido por o crime de ofensa à integridade física de outrem, o tribunal entende que existe várias dúvidas a não ser explicadas razoavelmente.
    Nestes termos, até à presente fase, em face a essas dúvidas, este tribunal entende que nos autos, não há indícios suficientes de se terem verificado que o arguido cometeu o 「crime de ofensiva à integridade física por negligência」, pelo que nos termos da segunda parte do n.º 2 do art.º 289º do Código de Processo Penal de Macau, decide-se que não se pronuncie o arguido por esta parte da acusação.
    Quando ao 「crime de dano」:
    De acordo com as fotografias constantes das fls. 10, 100 a 104 nos autos, os ataques do cão de guarda criado pelo arguido causaram várias lesões do cachorrinho da assistente. O tribunal entende que o arguido B não assumiu bem as responsabilidades devidas gerais sobre o controlo do seu cão como um proprietário, de acordo com o depoimento prestado pela testemunha XXX, o cão envolvido no caso tinha registos de ataques a outrem e à própria testemunha, podemos ver que o arguido consegue prever que existe riscos de que o seu cão fizesse ataques novamente a outrem e prejudicasse os bens de terceiros, mas o arguido ainda não tomou medidas preventivas adequadas quando sair, abrindo porta para o cão sair de forma aleatória, de modo que há indícios suficientes de se terem verificado que se preenche subjectivamente ao dolo eventual previsto na alínea 3) do art.º 13º do Código Penal.
    Nestes termos, o tribunal decide a aceitar parcialmente a acusação deduzida pelo Ministério Público e a acusação apresentada pela assistente, e pronuncia o seguinte arguido, facilitando a realização do julgamento pelo TJB em processo comum com intervenção do tribunal singular.
    O arguido B, de sexo masculino, casado, funcionário público, titular do BIRM n.º 50XXXXX (X), nascido a 28 de Novembro de XXXX em Macau, filho de XXX e de XXX, residente na Estrada da XXX, Macau, tel.: 6XXXXXXX.
    *
    Os factos constantes nos autos provam-se:
    
    I) Relativamente ao preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal do crime:
    
    No dia 15 de Outubro de 2007, pelas 19h00 à noite, a empregada familiar XXX da assistente A (sic.) levou o cão de cor branca e castanha, chamado “PRINCESS”, para passear nos arredores da residência ( R/C, Estrada da XXX ) (vide fls. 12V e 31V).
    Enquanto voltou à porta da casa da assistente, o arguido B estava a abrir a porta da sua casa e o seu cão de guarda de cor amarela escura, chamado “Bo Bo”, saiu imediatamente da casa, na altura este cão de guarda não tinha máscara bucal protectora nem correntes para cães (vide fls. 31V e 37V).
    O cão de guarda criado pelo arguido atirou-se ao cachorrinho de cor branca e castanha e mordeu o pescoço e o abdome do cachorrinho.
    Depois de ver esta situação, a assistente foi imediatamente separar o seu próprio cachorrinho com o cão de guarda, mas o arguido que estava presente apenas impediu o cão de guarda com gritos, não fez nenhuma acção para parar os ataques, causando as lesões do cachorrinho criado pela assistente (vide as fotografias as fls. 10, 100 a 104).
    
    II) Relativamente ao preenchimento dos elementos subjectivos do tipo legal do crime:
    
    O arguido tomava o conhecimento de que o cão criado por ele tinha registos de ataques a terceiros ou prejuízo aos bens alheios, e sabia bem que quando ele abre a porta, o cão podia provavelmente sair para as ruas e morder outros ou prejudicar os bens alheios, mas ainda não tomou nenhumas medidas preventivas para evitar a ocorrência desta consequência, resultando que o cão de guarda mordeu o cachorrinho da ofendida, o arguido conformou-se com a realização desta consequência, portanto, existe dolo eventual.
    O arguido também sabia bem que a sua conduta supracitada era intolerável e punida pela lei.
    *
    Pelo exposto, o arguido cometeu, como autor material e na forma consumada, pela prática de:
    - Um crime de dano p.p. pelo n.º 1 do art.º 206º do Código Penal de Macau.
    (...)”
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
    - Formalização da síntese conclusiva das alegações de recurso;
    - Existência de indícios bastantes para pronunciar pelo cometimento de um crime de ofensas corporais por negligência.
    
    2. Não obstante merecer reparo a falta de rigor e menos cuidado posto na observância das regras processuais - art. 402º, n.º 1 do CPP - no que toca à formulação de uma síntese conclusiva das alegações por parte da recorrente, o certo é que entramos num domínio que encerra alguma discricionariedade tangente ao que se entenda por síntese, devendo ficar ao critério do julgador a formulação de um juízo sobre o preenchimento de tais requisitos.
    Neste caso, entendeu-se não ser de ordenar um aperfeiçoamento da peça sob escrutínio, na medida em que as razões aduzidas são facilmente apreensíveis, para além de se relevarem ainda razões de economia e celeridade.
    Mantém-se assim o articulado, tal como apresentado pela parte recorrente.
    
    3. Fundamentalmente o que está em causa é saber se há elementos bastantes nos autos para pronunciar pelo crime de ofensas corporais por negligência.
    O arguido diz que não, porquanto não terá havido prova directa ou ocular de que o cão atacou a ofendida, que as lesões causadas podiam ter outra origem, que as pessoas presentes não confirmam que o cão tenha mordido ou causado tais lesões.
    
    3. Dispõe o art. 289º, n.º 1 e 2 do CPP:
   1. Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não-pronúncia.
   2. Se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não-pronúncia.
   (...)
    Repare-se que nem sequer se fala em fortes indícios, como a lei refere noutras passagens, nomeadamente em sede de aplicação da prisão preventiva - art. 186º, n.º 1, a) do CPP.
    
    A indiciação do crime passa por uma probatio levior, isto é, a convicção da existência dos pressupostos de que depende a aplicação ao agente de uma pena, mas em grau inferior à que é necessária para a condenação.
    
    Não se trata, porém, de mera presunção ou probabilidade insegura, que seria sempre em função da maior ou menor exigência que pessoalmente o juiz pusesse nas suas presunções ou nos critérios de probabilidade, antes se impõe uma comprovação objectiva face aos elementos probatórios disponíveis.
    
    Não pode exigir-se uma comprovação categórica da existência dos referidos pressupostos, mas tão-só, face ao estado dos autos, a convicção objectivável com os elementos recolhidos no processo de que o arguido poderá vir a ser condenado pela prática de determinado crime.
    
    Nos casos em que a lei exige fortes indícios a exigência é naturalmente maior; embora não seja ainda de exigir a comprovação categórica, sem qualquer dúvida razoável, é pelo menos necessário que face aos elementos de prova disponíveis seja possível formar a convicção sobre a maior probabilidade de condenação do que de absolvição.
    
    4. Perante isto, o que temos?
    Um cão, pastor alemão, sem açaime, sem trela, deixado à sua própria governança animalesca, acossado pelo apetite canino sobre um cachorrinho, levado a passear pela empregada da ofendida, numa zona de vivendas, onde se conhecem bem e pululam as invectivas da canzoada sobre os pacatos passantes.
    Canzoada nem sempre bem resguardada pelas cercas ou sob guarda dos donos.
    A dona do cachorro, alertada pelo latido dos canídeos, sai em auxílio e pega nele. Como se imagina, o canzarrão, tornado fera, atiçado até por tal acto protector, não está com meias medidas e atira-se ao alvo, mordendo-o e causando-lhe dano.
    Dano que vem fotografado, comprovado e foi objecto de pronúncia criminal.
    A dona do cachorro diz-se atingida, também ela, pelo pastor alemão, exibe lesões corporais na sua nádega, também elas fotografadas e bem visíveis nos autos.
    Entrementes, a empregada, naturalmente espavorida, some. Diz que não viu o animal bicar na dona. Mas que esta logo lhe diz ter sido atingida pela fera.
    O dono do pastor, enquanto isto, tendo aberto a cancela e solto o cão, grita e limita-se a serenar verbalmente, tentando apaziguar a fúria do bicho.
    Diz o dono, tornado arguido, que não se sabe se as lesões são mordidelas de cão ou por ele provocadas; seu ou de outrem; aventa até a participação de um outro cão na confusão; diz ainda que a testemunha que estava presente também não confirma o ataque.
    
     5. O que dizer perante isto?
     Afigura-se-nos não ser necessária grande elucubração para em termos de normalidade, bom senso e de acordo com as regras de experiência, ter como muito provável a realidade relatada pela ofendida.
    Não se tratará de uma certeza, mas de uma probalidade consistente e devidamente enquadrada por todo um circunstancialismo sustentado, de molde a configurar uma situação indiciária integrante, para além do dano sobre o cachorro, em ofensa cometida sobre a ofendida, ora assistente, por falta dos cuidados de diligência e dever de guarda que o dono de um cão, em particular de um pastor alemão, deve ter.
    Os indícios estão aí e não será preciso dizer muito mais, aliás, na linha do entendimento que os diferentes intervenientes detentores da acção penal, os magistrados do MP, tiveram em ambas as instâncias.
    Por isso o recurso não deixará de proceder.
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a decisão recorrida na parte em que não pronunciou o arguido por um crime de ofensas corporais por negligência, pronunciando-se assim o arguido ainda pela prática de um crime, na forma consumada, p. e p. pelo art. 142º, n.º 1 do CP.
    Custas pelo arguido com taxa de justiça que se fixa em 5 Ucs.
Macau, 2 de Dezembro de 2010,
João A. G. Gil de Oliveira
Tam Hio Wa
Lai Kin Hong
2/2010 38/38