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Processo nº 871/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, (XXX), com os sinais dos autos, respondeu no T.J.B., vindo a ser condenada como autora da prática de um crime de “ofensa simples à integridade física”, p. e p. pelo art. 137°, n° 1 do C.P.M., na pena de 150 dias de multa à taxa diária de MOP50,00, perfazendo a multa global de MOP$7.500,00 ou 100 dias de prisão subsidiária; (cfr., fls. 108 a 108-v).

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Inconformada, a arguida recorreu.
Motivou para concluir que:
“1- A ora recorrente foi acusada da pela prática, em autoria, sob a forma consumada. de um crime de ofensas à integridade física simples previsto e punido no n° 1 do artigo 137° do Código Penal.
2- Ficou provado, em sede de audiência de discussão e julgamento, que a recorrente participou numa discussão que a sua tia, B, estava a ter com a ofendida C.
3 - Ficou ainda provado, em sede de audiência de discussão e julgamento, que a Ofendida C agrediu a Recorrente, tendo empurrado esta pelo peito, o que a fez cair no chão.
4- Ficou provado também, em sede de audiência de discussão e julgamento, que face a esta agressão e atendendo ao facto de que a ofendida é muito mais velha e corpulenta que a Recorrente, esta tentou defender-se, atirando objectos.
5- Decidindo como decidiu, o Meritíssimo Juiz não teve em consideração o plasmado na alínea b) do n° 3 do artigo 137° do Código Penal pois poderia ter dispensado a recorrente de qualquer pena uma vez que esta apenas retorquiu a uma agressão da Ofendida.
6- Assim como não foi tido em consideração que existem factores que excluem a culpa recorrente, conforme o disposto no n° 1 do artigo 26° do Código Penal.”; (cfr., fls. 122 a 130).

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Respondendo, afirma o Exm° Procurador-Adjunto que:
“1- O instituto de dispensa da pena previsto no art. 137° no. 3 aI. b) só se aplica quando se verifica uma manifesta injustiça, na formulação do Leal Henriques e Simas Santos, ou uma efectiva mitigação da culpa, na formulação do Maia Gonçalves;
2- ln casu, não se verificou nem uma nem outra situação, pois a retorsão da recorrente foi violenta causando lesões de 7 dias à uma senhora de 63 anos de idade;
3- Não se preencheu os requisitos da legítima defesa por não ter verificado a actualidade da agressão nem a proporcionalidade da resposta, manifestando pura e simplesmente um espírito agressivo da recorrente e não um animus defendendi.”; (cfr., fls. 132 a 133-v).

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Admitido o recurso, remetidos os autos a este T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte Parecer:
“Concordamos inteiramente com o entendimento doutamente assumido pelo Exmo colega junto da 1ª instância.
Na verdade, não se registando, no caso, por um lado manifesta injustiça ou efectiva mitigação da culpa, já que a reacção do recorrente foi violenta, desproporcionada e desadequada, não se tratando de mera retorsão, a não justificar, pois, a aplicação dos instituto da dispensa de pena revisto na al b) do n° 3 do art° 137° C.P. e, por outro, aquela reacção não revestiu contornos de resposta a agressão "actual" ou de perigo iminente, a revelar "animus defendendi", antes se apresentando como acto imbuído de espírito agressivo, desproporcionado e desadequado, a não preencher os requisitos, quer de estado de necessidade desculpante, quer da legitima defesa
Razões por que, sem necessidade de maiores considerações ou alongamentos somos a pugnar pela manutenção do decidido e rejeição do recurso.”; (cfr., fls. 146).

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Cumpre decidir.

Fundamentação

Dos factos

2. Estão provados os factos seguintes:
“No dia 22.08.2008, cerca das 6:00 da tarde, a arguida A, deslocou-se à “Associação dos Comerciantes da China, Macau, Hong Kong, Taiwan”, sita na Avenida da Longevidade, n° 524, para jogar “ma jong” com a ofendida C e duas pessoas não identificadas.
Por motivos incertos, a arguida e a ofendida entraram em discussão.
Nesta, a ofendida empurrou o peito da arguida, tendo esta caído ao chão.
De seguida, a arguida atirou à ofendida pedras de “ma jong” que lhe acertaram na mão direita e um copo de vidro à cabeça, com o propósito de ofender o corpo e a saúde desta, tendo-lhe causado, directa e consequentemente, contusão de tecidos moles na cara.
Segundo a perícia médica-legal e clínica, que consta na fl. 28 dos presentes autos, as lesões sofridas pela ofendida são simples, carecendo de 7 dias para a sua recuperação.
A arguida agiu de forma livre e consciente, ao praticar a supracitada conduta, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei.
De acordo com a certidão do registo criminal, a arguida é primária.
A ofendida tenciona a efectivação da responsabilidade penal e pede à arguida uma indemnização das despesas médicas no total de MOP$2,927.00 e das despesas de taxi, no total de MOP$49.00.”

Provou-se também que:
“A arguida encontra-se presa no Estabelecimento Prisional de Macau à ordem do processo n° CR3-10-0050-PCC.
Não tem pessoas a seu cargo..
Tem como habilitações académicas o 11° ano do ensino secundário.”; (cfr., fls. 106-v).

Do direito

3. Insurge-se a arguida ora recorrente contra a sentença proferida pelo Mm° Juiz a quo com a qual foi condenada como autora da prática de um crime de “ofensa simples à integridade física”, p. e p. pelo art. 137°, n° 1 do C.P.M., na pena de 150 dias de multa à taxa diária de MOP500,00, perfazendo a multa global de MOP$7.500,00 ou 100 dias de prisão subsidiária.

Duas são as razões do seu inconformismo.

Considera pois que:
“Decidindo como decidiu, o Meritíssimo Juiz não teve em consideração o plasmado na alínea b) do n° 3 do artigo 137° do Código Penal pois poderia ter dispensado a recorrente de qualquer pena uma vez que esta apenas retorquiu a uma agressão da Ofendida”; e que,
“Não foi tido em consideração que existem factores que excluem a culpa recorrente, conforme o disposto no n° 1 do artigo 26° do Código Penal”, (sendo lapso manifesto a invocação do art. 26°, pois que na motivação indica o art. 34° do mesmo código).

Vejamos se tem razão, começando-se pela alegada “desconsideração dos factores que excluem a culpa da recorrente”.

Preceitua o art. 34° do C.P.M. que:
“1. Age sem culpa quem praticar um facto ilícito adequado a afastar um perigo actual, e não removível de outro modo, que ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro, quando não for razoável exigir, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.
2. Se o perigo ameaçar interesses jurídicos diferentes dos referidos no número anterior e se verificarem os restantes pressupostos ali mencionados, a pena pode ser especialmente atenuada.”

Face ao assim estatuído, sem esforço se conclui que na parte em questão se terá de julgar improcedente o recurso.

De facto, a alegada “causa de exclusão da culpa”, o designado “estado de necessidade desculpante”, exige que o agente tenha a intenção de afastar um “perigo actual, não removível de outro modo”, e que este (perigo actual) ameace a vida, a integridade física, a honra ou a liberdade do agente ou de terceiro; ou, em qualquer dos casos, quando não seja razoável exigir do agente, segundo as circunstâncias do caso, comportamento diferente.

Pretende-se pois abranger aquelas situações em que se encontra enfraquecido, de forma significativa, o desvalor da acção ilícita através de situações de estados emocionais que colidem com o processo de formação da vontade, de tal forma que não é exigível ao agente outro comportamento.

No caso, e atenta a factualidade dada como provada, há que afirmar que a conduta da arguida ora recorrente não foi desenvolvida como “meio adequado a afastar um perigo actual e não removível de outro modo”.

Com efeito, como falar-se de “perigo actual e não removível de outro modo” se dos factos provados nada consta a este respeito?

Avancemos..

— Vejamos agora da outra questão e que é a da “desconsideração do preceituado no art. 137°, n° 3, al. b) do C.P.M.”.

Pois bem, nos termos do mencionado art. 137°:
“1. Quem ofender o corpo ou a saúde de outra pessoa é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.
2. O procedimento penal depende de queixa.
3. O tribunal pode dispensar de pena quando:
a) Tiver havido lesões recíprocas e não se tiver provado qual dos contendores agrediu primeiro; ou
b) O agente tiver unicamente exercido retorsão sobre o agressor.”

No que se refere à alínea b) do n° 3, tem-se entendido que o conceito de “retorsão” implica a ocorrência conjunta dos seguintes elementos:
“a) - que a agressão se siga, de forma imediata e instantânea a uma outra agressão;
b) - que surja em resposta a essa prévia agressão”; (cfr., v.g., Ac. da Relação de Lisboa de 31.10.2001, Proc. n° 0060793).

Mais recentemente, entendeu também a Relação do Porto que:
“A retorsão corresponde a situações nas quais o agente se limita a “responder” a uma conduta ilícita ou repreensível do ofendido (a ao mesmo tempo agressor) empregando a força física”; (cfr., Ac. de 22.09.2010, Proc. n°1281/05.9TAVLG.P1).

Também Pinto de Albuquerque, (no “Comentário do Código Penal”, pág. 386), diz que a retorsão consiste numa reacção ilícita de agressão diante de uma agressão, também ela, ilícita.

A retorsão diferencia-se assim da legítima defesa e do estado de necessidade porque supõe a ilicitude da reacção da vítima.

E, como parece evidente, tem de ter lugar no mesmo acto, sendo essencial o carácter imediato da reacção do agente.

Dito isto, mostra-se-nos de concluir que agiu a ora recorrente em “retorsão” pois que a sua conduta (agressão à ofendida) foi uma resposta à agressão (empurrão) que sofreu daquela.

Nesta conformidade, “que dizer”?

Ora, o preceito em questão, (art. 137º do C.P.M.), é certo, não impõe a dispensa da pena, atribuindo ao Tribunal a “faculdade” de a decretar; (atente-se na expressão “O Tribunal pode...”).

Ponderando nas circunstâncias da situação sub judice, cremos que se deve decretar a dispensa da pena, pois que esta para além de não ser uma “medida de clemência”, tem algo de uma “pena de substituição”.

Como ensina F. Dias, “o que na mesma existe verdadeiramente é uma pena de declaração de culpa, ou, se se preferir, uma espécie de admoestação, que decorre de tal declaração”; (vd., “Direito Penal, II, As Consequências Jurídicas do Crime”, 1993, pág. 317).”

“In casu”, afigura-se-nos pois bastante tal “admoestação”, sendo assim de proceder o recurso na parte em questão.

Decisão

4. Nos termos e fundamentos expostos, acordam julgar parcialmente procedente o recurso.

Pelo decaimento, pagará a recorrente a taxa de justiça de 2 UCs.

Macau, aos 2 de Dezembro de 2010
José Maria Dias Azedo
João A. G. Gil de Oliveira
  Chan Kuong Seng (vencido, porque entendo que não se pode decidir pela dispensa da pena, porquanto de acordo com a matéria de facto já dada por provada na decisão recorrida, a arguida tinha intenção de ofender a integridade física da ofendida, e não de unicamente exercer retorsão sobre esta, por um lado, e, por outro, e a jusante, há desproporção entre as “lesões” sofridas pela arguida por causa do empurrão feito pela ofendida em primeiro lugar (na sequência do qual só caiu no chão a arguida, sem nenhuma lesão provada) e as lesões efectivamente sofridas pela ofendida pelo acto de ataque exercido pela arguida através do atirar de um copo de vidro à cabeça da ofendida nomeadamente).

Proc. 871/2010 Pág. 12

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