Processo n.º 861/2010 Data do acórdão: 2010-12-09
Assuntos:
– detenção de estupefacientes para consumo pessoal
– tráfico de quantidades diminutas
– concurso real efectivo
– Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro
S U M Á R I O
1. Sendo diferentes os bens jurídicos que se procura tutelar com a incriminação e punição das condutas de tráfico de estupefacientes (nem que sejam referentes a quantidades diminutas), por um lado, e, por outro, de detenção ou aquisição de estupefacientes para consumo pessoal, tipificadas no Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, há que entender que os dois crimes em questão não podem estar em concurso aparente, mas sim em concurso real efectivo.
2. É que o bem jurídico primordialmente em causa no tipo legal de tráfico de estupefacientes é a saúde pública, enquanto o bem jurídico em questão no tipo legal de detenção de estupefacientes para consumo pessoal é a saúde individual do próprio agente detentor e consumidor de droga.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 861/2010
(Autos de recurso penal)
Recorrente: Ministério Público
Arguida recorrida: A (XXX)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I - RELATÓRIO
Inconformada com o acórdão proferido no âmbito do Processo Comum Colectivo n.° CR2-09-0161-PCC do 2.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, na parte em que se decidiu não condenar, a título autónomo, a arguida A, aí já melhor identificada, como autora material de um crime de detenção de estupefaciente para consumo pessoal, p. e p. pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, vigente à data dos factos, por entendida já absorção desse crime pelo crime de tráfico (de estupefacientes) de quantidades diminutas, também imputado à arguida na acusação pública nos termos do art.o 9.o, n.o 1, do mesmo diploma legal (cfr. o teor original desse acórdão, a fls. 119 a 129v dos presentes autos correspondentes, que se dá por aqui integralmente reproduzido para todos os efeitos legais), veio a Digna Delegada do Procurador junto desse Tribunal recorrer para esta Segunda Instância, para rogar, nos termos vertidos na sua motivação apresentada a fls. 136 a 138v dos autos, a condenação da referida arguida também no crime de detenção de estupefacientes para consumo pessoal, tal como inicialmente acusado.
Ao recurso respondeu a arguida recorrida no sentido de manutenção do julgado (cfr. a resposta de fls. 142 a 146 dos autos).
Subidos os autos, emitiu a fls. 153 a 154 a Digna Procuradora-Adjunta parecer, pugnando pela procedência do recurso.
Feito subsequentemente o exame preliminar e corridos depois os vistos legais, procedeu-se à audiência em julgamento.
Cumpre, pois, decidir do recurso.
II – FUNDAMENTAÇÃO
Como questão nuclear unicamente posta no seu recurso, a Digna Delegada do Procurador recorrente critica que o Tribunal a quo errou na aplicação do Direito ao não ter condenado a arguida também no crime de detenção de estupefacientes para consumo pessoal, já que não se deveria entender haver concurso aparente entre este crime e o crime de tráfico de estupefacientes de quantidade diminuta.
E para este Tribunal ad quem, com razão no lado da Entidade Recorrente, porquanto sendo diferentes os bens jurídicos que se procura tutelar com a incriminação e punição das condutas de tráfico de estupefacientes (nem que sejam referentes a quantidade diminuta), por um lado, e, por outro, de detenção ou aquisição de estupefacientes para consumo pessoal, há que entender que os dois crimes em questão não podem estar em concurso aparente, mas sim em concurso real efectivo.
É que tal como observa a Digna Procuradora-Adjunta no seu judicioso parecer, o bem jurídico primordialmente em causa no tipo legal de tráfico de estupefacientes é a saúde pública, enquanto o bem jurídico em questão no tipo legal de detenção de estupefacientes para consumo pessoal é a saúde individual do próprio agente detentor e também consumidor de droga.
Há-de proceder o recurso, com o que é de passar a condenar também a arguida dos autos como autora material de um crime consumado de detenção de estupefacientes para consumo pessoal, na pena de 1 (um) mês de prisão, ora a achar nos termos dos art.os 40.o, n.os 1 e 2, e 65.o do Código Penal (CP), vistas sobretudo as circunstâncias já apuradas na Primeira Instância, dentro da moldura legal da pena de prisão prevista no art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, vigente à data dos factos e já tido pelo Colectivo a quo como concretamente não menos favorável à arguida depois de comparado com o regime punitivo vertido na nova lei de droga (Lei n.o 17/2009), juízo de valor atinente à comparação dos dois regimes sancionatórios esse que não foi sindicado na motivação do recurso vertente. (Não é, pois, e note-se, de aplicar a este crime a pena de multa em detrimento da pena de prisão, atentas as necessidades de prevenção da arguida da prática de novo crime deste tipo no futuro).
E em cúmulo jurídico – a operar nos termos do art.o 71.o, n.os 1 e 2, do CP mediante a ponderação em conjunto da personalidade da agente arguida e dos factos já dados por provados e descritos no texto do acórdão recorrido – com as duas penas parcelares já aplicadas no acórdão recorrido (quais sejam, a de 1 (um) ano e 2 (dois) meses de prisão e MOP3.000,00 de multa, convertível esta em vinte dias de prisão, no caso de não ser paga voluntariamente nem substituída por trabalho, para o crime de tráfico (de estupefacientes) de quantidades diminutas, p. e p. pelo art.o 9.o, n.o 1, do Decreto-Lei n.o 5/91/M, e a pena de 3 (três) meses de prisão para o crime de detenção indevida de utensilagem, p. e p. pelo art.o 12.o do mesmo diploma legal), terá a arguida que ser condenada na nova pena única de 1 (um) ano e 3 (três) meses e 10 (dez) dias de prisão, com MOP3.000,00 de multa, convertível em vinte dias de prisão no caso de não ser paga voluntariamente nem substituída por trabalho, sendo de suspender-lhe a execução da pena de prisão por um período de dezoito meses, tal como já foi decidido materialmente no acórdão recorrido, juízo de valor relativo à suspensão da pena esse que também não foi posto em causa no presente recurso. (E nota-se que não se pode impor agora à arguida o regime de prova a que alude o art.o 51.o do CP, porque a falta de determinação, por parte do Tribunal a quo, do regime de prova, apesar de estarem reunidos, in casu, todos os pressupostos legais para o efeito, referidos no n.o 3 desse art.o 51.o, não foi impugnada no recurso do Ministério Público).
III – DECISÃO
Ante o exposto, acordam em julgar procedente o recurso, passando a arguida A a ser condenada também como autora material de um crime de detenção de estupefacientes para consumo pessoal, p. e p. pelo art.o 23.o, alínea a), do Decreto-Lei n.o 5/91/M, de 28 de Janeiro, na pena de 1 (um) mês de prisão, e na nova pena única, achada em cúmulo jurídico com as penas já impostas no acórdão recorrido para o crime de tráfico de quantidades diminutas e o crime de detenção indevida de utensilagem, de 1 (um) ano e 3 (três) meses e 10 (dez) dias de prisão, com MOP3.000,00 (três mil patacas) de multa, convertível esta multa em vinte dias de prisão no caso de não ser paga voluntariamente nem substituída por trabalho, pena única de prisão esta suspensa, entretanto, na sua execução pelo período de dezoito meses.
Sem custas nesta Segunda Instância.
Fixam em mil e quatrocentas patacas os honorários devidos ao Ilustre Defensor Oficioso da arguida, a adiantar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 9 de Dezembro de 2010.
____________________________
Chan Kuong Seng
(Relator) (com a declaração de que ficou vencido parcialmente na decisão do recurso e na respectiva fundamentação, por entender que a pena de multa cumulativa aplicada à arguida por causa do crime de tráfico de quantidades diminutas deva ser absorvida na pena única de prisão a achar em sede de cúmulo jurídico, na esteira da tese defendida pelo PROFESSOR JORGE DE FIGUEIREDO DIAS, in DIREITO PENAL PORTUGUÊS – AS CONSEQUÊNCIAS JURÍDICAS DO CRIME, 1993, págs. 289 a 290, §418, tese essa que, aliás, já foi materialmente posta na prática no direito penal actualmente positivado em Macau, por estar contemplada também no n.o 3 do art.o 71.o do Código Penal de Macau.)
____________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Primeiro Juiz-Adjunto)
____________________________
Tam Hio Wa
(Segunda Juíza-Adjunta)
Processo n.º 861/2010 Pág. 1/7