Processo n.º 367/2008 Data do acórdão: 2011-01-13
(Autos de recurso civil)
Assuntos:
– art.º 854.º, n.º 1, do Código Civil de Macau
– contrato de remissão de dívida
– art.º 399.º, n.º 1, do Código Civil de Macau
– limitação da liberdade contratual
– art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril
– Regime Jurídico das Relações de Trabalho de Macau
– princípio do favor laboratoris
– art.º 60.º do Decreto-Lei n.º 40/95/M, de 14 de Agosto
S U M Á R I O
1. O Código Civil de Macau, no n.° 1 do seu art.° 854.°, dispõe que <>.
2. Entretanto, segundo o art.º 399.º, n.º 1, deste Código, a criação do contrato não implica que o mesmo possa vir a produzir necessariamente os efeitos pretendidos pelos respectivos outorgantes, visto que tudo depende da existência, ou não, de outras disposições legais obrigatórias que restrinjam ou limitam a liberdade contratual.
3. Estando o presente processo sob a alçada do Direito do Trabalho, há que aplicar o Regime Jurídico das Relações de Trabalho de Macau, consagrado no Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril.
4. O art.° 6.° deste Decreto-Lei determina que <>.
5. Sendo certo que as “condições de trabalho” de que se fala nesta norma devem ser entendidas, conforme o conceito definido na alínea d) do art.° 2.° do mesmo Decreto-Lei, como referentes a <>.
6. Assim, estando o montante concreto do “prémio de serviço” então declarado pela Autora como recebido da Ré muito aquém da soma indemnizatória reclamada na petição inicial, o Tribunal a quo, independentemente da procedência ou não do pedido da Autora, não deveria ter desconsiderado a norma expressa do art.° 6.° do dito Decreto-Lei, nem o pensamento legislativo ao mesmo subjacente e ligado às preocupações de proteger os interesses da parte trabalhadora (cfr. os cânones de hermenêutica jurídica plasmados no n.° 1 do art.° 8.° do Código Civil), não devendo, pois, ter julgado válido o contrato de remissão de dívidas da Ré para com a Autora, mesmo que esse contrato tivesse sido celebrado após a cessação da relação de trabalho entre a Autora e a Ré.
7. Aliás, norma jurídica semelhante à do art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposições do art.° 60.° do Decreto-Lei n.° 40/95/M, de 14 de Agosto, definidor do regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, também em prol da protecção dos interesses da parte trabalhadora:
<<1. É nula a convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidas no presente diploma ou com eles incompatível.
2. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos no presente diploma.>>
8. Por outras palavras, como o contrato de remissão de dívida em questão nos presentes autos violou o princípio do “favor laboratoris” também consagrado obrigatoriamente no art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, todos os créditos laborais legais da Autora sobre a Ré não podem ficar extintos por efeito desse contrato.
O relator por vencimento,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 367/2008
(Autos de recurso civil)
Autora: A
Ré: Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L.
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
No dia 16 de Janeiro de 2006, A apresentou petição ao Tribunal Judicial de Base, pedindo, em acção declarativa ordinária, a condenação da sua ex-empregadora Sociedade de Turismo e Diversões de Macau, S.A.R.L. (STDM), no pagamento da quantia total, inicialmente reclamada, de MOP$1.455.604,60, como indemnização pecuniária nomeadamente de diversos direitos por ela tidos como emergentes da correspondente relação laboral (cfr. o teor da petição a fls. 2 a 34 dos presentes autos correspondentes).
Citada, a Ré veio apresentar contestação para se opor à pretensão da Autora mediante invocação de diversos motivos, de entre os quais se salientando o argumento de que todas as obrigações ora imputadas pela Autora, a existirem, já teriam sido extintas por efeito de uma declaração subscrita pela Autora nesse sentido em 21 de Julho de 2003 e já por ela aceite logo no próprio dia (cfr. o teor da contestação de fls. 100 a 175 dos autos), excepção peremptória esta que veio a ser julgada como procedente na sentença final da Primeira Instância, com consequente absolvição da Ré do pedido (cfr. a sentença de fls. 718v a 726 dos autos).
Inconformada, veio a Autora recorrer para esta Segunda Instância para rogar inclusivamente a invalidação dessa decisão, nos termos nomeadamente constantes da sua alegação de fls. 738 a 832, que se dão por aqui reproduzidos para todos os efeitos legais.
Ao recurso respondeu a Ré no sentido de improcedência do mesmo, nos termos vertidos na sua contra alegação de fls. 841 a 907, que também se dão por aqui reproduzidos para todos os efeitos legais.
Subido o processo, feito o exame preliminar e corridos os vistos legais, foi apresentado pelo Mm.o Juiz Relator a quem o processo ficou distribuído o douto Projecto de Acórdão relativo ao recurso da Autora à apreciação do presente Tribunal Colectivo ad quem, sugerindo-se que se julgasse improcedente este recurso com manutenção da decisão de absolvição da Ré do pedido.
Entretanto, como o Mm.o Relator acabou por sair vencido da votação sobre essa sua douta solução sugerida, cumpre decidir da sorte dos presentes autos recursórios nos termos constantes do presente acórdão definitivo, lavrado pelo primeiro dos Juízes-Adjuntos.
II – DOS FACTOS
Com pertinência à solução do recurso, é de coligir dos autos os seguintes elementos:
Em 21 de Julho de 2003, a Autora assinou uma declaração dactilografada em chinês (com respectiva tradução portuguesa também dactilografada no mesmo texto original), e aceite por escrito nesse dia (e no texto dessa declaração) pela Ré, com seguinte teor traduzido para português:
<
Eu,(.....................................), titular do BIR nº (...........................) recebi, voluntariamente, a título de prémio de serviço, a quantia de MOP$(..........................) da STDM, referente ao pagamento de compensação extraordinária de eventuais direitos relativos a descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios, eventual licença de maternidade e rescisão por acordo do contrato de trabalho, decorrentes do vínculo laboral com a STDM.
Mais declaro e entendo que, recebido o valor referido, nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste e, por consequência, nenhuma quantia é por mim exigível, por qualquer forma, à STDM, na medida em que nenhuma das partes deve à outra qualquer compensação relativa ao vínculo laboral.
[...]>> (cfr. o teor literal da mesma declaração, a que alude a fl. 177 dos autos), sendo certo que de acordo com o teor original em chinês dessa declaração, o “prémio de serviço” é de MOP$28.159,96.
III – DO DIREITO
Juridicamente falando, a questão nuclear posta no recurso da Autora prende-se, ao fim e ao cabo, com a indagação do sentido e alcance da declaração escrita então por ela assinada e logo aceite pela Ré, a despeito da quantidade de questões e respectivos argumentos invocados na alegação do recurso.
A este propósito, e tal como já se analisou mormente no acórdão de 14 de Junho de 2007 deste Tribunal de Segunda Instância, lavrado em chinês no Processo n.° 258/2007 (em que se ocupou da mesmíssima questão jurídica ante uma declaração escrita com conteúdo materialmente idêntico ao da declaração ora em causa):
O Código Civil de Macau, no n.° 1 do seu art.° 854.°, dispõe que <>.
Ora, em princípio, a dita declaração então emitida pela Autora, uma vez aceite pela Ré, já fez nascer um contrato de remissão de dívida previsto neste preceito do Código Civil.
Entretanto, a criação do contrato não implica que o mesmo possa vir a produzir necessariamente os efeitos pretendidos pelos respectivos outorgantes, visto que tudo depende da existência, ou não, de outras disposições legais obrigatórias que restrinjam ou limitam a liberdade contratual (vide o art.° 399.°, n.° 1, do Código Civil).
Estando o presente processo sob a alçada do Direito do Trabalho, há que aplicar ao caso o Regime Jurídico das Relações de Trabalho de Macau, consagrado no Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril, e vigente inclusivamente à data da assinatura da acima referida declaração escrita da Autora.
Segundo o art.° 6.° deste Decreto-Lei: <> (com sublinhado ora colocado).
Sendo certo que as “condições de trabalho” de que se fala nesta norma devem ser entendidas, de acordo com o conceito definido na alínea d) do art.° 2.° do mesmo Decreto-Lei, como referentes a <> (com sublinhado agora posto).
Assim, estando o montante concreto do “prémio de serviço” então declarado pela Autora como recebido da Ré muito aquém da soma indemnizatória reclamada na petição inicial, e independentemente da procedência ou não do pedido da Autora, não se deveria ter desconsiderado a norma expressa do art.° 6.° do dito Decreto-Lei, nem o pensamento legislativo ao mesmo subjacente e ligado às preocupações de proteger os interesses da parte trabalhadora (cfr. os cânones de hermenêutica jurídica plasmados no n.° 1 do art.° 8.° do Código Civil), não se devendo, pois, ter julgado válida a atrás referida remissão de dívidas da Ré para com a Autora, mesmo que essa remissão tivesse sido declarada após a cessação da relação de trabalho entre a Autora e a Ré.
Aliás, norma jurídica semelhante à do art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposições do art.° 60.° do Decreto-Lei n.° 40/95/M, de 14 de Agosto, definidor do regime aplicável à reparação dos danos emergentes dos acidentes de trabalho e doenças profissionais, também em prol da protecção dos interesses da parte trabalhadora:
<<1. É nula a convenção contrária aos direitos ou às garantias conferidas no presente diploma ou com eles incompatível.
2. São igualmente nulos os actos e contratos que visem a renúncia aos direitos estabelecidos no presente diploma.>>
Por outras palavras, como a declaração de remissão de dívida em questão nos presentes autos violou o princípio do “favor laboratoris” também consagrado obrigatoriamente no art.° 6.° do Decreto-Lei n.° 24/89/M, todos os créditos laborais legais da Autora sobre a Ré não podem ficar extintos por efeito dessa declaração (precisamente porque da aplicação dessa remissão, resultarão condições de trabalho menos favoráveis para a parte trabalhadora ora autora, pois ficarão muito reduzidos e negativamente afectados os seus direitos, legalmente previstos na lei laboral, a compensação pecuniária do trabalho então prestado à Ré na respectiva relação contratual nomeadamente nos dias de descanso semanal, anual e de feriados obrigatórios), com o que há que cair por terra a excepção peremptória deduzida pela Ré com base nesse contrato.
Na verdade, este princípio do favor laboratoris, como um dos derivados do princípio da protecção do trabalhador informador do Direito do Trabalho, para além de orientar o legislador na feitura das normas juslaborais (sendo exemplo paradigmático disto o próprio disposto no art.º 5.º, n.º 1, e no art.º 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril), deve ser tido pelo menos também como farol de interpretação da lei laboral, sob o qual o intérprete-aplicador do direito deve escolher, na dúvida, o sentido ou a solução que mais favorável se mostre aos trabalhadores no caso considerado, em virtude do objectivo de protecção do trabalhador que o Direito do Trabalho visa prosseguir. (Neste sentido, e para maior desenvolvimento no assunto, cfr. a Dissertação de Doutoramento de MARIA DO ROSÁRIO PALMA RAMALHO: A Autonomia Dogmática do Direito do Trabalho, in Colecção Teses, Almedina, Setembro de 2000, págs. 947 a 948 e 974 a 977, em especial, aliás já materialmente citada no acórdão de 25 de Julho de 2002, do Processo n.° 47/2002, deste Tribunal de Segunda Instância).
Assim sendo, não se pode concordar com toda a opinião diversa no assunto, mormente a constante no douto Acórdão do Venerando Tribunal de Última Instância, de 11 de Junho de 2008 no seu Processo n.o 14/2008 (a propósito de uma declaração de teor idêntico à dos presentes autos), cuja fundamentação, salvo o devido respeito, não procede, designadamente por seguintes razões, para além das já acima expostas:
– em primeiro lugar, se o tipo de declaração em causa é uma declaração de quitação com acompanhado reconhecimento negativo de dívida ainda não existente, porque é que a Ré teve que afirmar no texto da mesma declaração que aceitava o aí declarado?
– e em segundo lugar, ao declarar-se que “nenhum outro direito decorrente da relação de trabalho com a STDM subsiste”, é porque, no entender das partes, chega a existir, até a esse momento, o direito a compensação de “descansos semanais, anuais, feriados obrigatórios..., decorrentes do vínculo laboral com a STDM”, embora não se saiba do quantum exacto dessa compensação;
– daí que, em terceiro lugar, não é por acaso que foi a STDM quem começou a invocar a tese de “remissão da dívida” em contestações apresentadas em processos congéneres e também na contestação dos presentes autos;
– e em quarto lugar, mesmo dentro da própria economia da douta tese do Venerando Tribunal de Última Instância, sempre se diria que teria subsistido o mesmo estado de sujeição da parte trabalhadora declarante no momento da assinatura da declaração, porque já é facto notório, conhecido pelos Tribunais de Macau no exercício das funções jurisdicionais em todos os processos semelhantes, que quem assinou este tipo de declarações foram aqueles “ex-trabalhadores da STDM” que passaram a trabalhar, a partir dessa altura, nos casinos da Sociedade de Jogos de Macau, S.A., criada e controlada pela mesma STDM;
– e, por fim, há que atender a que em acórdãos anteriores proferidos por este Colectivo do TSI sobre a questão, nunca se afirmou que era aplicável o art.o 60.o do Decreto-Lei n.o 40/95/M, de 14 de Agosto, mas sim que “norma jurídica semelhante à do art.o 6.o do Decreto-Lei n.o 24/89/M, pode ser encontrada nas seguintes disposições do art.o 60.o do Decreto-Lei n.o 40/95/M, de 14 de Agosto”.
Termos em que há que proceder o recurso sub judice, sendo de observar que com isto já não é mister conhecer da impugnação, feita pela Autora, do “despacho proferido sobre a reclamação contra a selecção da matéria de facto” (a que se referem os pontos 1 a 8 da sua motivação de fls. 738 a 832), ou da questão de “erro na apreciação da prova” (colocada nos pontos 9 a 33 dessa motivação), tudo materialmente a propósito das circunstâncias da assinatura da declaração de fl. 177, para além de haver que notar que fica logicamente precludido o conhecimento em concreto de todas as outras questões de cariz jurídico invocadas na mesma petição do recurso, por a solução acima dada quanto ao alcance e sentido da declaração dos autos como resposta material à questão fulcral de “invalidade do contrato de remissão de créditos”, já tutelar cabalmente a posição processual da Autora.
Caberá, pois, ao Tribunal a quo conhecer do pedido da Autora (com observância do julgado por despacho judicial de fl. 921 que já homologou o termo, lavrado a fls. 917 a 917v, de desistência parcial do pedido da Autora), a não ser que haja ainda outro motivo legal a obstar a isto.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o acima exposto, acordam em conceder provimento ao recurso da Autora, revogando, por conseguinte, a sentença recorrida de absolvição da Ré do pedido, e ordenando o conhecimento pelo Tribunal a quo do pedido da Autora (com observância do julgado já feito por despacho de fl. 921 quanto à desistência parcial do pedido da Autora), a não ser que haja ainda outro motivo legal a obstar a isto.
Custas do recurso da Autora a cargo da Ré.
Macau, 13 de Janeiro de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto vencedor)
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Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
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José Maria Dias Azedo
(Relator do processo)
(Vencido. Dou como reproduzido a declaração de voto que anexei ao Acórdão hoje prolatado no Proc. n.º 611/2007)
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