Processo nº 553/2010
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I
A, submetiu através das autoridades de Portugal o pedido da sua transferência para Portugal a fim de ali continuar a cumprir a pena de prisão que se encontra a cumprir aqui na RAEM no âmbito do processo nº PTR-008-09-1A do Juízo de Instrução Criminal.
Devidamente tramitado na RAEM no âmbito do procedimento administrativo nos termos estabelecidos no artº 108º da Lei da cooperação judiciária em matéria penal (Lei nº 6/2006), o processo foi remetido a este Tribunal, onde foi registado sob o número 553/2010, para a decisão desse pedido iniciado em Portugal, para onde o requerente pretende ser transferido a fim de ali continuar a cumprir o resta da pena de prisão.
Na audiência realizada em 11AGO2010, o requerente prestou voluntariamente perante o Tribunal de Segunda Instância o seu consentimento para a transferência e declarou que o prestou com plena consciência das consequências jurídicas dai decorrentes – cf. fls. 276 e v. dos p. autos.
II
No âmbito da tramitação interna na RAEM, o Ministério Público emitiu o seguinte douto parecer quanto ao pedido de transferência:
O Ministério Público, em sede de parecer quanto à transferência do recluso A, requerida ao abrigo do Decreto-Lei n°113/99/M, de 13 de Dezembro, entende que deve tecer algumas considerações designadamente no sentido de esclarecer cabalmente a sua posição quanto às questões que vêm sendo suscitadas, particularmente, quando o recluso, através dos diversos requerimentos apresentados pelo seu advogado, pretende imputar falta de celeridade ao procedimento por realização de diligências inócuas, dupla penalização, etc.
Ora, resumidamente, e como questões essenciais teremos que ponderar sobre:
1- A verificação dos requisitos materiais para a transferência;
2- O interesse do recluso na transferência, que requereu;
3- O interesse da RAEM na consumação dessa transferência;
4- A verificação dos pressupostos subjectivos;
5- Se as partes, transferente e receptora estiverem de acordo quanto à transferência.
Quanto aos dois primeiros pontos nada se nos oferece reparar.
Já quanto ao interesse da RAEM, designadamente quanto ao haver dos bens cujo perdimento a seu favor foi decretado, entendemos que nunca poderá ser interpretado, em sede do presente procedimento, como uma dupla penalização do requerente, sendo, antes do mais, um dever e um direito da RAEM, salvaguardar a sua boa execução, tenha, ou não, o respectivo procedimento executório sido iniciado, facto que não colhe, nem pode colher, como argumento ao requerente para esgrimir falta de celeridade, quando o que realmente está em causa é a verificação de um elemento passível de determinar o indeferimento da transferência do requerente. E, certamente que este dever-interesse da RAEM, está em rota de colisão, perdoe-se-nos a expressão, com o interesse do recluso.
Ora, não tendo a transferência um carácter obrigatório, dependendo, de entre outros factores, também da vontade e do acordo das partes, pressuposto como está o interesse de acção do requerente, parece-nos que não será só a verificação dos requisitos materiais, per si, suficiente para a prolação de uma decisão favorável à transferência.
E, é o interesse da RAEM, quando estão em causa montantes tão avultados, que resulta como premissa obstaculizante à pretensão do requerente, e que não é a única.
Senão vejamos que, se bem que o requerente tenha provado suficientemente a sua ligação afectiva à parte receptora, o mesmo não podemos dizer quanto à sua ligação efectiva, em termos sócio-económicos, profissionais e pessoais.
O requerente é simultaneamente residente (permanente) de Macau e nacional português e é em Macau que, há largos anos, tem passado a sua vida, em termos familiares, sociais e profissionais. Aqui vive, aqui casou, aqui teve filhos, aqui tem a sua vida profissional.
Sem dúvida que tem família, contactos e negócios em Portugal, contudo, tal não satisfaz ou encontra eco no espirito do acordo sobre transferência de pessoas condenadas cujos objectivos estão direccionados às pessoas “que se encontram privadas da sua liberdade em virtude da comissão de um facto ilícito fora do seu território ou País ...”.
Assim, em conclusão, consideramos haver factores que obstam à transferência do recluso A para a jurisdição de Portugal, designadamente, o interesse da RAEM e a falta de ligação efectiva do recluso a Portugal.
RAEM, 22 de Janeiro de 2010.
Ai foi levantada inter alia pelo Ministério Público, como obstáculo à transferência, a questão da protecção do interesse da RAEM, face ao ainda não cumprimento por parte do recluso transferindo das obrigações pecuniárias que lhe foram judicialmente impostas na mesma sentença condenatória.
Começamos então a debruçar-nos sobre esta questão nos seguintes aspectos:
1. da natureza jurídica da decisão da admissibilidade do Chefe do Executivo, a que se alude o artº 108º/4 da Lei da Cooperação Judiciária em Matéria Penal;
2. da questão da protecção dos interesses da RAEM; e
3. da natureza da condenação no cumprimento da obrigação pecuniária.
1. da natureza jurídica da decisão da admissibilidade do Chefe do Executivo, a que se alude o artº 108º/4 da Lei da Cooperação Judiciária em Matéria Penal
A competência das várias entidades intervenientes no processo de transferência de pessoas condenadas e a sua tramitação encontram-se reguladas no artº 108º da Lei da Cooperação Judiciária em Matéria Penal (Lei nº 6/2006), que reza:
1. O representante do Ministério Público junto do tribunal que proferir a sentença deve informar a pessoa condenada, no mais curto prazo possível após o trânsito em julgado da sentença, da faculdade de solicitar a sua transferência para outro Estado ou Território, nos termos da presente lei.
2. O pedido de transferência pode ser requerido junto de autoridade da RAEM ou submetido através de autoridade de outro Estado ou Território.
3. O pedido de transferência é enviado ao Ministério Público, o qual, verificada a sua regularidade formal, elabora informação no prazo de 30 dias e submete-a à apreciação do Chefe do Executivo com vista à sua admissibilidade.
4. O Chefe do Executivo decide da admissibilidade do pedido.
5. Se o Chefe do Executivo o considerar admissível, o pedido é transmitido ao representante do Ministério Público junto do Tribunal de Segunda Instância para promover a audição, pelo juiz, da pessoa interessada na transferência, observando-se, para o efeito, o disposto na legislação processual penal quanto ao interrogatório de arguido detido.
6. O tribunal decide sobre o pedido, depois de se assegurar de que o consentimento da pessoa interessada na transferência foi dado voluntariamente e com plena consciência das consequências jurídicas que dele decorrem, nos termos previstos no n.º 3 do artigo 41.º
7. É assegurada a possibilidade de verificação, por agente consular ou outro funcionário designado de acordo com a parte requerente, da prestação do consentimento em conformidade com o disposto no número anterior.
8. A pessoa interessada na transferência é informada, por escrito, das decisões tomadas a seu respeito.
Confrontando a redacção do nº 4 com a do nº 6, verifica-se que ao Chefe do Executivo cabe proferir a decisão sobre a admissibilidade do pedido da transferência, ao passo que ao tribunal cabe decidir sobre o mérito do pedido da transferência.
Se é verdade que por razões de ordem variada, nomeadamente política, o Chefe do Executivo tem todo o poder de decidir liminarmente pela não admissão do pedido de transferência, o certo é que, uma vez admitido o pedido, o despacho da admissão do Chefe do Executivo não dispensa o Tribunal de Segunda Instância de averiguar a verificação ou não dos restantes pressupostos, de facto e de direito, da requerida transferência, a fim de decidir nos termos do disposto no artº 108º/6 da Lei nº 6/2006.
Assim, a prolação in casu do despacho do Chefe do Executivo favorável quanto à admissibilidade do pedido significa que foi dada a luz verde ao desencadeamento da tramitação do procedimento, que culminará com a decisão do Tribunal de Segunda Instância, permanecendo todavia a questão de saber se o não pagamento pelo requerente daquela quantia constitui ou não obstáculo à pretendida transferência.
2. da questão da protecção dos interesses da RAEM
O Ministério Público suscita, como obstáculo à transferência ora requerida, a questão de necessidade de protecção dos interesses da RAEM.
Nos termos do disposto no artº 2º da Lei da cooperação judiciária em matéria penal (Lei nº 6/2006), a aplicação dessa lei subordina-se à protecção da defesa nacional, das relações externas, da soberania, da segurança ou ordem pública da República Popular da China, bem como aos interesses da segurança e da ordem pública e a outros interesses da RAEM, consagrados no seu ordenamento jurídico.
De acordo com o determinado no dispositivo do Acórdão condenatório, o requerente A foi condenado na pena de prisão e no pagamento a favor da RAEM de dois montantes, um correspondente a 5% do preço do contrato de renovação da concessão celebrado entre o Governo da RAEM e a Sociedade CRS (posteriormente apurado no valor de MOP$16.462.740,20) e outro no valor de HKD$6.256.581,00.
O requerente só pagou o valor de HKD$6.256.581,00, mas não pagou ainda aqueloutra quantia no valor de MOP$16.462.740,20, conforme resulta do teor das fls. 277 dos presentes autos.
Urge saber agora se a necessidade da protecção dos interesses da RAEM constitui ou não obstáculo à autorização da requerida transferência.
Então vejamos.
In casu, estamos perante um pedido, formulado por uma pessoa condenada em Macau, que se encontra neste momento a cumprir a pena de prisão em Macau, da sua transferência para Portugal a fim de ali continuar a cumprir o resto da pena de prisão.
Entre Macau e Portugal, vigora um regime específico que é o acordo sobre a transferência de pessoas condenadas, aprovado pelo Decreto-Lei nº 113/99/M de 13DEZ.
Nesse acordo, nada se diz sobre a necessidade de protecção dos interesses da RAEM, como pressuposto da autorização da transferência.
De acordo com o princípio de prevalência de convenções internacionais, consagrado no artº 4º da Lei da cooperação judiciária em matéria penal (Lei nº 6/2006), a cooperação judiciária em matéria penal rege-se pelas normas constantes de convenções internacionais aplicáveis em Macau e, na sua falta ou insuficiência, pelas disposições dessa lei.
Uma das modalidades da cooperação judiciária em matéria penal previstas nessa Lei é justamente a da transferência de pessoas condenadas.
Assim, em princípio, aplica-se in casu apenas o Acordo celebrado entre Macau e Portugal e só na sua falta ou insuficiência, o pedido sub judice deverá ser apreciado e decidido subsidiariamente de acordo com as disposições da Lei nº 6/2006.
Portanto, para a boa decisão dessa questão suscitada pelo Ministério Público, há que averiguar se a omissão da referência no Acordo à necessidade da protecção dos interesses da RAEM constitui uma matéria pura e simplesmente não regulada ou de propósito não considerada pelas Partes como relevante à decisão do pedido da transferência, a fim de determinar a aplicabilidade subsidiária do artº 2º da Lei nº 6/2006 ao presente pedido.
Com a leitura do texto do acordo aprovado pelo D.L. nº 113/99/M de 13DEZ, nomeadamente do seu preâmbulo onde se vêem as razões que levaram ambas as partes à sua celebração, verifica-se que a cooperação judiciária em matéria penal, entre Macau e Portugal, na modalidade da transferência de pessoas condenadas, visa a possibilitar a transferência de pessoas condenadas para o seu próprio ambiente social e familiar de origem, de modo a permitir uma melhor reintegração e readaptação ao seu meio familiar, social e profissional após o cumprimento de origem.
Como condições de transferência, fica estipulado no artº 3º que:
1 — Nos termos do presente acordo, uma transferência apenas pode ter lugar nas seguintes condições:
a) Se o condenado é residente de Macau quando seja Macau a proceder à execução; ou se o condenado é nacional Português quando seja Portugal a proceder à execução;
b) Se a sentença é definitiva e não houver processos penais pendentes quanto ao condenado na jurisdição de condenação, excepto se, havendo-os:
(i) a jurisdição de condenação aceitar adiar a transferência pelo tempo necessário à tramitação do ou dos processos penais pendentes; ou
(ii) a jurisdição de condenação solicitar à jurisdição de execução a transmissão do ou dos processos penais em curso contra o arguido, e a jurisdição de execução aceitar;
c) Se, na data de recepção do pedido de transferência, a duração da condenação que o condenado tem ainda de cumprir é superior a seis meses ou indeterminada;
d) Se o condenado ou, quando em virtude da sua idade ou do seu estado físico ou mental a legislação de uma das Partes o considere necessário, o seu representante tiver consentido na transferência;
e) Se os actos ou omissões que originaram a condenação constituem um facto ilícito face à lei da jurisdição de execução ou poderiam constituir se nela tivessem sido praticados; e
f) Se as Partes estiverem de acordo quanto à transferência.
2 — Em casos excepcionais, as Partes podem acordar numa transferência mesmo quando a duração da condenação que o condenado tem ainda a cumprir é inferior à prevista na alínea c) do número 1.
3 — Qualquer das Partes pode, no momento da troca da notificação referida no artigo 17.º, indicar que pretende excluir a aplicação de um dos procedimentos referidos no número 1 do artigo 9.º
4 — Cada uma das Partes pode, em qualquer momento, mediante declaração dirigida à outra Parte, definir, no que lhe diz respeito e para os fins do presente acordo, os conceitos referidos na alínea a) do número 1.
Dentre essas cláusulas, salta-se à vista uma cláusula aberta que é a al. f), segunda a qual uma transferência apenas pode ter lugar se as Partes estiverem de acordo quanto à transferência.
O que quer dizer as partes, Macau e Portugal, podem não estar de acordo quanto à transferência por razões de ordens diferentes, nomeadamente razões que se prendem com os interesses da sua soberania, a defesa nacional, a segurança interna, assim como os outros legalmente tutelados na ordem interna.
Compreende-se a não estipulação no Acordo de uma clausula de teor idêntico ou semelhante ao disposto no artº 2º da Lei nº 6/2006, uma vez que o Acordo de 1999 foi celebrado antes do estabelecimento da RAEM e num período em que Macau se encontrava sob administração portuguesa, e cremos que foi a relação Portugal/Macau, ou seja entre um país soberano e um território sob administração desse país, que compreensivelmente não aconselhou a estipulação de uma clausula de teor semelhante ao do referido artº 2º da Lei nº 6/2006.
Com o estabelecimento da RAEM, Macau tornou-se uma região administrativa especial da República Popular da China, o que implica uma alteração substancial da relação entre Macau e Portugal, enquanto partes daquele acordo sobre a transferência de pessoas condenadas.
Na sequência dessa alteração do estatuto de Macau, foi promulgado o Aviso do Chefe do Executivo nº 24/2001, em 25 de Março de 2001, por força do qual o acordo passou a ser um acordo internacional entre o Governo de Portugal e o Governo da Região Administrativa Especial de Macau, devidamente autorizado pelo Governo Popular Central da República Popular da China.
Sendo um acordo internacional que é, justifica-se natural e perfeitamente a aplicação subsidiária do artº 2º da Lei da cooperação judiciária em matéria penal (Lei nº 6/2006), nos termos do qual a cooperação judiciária subordina-se à protecção, entre outros, dos interesses da RAEM, consagrados no seu ordenamento jurídico.
3. da natureza da condenação no cumprimento da obrigação pecuniária
Vimos que a necessidade da protecção dos interesses da RAEM é susceptível de constituir obstáculo à autorização da transferência.
Há que apurar agora se o não cumprimento, por parte do ora requerente, das obrigações pecuniárias que lhe foram impostas no Acórdão condenatório transitado em julgado, constitui ou não lesão de um dos interesses da RAEM, consagrados no seu ordenamento jurídico.
Verifica-se que no âmbito do processo de condenação, para além da pena de prisão que se encontra a cumprir, o ora requerente foi condenado no pagamento de dois montantes, um correspondente a 5% do preço do contrato de renovação da concessão celebrado entre o Governo da RAEM e a Sociedade CRS (posteriormente apurado no valor de MOP$16.462.740,20) e outro no valor de HKD$6.256.581,00.
Os tais montantes são os valores que correspondem à recompensa que o ora requerente, enquanto agente de crimes de corrupção activa, prometeu a pagar a um outro agente de correspectivos crimes de corrupção passiva.
Passemos então a averiguar a natureza dessa obrigação pecuniária, a fim de ajuizar se o crédito resultante do eventual cumprimento dessa obrigação pecuniária pode ou não integrar-se no conceito de interesses da RAEM consagrados no seu ordenamento jurídico.
Nos termos do disposto no artº 103º/1 do Código Penal, toda a recompensa dada ou prometida aos agentes de um facto ilícito típico, para eles ou para outrem, é perdida a favor da RAEM.
Quanto à sua localização sistemática no Código Penal, essa norma insere-se no Capítulo VIII do Título III, que se dedica a consequências jurídicas do facto.
Sendo uma das espécies de consequências jurídicas do facto que é, a perda a favor da RAEM da recompensa prometida aos agentes de um crime é uma providência sancionatória – cf. Figueiredo Dias, in Direito Penal Português, As consequências Jurídicas do Crime, §1014.
Na esteira do douto ensinamento do mesmo Mestre, a perda da recompensa prometida ao agente do crime visa prevenir a prática de futuros crimes, mostrando ao agente e à generalidade que, em caso de prática de um facto ilícito-típico, é sempre e em qualquer caso instaurada uma ordenação dos bens adequada ao direito – cf. ibidem.
Se é verdade que a perda da recompensa tem a natureza jurídica de uma providência sancionatória, não o é menos que, decretada pelo Tribunal a perda, a propriedade do objecto ou do valor sucedâneo em que se traduz a recompensa decretada perdida transfere para a esfera patrimonial da RAEM com o trânsito em julgado da decisão que a decretou.
Não temos dúvida de que o não cumprimento da condenação no pagamento a favor da RAEM de quantia certa ou a não execução coerciva do seu pagamento representa sempre um prejuízo de interesse patrimonial, digno da protecção jurídica, da RAEM.
Mas o que precisamos de apurar aqui é saber se a não autorização da transferência da pessoa condenada e a consequente presença física do condenado na RAEM a continuar a cumprir aqui a pena de prisão podem ou não garantir o cumprimento da obrigação ou pelo menos evitar o tal prejuízo resultante da falta do cumprimento.
Estamos aqui perante uma obrigação pecuniária.
Tal como sucede com as obrigações pecuniárias em geral, o cumprimento da obrigação é assegurado pelos bens que integram o património do devedor. O património do devedor constitui assim a garantia geral das obrigações – cf. Antunes Varela, in Das Obrigações em Geral II, 5ª edição, pág. 417.
Na matéria da execução de bens, o próprio Código de Processo Penal estabelece no seu artº 487º que em tudo o que não for especialmente previsto neste Código, a execução de bens rege-se pela legislação sobre custas e, subsidiariamente, pelo Código de Processo Civil.
Por sua vez, o Regime das Custas nos Tribunais regula nos seus artºs 110º e s.s. a matéria de pagamento coercivo de custas e multas, que, por força do citado artº 487º do CPP, se aplica à execução coerciva do pagamento de obrigações pecuniárias impostas na sentença penal.
Nos termos do disposto nos artºs 111º e s.s. desse Regime, no caso de não cumprimento voluntário, faz-se o processo com vista ao Ministério Público, informando se o devedor possui bens que possam ser penhorados. Havendo apurados bens penhoráveis do devedor, é instaurada a execução nos termos do processo civil.
Se é verdade que por remissão expressa do artº 104º do Código Penal, a regra permissiva do pagamento em prestações da pena de multa se aplica às obrigações pecuniárias impostas na sentença penal ao abrigo do disposto no artº 103º do Código Penal, o certo é que a essas obrigações pecuniárias já não se aplica a regra de convertibilidade em prisão da pena de multa não voluntariamente cumprida, prevista no artº 47º do Código Penal.
Assim, na esteira desse raciocínio, podemos concluir com a segurança razoável que face à lei, os interesses da RAEM que se traduzem no crédito resultante do cumprimento das obrigações pecuniárias impostas nos termos do artº 103º do Código Penal são tutelados pelo mecanismo de execução coerciva.
E não também pela presença ou retenção física na RAEM da pessoa condenada.
A reforçar essa conclusão, basta imaginar se uma pessoa, criminalmente punida numa pena não privativa de liberdade e no pagamento de uma certa soma pecuniária nos termos do disposto no artº 103º do Código Penal, não vier a cumprí-lo voluntariamente, poderão as autoridades competentes impor a proibição da sua ausência da RAEM ou a sua retenção física na RAEM enquanto não tiver sido voluntariamente cumprido ou coercivamente executada a tal obrigação pecuniária?
Obviamente a resposta não pode deixar de ser negativa.
Pois em lado algum da lei, está consagrado a favor da RAEM o “direito de retenção” da pessoa como garantia especial do cumprimento das obrigações pecuniárias a essa pessoa imposta a favor da RAEM!
Por outro lado, de acordo com a definição dada à expressão “condenação” no Acordo sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, a condenação significa qualquer pena ou medida privativa da liberdade, por um período determinado ou indeterminado, em virtude de um facto ilícito.
O que quer dizer que, in casu, a transferência pretendida pelo ora requerente só implica a devolução da execução da pena privativa de liberdade da jurisdição da RAEM à jurisdição de Portugal, e não também a transferência da parte referente à execução do pagamento da obrigação pecuniária que indubitavelmente pode e deve sempre processar-se na jurisdição da RAEM nos termos legais.
Cremos com as razões acima explanadas ser suficiente para julgar improcedente o argumento deduzido pelo Ministério Público no sentido de considerar o ainda não pagamento das obrigações pecuniárias no valor de MOP$16.462.740,20 como obstáculo à autorização da requerida transferência.
III
Passemos então a apreciar o outro pressuposto que a efectiva ligação do condenado à jurisdição de execução.
Conforme é exigido no preâmbulo do Acordo sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, aprovado pelo D. L. Nº 113/99/M de 13DEZ, a transferência pressupõe uma efectiva ligação do condenado à jurisdição de execução, de modo a permitir uma melhor reintegração ao seu meio familiar, social e profissional após o cumprimento da pena.
A este propósito, o Ministério Público destacou no seu douto parecer, ora acima integralmente transcrito, que:
......se bem que o requerente tenha provado suficientemente a sua ligação afectiva à parte receptora, o mesmo não podemos dizer quanto à sua ligação efectiva, em termos sócio-económicos, profissionais e pessoais.
O requerente é simultaneamente residente (permanente) de Macau e nacional português e é em Macau que, há largos anos, tem passado a sua vida, em termos familiares, sociais e profissionais. Aqui vive, aqui casou, aqui teve filhos, aqui tem a sua vida profissional.
Sem dúvida que tem família, contactos e negócios em Portugal, contudo, tal não satisfaz ou encontra eco no espirito do acordo sobre transferência de pessoas condenadas cujos objectivos estão direccionados às pessoas “que se encontram privadas da sua liberdade em virtude da comissão de um facto ilícito fora do seu território ou País ...”.
Assim, em conclusão, consideramos haver factores que obstam à transferência do recluso A para a jurisdição de Portugal, designadamente, o interesse da RAEM e a falta de ligação efectiva do recluso a Portugal.
Para sustentar a verificação desse pressuposto, o ora requerente alegou a existência de familiares da linha recta e colateral e amigos a viver em Portugal, assim como outros elementos que reflectem a sua ligação a Portugal, nomeadamente a prestação do serviço militar a Portugal e a sua relação nas actividades profissionais com empresas sediadas em Portugal.
A este propósito, conforme se vê a fls. 184, 185, 192 a 207 dos autos, não temos dúvidas de que existem efectivamente familiares da linha recta e colateral que se encontram a viver em Portugal, e além isso, o ora requerente tem também um grande universo de amigos que residem em Portugal.
Quanto ao aspecto da ligação efectiva à jurisdição de execução, o ora requerente juntou aos autos uma declaração de seguinte teor:
A, arguido/recluso melhor identificado nos autos supra cotados, sob compromisso de honra, declara a V. Exª o seguinte:
1. A sua ligação a Portugal é intensa e sempre esteve perfeitamente integrado na sociedade portuguesa desde que nasceu;
2. A sua língua materna sempre foi a língua portuguesa,
3. A sua educação foi sempre caracterizada pelos valores e princípios portugueses, católicos;
4. Pertenceu a organizações juvenis portuguesas, integrou órgãos sociais de organismos macaenses de matriz portuguesa, estudou no Liceu Português de Macau e concluiu o ensino superior em Portugal;
5. Fez parte do exército português durante a guerra colonial, frequentando as Escolas Práticas de Infantaria e de Artilharia do Exercito Português, cumprindo exemplarmente o serviço militar como oficial, com louvores em campanha;
6. Embora tenha feito parte da sua vida em Macau, terra onde nasceu, é descendente duma velha e prestigiada família portuguesa que nunca deixou de manter fortalecidas as suas ligações a Portugal;
7. Visitou, até à sua prisão, o país do qual é nacional, onde tem casa e a maioria da sua família a viver; incluindo a sua mãe (de avançada idade), a sua única irmã e mulher e muitos bons amigos;
8. O seu pai faleceu há alguns anos em Portugal;
9. Sempre manteve, ao longo da sua vida profissional em Macau, intensas relações empresariais com organismos e empresas portuguesas;
10. Era o seu propósito, antes de começar a cumprir pena, fixar-se definitivamente em Portugal, após a sua aposentação, estando já completamente desligado de qualquer actividade profissional em Macau.
11. Foi duplamente condenado (judicialmente e socialmente) em virtude da mediatização exagerada que foi dado ao seu caso, sendo reconhecido que em Macau a sua ressocialização social e profissional é completamente impossível;
12. Para além da sua nacionalidade é assumidamente português, por convicção e por inabalável vontade e o pedido de transferência por si feito somente tem como único objectivo permitir a sua reinserção social e reintegração e readaptação ao meio familiar, social e profissional após o cumprimento da pena.
De acordo com elementos documentais juntos e constantes a fls. 208 e s.s., cuja autenticidade se não mostra questionável, é de considerar como processualmente provados os factos que o ora requerente declarou.
Sintetizando os factos alegados e por nós dados provados, é assente a seguinte factualidade com relevância à decisão do pedido de transferência:
* Ser titular do BIRM e cidadão nacional de Portugal;
* A língua materna é a língua portuguesa;
* Apesar de ser residente em Macau, o requerente tem residência em Portugal, onde vivem a maioria da família, a esposa, a mãe, a irmã, e certo número de familiares da linha recta e colateral;
* Frequentou o liceu português em Macau e depois formou-se no ensino universitário em Portugal;
* Prestou serviço militar no exército português, tendo participado na guerra colonial;
* Casou-se em Portugal;
* Além das actividades profissionais em Macau, tem também ligações com empresas portuguesas na sua vida profissional;
Cremos que esses elementos são bem demonstrativos da existência de uma efectiva ligação do ora requerente a Portugal, onde existe um ambiente propício à sua reinserção social após a sua eventual libertação condicional e a libertação definitiva, nomeadamente no que diz respeito à língua e à cultura, e pode contar nomeadamente com um forte apoio familiar, não só durante o cumprimento da pena de prisão, como também na eventual liberdade condicional ou até após o fim do cumprimento da pena.
IV
Finalmente, cumpre averiguar se se verificam as restantes condições previstas em várias alíneas do artº 3º do Acordo sobre a Transferência de Pessoas Condenadas, celebrado entre Portugal e a RAEM.
O requerente é nacional português– al. a).
Já transitou em julgado a sentença cuja condenação o requerente pretende cumprir em Portugal e inexistência de outros processos penais pendentes contra o requerente na RAEM – al. b).
A duração da pena de prisão que resta por cumprir é bem superior a seis meses – al. c).
Assim, podemos concluir que se verificam todos os pressupostos para autorizar a requerida transferência.
V
Tudo visto, resta decidir.
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em autorizar a transferência de A para Portugal, a fim de ali continuar a cumprir a pena de prisão liquidada no processo PEP-008-09-1 do 1º JIC, na parte que ainda fica por cumprir, sem prejuízo da execução, na jurisdição da RAEM, da obrigação pecuniária que lhe foi imposta na decisão condenatória proferida nos autos do processo CR3-07-0215-PCC.
Sem custas a cargo do requerente.
Comunicação ao Governo da RAEM.
Notifique o Ministério Público e o requerente na sua pessoa e na pessoa do seu Mandatário.
RAEM, 16DEZ2010
_________________________
Lai Kin Hong
(Relator)
_________________________
Choi Mou Pan
(Primeiro Juiz-Adjunto)
_________________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
Ac. 553/2010-1