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Processo n. 842/2010
Recurso Jurisdicional (civil e laboral)
Descritores: Providência cautelar
Direitos de personalidade

SUMÁRIO:
I- Assim como em qualquer espaço privado (estabelecimento comercial ou residência particular) pode ser impedido de entrar quem o seu dono quiser, mais compreensível se torna que esse impedimento seja criado por uma pessoa relativamente a outra de quem já sentiu ofensa ou dano.
II- Além do aspecto criminal associado a determinados comportamentos, e até mesmo da responsabilidade civil que deles pode derivar (art. 67º, n.s 1 e 2, do Cod. Civil), a ofensa da honra e da dignidade moral através de imputações mais ou menos verdadeiras merece a sua defesa em tribunal por outra via, e uma delas é a da providência cautelar comum, visando a não repetição de comportamentos ofensivos e danosos.

Processo n.º 842/2010
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 27/Janeiro/2011
Recorrente: A
Recorrido: B
Companhia de Engenharia C, Limitada
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I – RELATÓRIO
A, Requerida no procedimento cautelar não especificado, em que são Requerentes B (1.º Requerente) e Companhia de Engenharia C, Limitada (2.ª Requerente), inconformada com o acórdão de fls. 60 e sgs., que deferiu as providências requeridas por estes, dele interpôs o presente recurso jurisdicional.
Terminou as suas alegações com as seguintes conclusões:
1. O acórdão proferido nos autos a fls. 60 e ss. de 23/07/2010, que deferiu as providências requeridas pelos Requerentes, é ilegal, por se verificar violação e erro de julgamento na interpretação e aplicação de norma jurídica (artigos 326.º e 332.º, n.os 1 e 2 do CPC).
2. A Recorrente queria apenas procurar resolver o litígio entre os Requerentes e o seu marido extrajudicialmente, não tendo a mínima intenção de perturbar o funcionamento da 2.ª Requerente nem injuriar a pessoa do 1.º Requerente.
3. Nos termos do n.º 1 do artigo 332.º do CPC, são dois os requisitos da providência cautelar: (i) que o requerente seja titular dum direito - fumus boni iuris; e (ii) que esse direito esteja ameaçado de lesão grave e de difícil reparação – periculum in mora.
4. Todavia, dos autos não foram provados nenhuns factos comprovativos de tal lesão grave e de difícil reparação, pelo que não existe um requisito indispensável para que as providências requeridas sejam decretadas.
5. Por outro lado, para as providências ora requeridas, exige-se que as mesmas sejam adequadas para evitar a lesão. A isso acresce que o prejuízo resultante da providência para o requerido não exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar, ao abrigo do n.º 2 do artigo 332.º do CPC.
6. De facto, o deferimento das providências causará gravíssimos prejuízos à Recorrente, nomeadamente, aos seus direitos fundamentais humanos, nomeadamente, a liberdade de se circular em todos os lugares públicos e de manifestar a sua pretensão quando se achar injusto, o que exceda consideravelmente o dano alegado pelos Requerentes.
7. Pelo exposto, foram violados, entre outros, artigos 326.º e 332.º, n.os 1 e 2 do CPC.
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Os recorridos B e Companhia de engenharia C, Limitada, por sua vez, apresentaram as suas contra-alegações, que concluíram do seguinte modo:
A. O acórdão recorrido não padece de qualquer das situações previstas no art.º 571º do Código de Processo Civil;
B. Segundo a motivação de recurso da recorrente, tendo esta apenas repetido o que alegado por si na primeira instância - não tinha intenção de causar à outra parte perturbação e lesões de difícil de reparação, bem como, ela tinha direito a praticar o seu acto próprio;
C. Responderam os recorridos, concluindo que a motivação da recorrente totalmente não procede;
D. Em particular, nos termos do principio de facto e da legalidade, o recurso carece de fundamento;
E. Pelo que, o acórdão recorrido é uma decisão muito justa e imparcial.
F. Assim sendo, a motivação da recorrente não procede, devendo ser rejeitada de acordo com a lei.
Face ao exposto, requer-se aos meritíssimos juízes de hierarquia superior que seja rejeitado o recurso da recorrente, mantendo o acórdão recorrido.
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II – FACTOS
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade:
– O requerente B é sócio da requerente Companhia de Engenharia C, Lda, bem como membro do órgão administrativo da referida companhia.
– A requerente Companhia de Engenharia C, Lda. é uma companhia registada em Macau, que se dedica principalmente às actividades de construção e manutenção de bens imóveis, bem como às obras de construção civil, de engenharia, de água e electricidade, de anti-incêndio, de ar condicionado e de canalizações.
– A requerida A(陳蘭芳)é cônjuge de D(XXX), e este explora actividade de decoração, possuindo a Empresa de Obras de Decoração Interior E(XX裝修工程公司)como empresário individual criado na Direcção dos Serviços de Finanças.
– No final de 2006, a Empresa de Obras de Decoração Interior E, explorada pelo senhor D, chegou a acordo de colaboração com a requerente Companhia de Engenharia C, Lda., face ao âmbito das actividades exploradas pelas partes.
– Até meados de 2007 e princípio de 2008, na colaboração das partes, surgiu um conflito sobre as quantias de obras. Ambas as partes, a Empresa de Obras de Decoração Interior E e a Companhia de Engenharia C Lda, enviaram ofício à outra parte através do seu advogado, exigindo da parte oposta o cumprimento de pagamento de quantias de obras.
– Face a isso, a Companhia de Engenharia C, Lda. pretendeu recorrer ao tribunal para reclamar o seu crédito.
– No dia 14 de Março de 2008, a requerida afixou aviso com caracteres maiores, tendo empregado da requerente Companhia de Engenharia C apresentado queixa à polícia e sido então instaurado o processo;
– No dia 13 de Julho de 2008, a requerida, ao ver a esposa do requerente B que estava a passar pelas proximidades da Rua de Francisco Xavier Pereira, ralhou contra ela;
– No dia 28 de Fevereiro de 2010, por volta das 21H00, a requerida, perante situação em que não foi convidada, dirigiu-se ao jantar realizado no Hotel XX pela Companhia de Engenharia C, Lda, para a festa do Ano Novo Lunar, onde provocou perturbações, quando um dos convidados de nome XXX tentou impedi-la, a requerida falou em voz alta: “Assédio Sexual”. Ainda empurrou os convidados no local, tendo causado a XXX quem tentou aconselhar e impedi-la que ficou caído no chão, mas a requerida, por sua vez, deitou-se no chão gritando ser agredida e exigindo o exame de ferimento. Foi por isso instaurado o Processo.
– A requerente Companhia de Engenharia C e o requerente B não conseguiram sofrer o acto da requerida.
– Do acto praticado pela requerida resultou influência negativa para a dignidade e a fama pessoal do requerente B, bem como para a segurança da sua família e para a credibilidade que os clientes têm para com ele.
– A requerente Companhia de Engenharia C foi notificado em Fevereiro de 2009 pelo Ministério Público de que, embora o acto da requerida fosse considerado inadequado, o qual não constituiu crime, pelo que foi proferido o despacho de arquivamento.
– A Requerida Chegou a dirigir-se ao escritório da 2ª Requerente para falar directamente com o 1º Requerente, procurando resolver o litígio entre os Requerentes e o marido dela por via extrajudicial.
– Os Requerentes não ligaram à Requerida e não quis liquidar a dívida para com o seu marido.
– Face à posição tomada pelos Requerentes, a Requerida pôs um papel de formato A4 na porta do escritório da 2ª Requerente em 14 de Março de 2008, procurando manifestar assim a sua pretensão.
– O que estava escrito nesse papel posto na porta do escritório da 2ª Requerente é: “Companhia C, B devolvem-me dinheiro” (C工程, B, 還我血汗錢).
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III – FUNDAMENTOS
    A matéria de facto, muito resumidamente, é a seguinte:
    Foi interposta por B e por “Companhia de Engenharia C, limitada” uma providência cautelar contra A. Esta é casada com D, empresário em nome individual, dedicado a actividade de decoração de interiores, através da Empresa de Obras de Decoração Interior E. Esta empresa e a requerente C, Lda, estabeleceram uma relação contratual, em que a primeira prestaria serviços no ramo a que se dedica. Houve desentendimentos a partir de certa altura sobre o pagamento do serviço prestado. E, na sequência disso, a Companhia de Engenharia C, Lda pretendeu recorrer a tribunal. A partir de certa altura a requerida, ora recorrente, teve o seguinte comportamento:
    - Dirigiu-se às instalações da 2ª requerente para resolver o litígio e tentar que os requerentes da providência saldassem a dívida para com o seu marido, o que não conseguiu (facto 25 da oposição);
    - Fixou um aviso com grandes caracteres (facto #7 da p.i.);
    - Afixou um papel de formato A-4 à porta do escritório da 2ª requerente, manifestando a sua pretensão, dizendo: “Companhia C, B, devolvam-me o dinheiro” (facto 31 e 32 da oposição).
    - Ralhou à esposa do 1º requerente da providência (facto #8 da p.i.);
    - Provocou uma cena num jantar no Hotel XX organizado pela 2ª requerente (facto #9 da p.i.);
    - Esta cena (melhor descrita no facto n. 9) resultou em influência negativa para a dignidade e fama pessoal do requerente, a segurança da sua família e a credibilidade perante os seus clientes (facto # 10 da p.i.).
    Foi com base nesta materialidade que a 1ª instância decidiu:
    - Proibir a requerido A de dirigir-se ao escritório da 2ª requerente, “Companhia de engenharia C”, bem como ao domicílio profissional e à residência do 1º requerente B;
    - Proibir a requerida de praticar qualquer acto que provoque perturbação ao funcionamento administrativo da 2ª requerente, bem como de praticar aos empregados e clientes no referido estabelecimento quaisquer actos ou palavras que prejudiquem a fama ou reputação dos requerentes: e
    - Proibir a requerida de comparecer em actividades públicas realizadas pelos requerentes para praticar quaisquer actos ou proferir palavras de perturbação, ou praticar acto ou proferir palavras que causem lesão à fama e à reputação dos requerentes.
    É contra esta decisão, que a então requerida A se insurge, interpondo o presente recurso jurisdicional, por a considerar ilegal.
    Ilegal, diz, por não estarem provados factos que revelem a lesão grave e de difícil reparação de que trata o art. 332º, n.1, do CPC. Ilegal, ainda, por entender que a providência não é adequada para evitar a lesão e, por outro lado, por o dano na sua esfera jurídica ser maior do que o dano que com a providência os requerentes pretendiam evitar. E tal dano recairia, nomeadamente, nos seus “direitos fundamentais humanos”, na liberdade de circular em todos os lugares públicos e de manifestar a sua pretensão quando se achar injustiçada.
    Vejamos.
    O que está patente é um alegado crédito que o marido da ora recorrente, através da sua empresa, terá sobre os recorridos no âmbito de relações comerciais com estes estabelecidas. E pretendendo a ora recorrente lograr obter o pagamento da dívida, reagiu como vem atrás descrito.
    Pergunta-se: estarão verificados os requisitos de que depende a concessão da providência?
    A sentença julgou que sim e estamos de acordo com o julgado.
    Na verdade, se bem que não esteja impedida de tentar a resolução do conflito de natureza civil e creditícia que opõe o seu marido aos ora recorridos, o certo é que a recorrente não pode, por causa disso, atingir a honra do 1º recorrido, nem da sua esposa, nem tomar atitudes nas instalações da 2ª recorrida que perturbem o seu normal funcionamento e a imagem positiva que, eventualmente, esta tiver criado na praça ou perante os seus co-contratantes, actuais ou futuros. Além do aspecto criminal associável a tais comportamentos, e até mesmo da responsabilidade civil que deles pode derivar (cfr. art. 67º, n.1 e 2, do Cod. Civil), a ofensa da honra e da dignidade moral através de imputações mais ou menos verdadeiras merece defesa em tribunal por outra via. E uma delas é, justamente, a da providência cautelar comum , com vista à não repetição de comportamentos ofensivos e danosos (art. 67º, cit., n. 3 e 4).
    Assim o decidiram, por exemplo, os Acs. da Relação de Lisboa, de 18/09/2007, no Proc. n. 6973/2007-11 e de 14/09/2010, no Proc. n. 9574/092.
    Ora, os factos que a sentença deu por verificados constituem procedimento incorrecto, mesmo que seja verdadeira a razão subjacente, isto é, mesmo que os recorridos estejam realmente a dever dinheiro ao marido da recorrente. Com efeito, a atitude desta, pelo excesso em que incorreu perante a aparente recusa dos alegados devedores, pode, se repetida, causar grave lesão do direito dos recorridos, tanto individualmente, como do ponto de vista da pessoa colectiva que a 2ª recorrida representa. E admitimos que essa lesão possa ser dificilmente reparável. Basta pensar na hipótese de se espalhar a ideia de que os recorridos são “maus pagadores”, que não cumprem os compromissos comerciais ou contratuais. Se disseminada esta ideia, qualquer cliente, actual ou potencial, terá como reacção normal desviar-se de qualquer relação com os recorridos e, então, facilmente se adivinham os incalculáveis prejuízos na sua esfera comercial, económica, financeira, na sua carteira de clientes, etc. Portanto, cremos que o receio revelado pelos recorridos se ajusta bem à situação prevista no art. 326º, n.1 e 332º, n. 1, ambos do CPC.
    A recorrente, no entanto, argumenta que o prejuízo para a sua própria esfera jurídica, em resultado do deferimento da providência, é superior ao dano que com esta os recorridos pretenderam evitar. E isto porque estaria impedida de circular nos locais públicos, de se expressar, de manifestar a sua pretensão. Caso em que, em sua opinião, estaria preenchido o requisito negativo do art. 332º, n. 2, do CPC.
    Ora, é evidente que a sentença sob censura não coarctou a liberdade de movimentos da recorrente, nem a de expressão, nem a de manifestação de pretensão, porque representam direitos com a mesma dignidade que os invocados pelos recorridos. A compressão dos direitos de personalidade da recorrente só é tolerável na exacta medida em que a sua atitude atingir e ofender idênticos direitos daqueles. Quer dizer, a recorrente só fica afectada na sua liberdade sempre e só quando o seu exercício puder colidir com a tranquilidade, com a paz comercial, com a imagem, com a dignidade e com os interesses legítimos daqueles outros. É esse o sentido da decisão tomada na 1ª instância. Dúvidas haveria apenas quanto à primeira parte da decisão (proibição de a recorrente se dirigir ao escritório da 2ª recorrida ou a casa do 1º recorrido). Mas, nem esta proibição é desajustada ou desadequada. Com efeito, face aos comportamentos aparentemente impróprios da recorrente, nenhum dos recorridos é com ela obrigado a dialogar ou a estabelecer qualquer relação. E, por outro lado, assim como em qualquer espaço privado (estabelecimento comercial ou residência particular) pode ser impedido de entrar quem o seu dono quiser3, mais compreensível se torna que esse impedimento seja criado por uma pessoa relativamente a outra de quem já sentiu ofensa ou dano.
    Eis a razão por que entendemos não se verificar a razão invocada pela recorrente para a inaplicabilidade da decisão recorrida.
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IV – DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
    Custas pela recorrente.
Macau, 27 de Janeiro de 2011.
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 “1. A lei civil, nos termos do art. 70º do c. civil, para o caso da violação dos direitos de personalidade, facultou o uso das providências cautelares não só com o fim de evitar a consumação da ameaça ou até mesmo nos casos em que o fim do seu emprego seja apenas atenuar os efeitos de uma ofensa já cometida.
2. É admissível a aplicação em procedimento cautelar civil de uma providência mesmo que possa também configurar uma medida processual penal de coacção”.
2 “I – Sendo afixado um cartaz onde são atribuídos, ao requerente da providência cautelar e a outras pessoas, os epítetos de incumpridores e devedores relapsos, tem aquele legitimidade activa para requerer a sua retirada por implicar violação do seu direito à honra e consideração social, o que não é prejudicado por aquelas outras pessoas não formularem o mesmo pedido”.
3 Há estabelecimentos que deixam bem claro e em lugar bem visível a reserva do direito de admissão de clientes.
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