Processo n.º 86/2010
(Recurso Cível)
Data: 7/Outubro/2010
Assuntos :
- Convenção da forma escrita para a interpelação
- Incumprimento definitivo e culposo
- Resolução do contrato
SUMÁRIO :
1. Se num determinado contrato promessa for convencionada a forma escrita para a interpelação de cumprimento, essa forma não pode ser substituída pela mera interpelação verbal.
2. Demonstra incumprimento definitivo do promitente vendedor se este vende o objecto do contrato a terceiro, não obstante o comprador estar em dívida com algumas prestações, tendo sido apenas verbalmente instado a que pagasse e não obstante o promitente vendedor se comprometer a que o terceiro adquirente transmitisse os bens objecto do contrato ao promitente comprador, se se verifica que sobre essa transmissão incidia uma acção pauliana, não ficando o promitente comprador seguro do desfecho dessa acção e da desoneração dos bens que viesse a adquirir.
O Relator
Processo n.º 86/2010
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 7/Outubro/2010
Recorrente: A, Limitada
Recorrida: B, Limitada
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
1. A B, Limitada,
intentou uma acção declarativa com processo ordinário
contra A, Limitada,
alegando uma relação negocial entre si e incumprimento por parte desta.
A Ré contestou a acção, tendo deduzido pedido reconvencional e contrapondo o incumprimento da A..
A acção seguiu os seus trâmites e procedeu-se a julgamento.
A final foi proferida a seguinte decisão:
“Pelo exposto, julgo parcialmente a acção e na consequência:
a) Declara-se resolvidos os contratos-promessa de compra e venda celebrado entre a A. e a R. em 24 de Julho de 1994 em relação as fracções autónomas designadas por A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, O, S, T, U, V, W, X, Y, Z, AB e AC, todas do prédio descrito sob o n.º XXX (BXXX, XXV).
b) Condena a Ré no pagamento à A. HKD$14,146,100.00 (catorze milhões cento e quarenta e seis mil e cem dólares de Hong Kong), correspondente ao dobro do sinal pagos.
Julgo a reconvenção parcialmente procedente e na consequência:
c) Declara-se resolvidos os contratos-promessa de compra e venda celebrado entre a A. e a R. em 24 de Julho de 1994 em relação as fracções autónomas AD, AE, AF, AG, AH, AI, AJ, AK, AL, AM, AN, AO, AP, AW e AR, todas do mesmo prédio descrito sob o n.º XXX (BXXXX, XXV).
d) Reconhece à R. o direito de fazer sua as importâncias recebidas a título de sinal no âmbito dos contratos-promessa mencionados na alínea anterior, no valor total de HKD$4,511,898.00 (quatro milhões, quinhentas e onze mil, oitocentos e noventa e oito dólares de Hong Kong).
e) A A. não é parte litigante de má fé.
d) Absolve a Autora do pedido de indemnização por litigância de má fé.
*
Custas pela A. e a R. conforme o seu decaimento.”
2. Inconformada, recorre a Ré A, Limitada, alegando em sede de conclusões:
O presente recurso tem por objecto não só a sentença que julgou parcialmente provada a acção e em consequência declarou "resolvidos os contratos-promessa de compra e venda celebrados entre a A. e a R. em 24 de Julho de 1994 em relação às fracções autónomas designadas por A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, O, S, T, U, V, W, X, Y, Z, AB e AC todas do prédio descrito sob o n.º XXX" e condenou a "Ré no pagamento à A. HKD$14,146,100.00 (catorze milhões cento e quarenta e seis mil e cem dólares de Hong Kong), correspondente ao dobro do sinal pago" mas também o acórdão proferido pelo Tribunal Colectivo sobre a matéria de facto.
A impugnação da decisão de facto incide sobre a resposta dada pelo Tribunal Colectivo ao quesito 20º da base instrutória.
No referido artigo da base instrutória (que corresponde grosso modo aos artigos 60º a 81º e 145º da contestação) questionava-se se a Autora "não pagou as segunda a sétima prestações dos preços relativos aos vários contratos promessa, apesar de várias e repetidas inte1pelações da Ré". Na respectiva resposta o Tribunal Colectivo apenas considerou provada a primeira parte do aludido quesito, ou seja que "a autora não pagou as segunda a sétima prestações dos preços relativos aos vários contratos promessa”.
A resposta que o Tribunal Colectivo proferiu quanto ao quesito 20º não reflecte a realidade provada em julgamento e que é decisiva para a boa decisão da lide, pois ignorou os inúmeros contactos e reuniões mantidos entre a Autora e a Ré e nos quais esta deu conta do andamento das obras do edifício de que fazem parte as fracções autónomas objecto dos contratos promessa em apreço nos autos e também as interpelações verbais que a Ré dirigiu à Autora no sentido de cumprir as prestações a que se obrigara nos termos dos referidos contratos.
As respostas aos quesitos têm sempre de ser proferidas de acordo com a distribuição do ónus da prova e enquadradas nos articulados de onde os quesitos a que se responde são extraídos, princípio que não foi respeitado pelo Tribunal Colectivo na resposta ao quesito 20°.
O quesito 20° encontra correspondência nos artigos 60 a 81° da contestação, artigos nos quais a ora Recorrente expôs factos relativos ao desenvolvimento das diversas fases da construção sub judice e à sua importância determinante no vencimento sucessivo das prestações contratualmente devidas, tendo alegado, designadamente, que na conclusão das sucessivas fases sempre notificou a Autora, ainda que de forma verbal, nos termos e prazos contratualmente previstos para que esta procedesse aos pagamentos parciais também contratualmente acordados.
Por outro lado, é também inquestionável que a elaboração da base instrutória tem de ser feita de acordo com as normas que presidem à distribuição do ónus da prova, sendo como tal aconselhável que ao decidir sobre a matéria de facto o tribunal vá para além da resposta meramente afirmativa ou negativa e dê também respostas restritivas ou explicativas limitado porém às alegações de facto que as partes fizeram, por força do disposto no artigo 657° do CPC.
E se tal princípio foi observado pelo Tribunal Colectivo na resposta aos quesitos 6°, 7° e 8°, restringindo a respectiva resposta ao dar apenas como provado que a Autora nunca foi notificada por escrito para o pagamento do que quer que fosse e que nunca a Ré deu conhecimento or escrito à Autora sobre o progresso das obras, quando o que aí se questionava era a negação tout court da existência de quaisquer contactos entre Autora e Ré, já o mesmo não se passou na resposta ao quesito 20°, optando o Tribunal Colectivo por uma resposta meramente negativa (não considerando provado a existência de interpelações por parte da Ré) quando o que se impunha, em face da prova produzida e daquilo que foi alegado pela parte a quem competia provar o quesito 20°, era que o Tribunal desse como provada a existência das referidas interpelações explicando, no entanto, que as mesmas foram apenas verbais.
Ao invés, na apreciação da prova e na consequente resposta ao quesito 20.° o Tribunal Colectivo parece ter adoptado como único critério indagatório aquele que resulta da tese jurídica que a Autora defende e que se limita a procurar saber se as interpelações que a Ré dirigiu à Autora observaram a forma escrita.
Este equívoco do Tribunal Colectivo acaba por ser revelado pelo Meritíssimo Juiz a quo ao referir, na sentença recorrida, que era impossível a Autora não ter conhecimento sobre o progresso das obras: "É evidente, a A. não poderia não ter conhecimento o progresso das obras". Ora, se era evidente tal evidência deveria ter sido transposta para o acórdão proferido sobre a matéria de facto, nomeadamente na resposta ao quesito 20.°.
Acresce que, ao não considerar provado na sua íntegra o quesito 20.°, com a explicação de que as interpelações que aí se referem revestiram a forma verbal, optando por apenas considerar relevante para a decisão da causa a existência ou inexistência de notificações ou interpelações por escrito o Tribunal Colectivo não só extravasou as suas funções, ao fazer um julgamento de direito que lhe está vedado por lei, violando o artigo 556.° do Código de Processo Civil, como cometeu um erro de julgamento pois a existência dos contactos entre a Autora e a Ré provam o incumprimento daquela.
Apenas acrescentando-se a expressão “apesar de várias interpelações verbais da Ré” à redacção do quesito 20.° se traduzirá com rigor e de forma fidedigna o resultado da prova produzida e que vai toda no sentido de demonstrar a existência de interpelações para pagamento, pese embora não escritas como a Ré sempre admitiu.
Os concretos meios de prova constantes do processo que se tivesse dado como assente a supra mencionada redacção do artigo 20.° da base instrutória são o depoimento das testemunhas arroladas pela Ré; o depoimento de parte do representante da Autora e da posterior acareação a que foi sujeito com a primeira testemunha da Ré e os documentos 7 a 9 juntos com a contestação.
Do depoimento da testemunha C (que foi quem acompanhou durante todos estes anos a problemática dos contratos promessa, não tendo, por outro lado, qualquer interesse directo no desfecho da causa) resulta claro (i) que a verdadeira razão para o não pagamento das prestações em falta por parte da Autora foi a sua falta de liquidez financeira (“Porque eles não tinham dinheiro para pagar”) e não a esfarrapada desculpa de nunca terem sido notificados por escrito; (ii) a existência de diversas interpelações dirigidas à Autora no sentido de esta proceder ao pagamento das prestações em falta com a advertência cominatória de que se o não fizesse os contratos considerar-se-iam resolvidos ("Insistimos várias vezes para efectuarem os pagamentos e não conseguimos. Depois, conforme o decorrer das fases de construção a gente informou, nós informámos. Mesmo assim, mesmo decorrido todo esse tempo e decorridas todas estas fases não havia meio de conseguirem pagar o dinheiro", "Na altura cheguei a falar pessoalmente com o D, de que se continuasse a não pagar a gente consideraria sem efeito aquela compra e ficava com sinal."; e (iii) a permanência dos contactos que a Autora e Ré foram mantendo ao longos dos anos sobre este assunto e que incluíram conversas, reuniões, contactos pessoais e telefónicos, deslocações à obra dos gerentes da Autora, acompanhados gerentes da Ré, contactos esses que serviram para que a Autora fosse sendo posta ao corrente da evolução das obras e também para a Ré exigir daquela o pagamento das prestações em falta.
A segunda testemunha arrolada pela Ré confirmou também a existência de inúmeros contactos entre as partes que serviram não só para discutir o andamento das obras mas também para a Ré interpelar a Autora para proceder ao pagamento das prestações do preço em falta.
A referida testemunha declarou ter sido ela própria a assumir o encargo de proceder à marcação dessas reuniões (o que demonstra bem a total falta de credibilidade da tese que a Autora trouxe a juízo e que se traduzia na negação pura e simples de qualquer Conversa entre ela e a Ré) e de interpelar a promitente compradora no sentido de proceder aos pagamentos em falta: "Eu tinha referido que chegou o período de pagar as prestações (...) Bem só recebemos 5%, a partir daí não recebemos mais, mas a partir daí nós exigimos várias vezes.".
Por outro lado, à semelhança do que decorre do depoimento da primeira testemunha arrolada pela Ré, também do depoimento desta testemunha é possível concluir que a necessidade de as notificações ou interpelações previstas nos contratos observarem a forma escrita foi dispensada de comum acordo por ambas as partes que as substituíram, se não de modo expresso pelo menos tacitamente, pelos contactos e interpelações verbais frequentes que foram mantendo ao longo de todos estes anos: "Como havia um contacto pessoal, telefónico, até pessoal, terá sido essa a razão para não haver cartas? De facto, não se encontram cartas a pedir o pagamento. Poderá ser essa a explicação? Eu acho que sim").
A terceira testemunha da Ré - E - que também prestou depoimento á matéria do quesito 20.º referiu aquilo que também a dou ta sentença concluiu ser evidente: a circunstância de ser impossível que a Autora não soubesse da evolução das obras deste empreendimento, o que permite concluir pelo perfeito conhecimento que a Autora tinha do vencimento da sua obrigação em proceder ao pagamento das prestações relativas ao preço. Por outro lado, a testemunha em apreço confirma também o conhecimento que os responsáveis das duas sociedades tinham entre si e a existência de contactos e interpelações no sentido de a Autora cumprir as prestações que tinha a seu cargo.
Também do depoimento prestado pelo gerente da B e da posterior acareação entre ele e a primeira testemunha da Ré resulta inequívoca a existência de interpelações verbais dirigidas à Autora pela Ré, bem como a infirmação de toda a fantasiosa estória que a Autora contou e que se traduzia numa angélica ignorância de tudo o que dissesse respeito à construção do prédio.
São manifestas as contradições entre aquilo que o representante legal da Autora declarou no seu depoimento de parte e aquilo que referiu posteriormente aquando da alegada acareação, não só quanto ao conhecimento que tinha dos representantes da Ré mas também quanto à existência de contactos entre as duas partes sobre o progresso das obras e a necessidade de a Autora proceder ao pagamento das prestações do preço, contactos cuja existência acabou por confessar: "Não tinha muitos contactos, o que significa uma ou duas vezes... Uma ou duas vezes não posso negar. Não teve contactos frequentes para discutir o assunto.".
Os documentos 7 a 9 juntos com a contestação constituem também um forte indício no sentido de ser dado como assente a existência de várias interpelações verbais dirigidas à Autora pela Ré para proceder ao pagamento do remanescente do preço dos contratos promessa.
Com efeito, esses documentos demonstram a veracidade da versão da Ré e que vai no sentido de em inícios de Setembro de 1994, em resultado do atraso no cumprimento das suas obrigações, se terem verificado várias reuniões entre a Autora e Ré, nas quais aquela foi informada do andamento das obras e que deveria proceder ao pagamento das suas obrigações contratuais, nomeadamente o pagamento das segunda e terceiras prestações.
Termos em que, deverá ser revogado o acórdão proferido sobre a matéria de facto de forma a que, com base nos meios probatórios acima mencionados, o artigo 20º da base instrutória passe a dar como provado que “a Autora não pagou a 2ª a 7ª prestações do preço relativas aos vários contratos promessa, apesar de várias interpelações verbais da Ré”.
Segundo o Tribunal recorrido não houve mora por parte da Autora no não pagamento das 2.ª a 7.ª prestações do preço uma vez que, o Meritíssimo Juiz a quo entendeu que ao violar a obrigação que nos contratos previa que a notificação ou interpelação para o referido pagamento observasse a forma escrita não poderia a Ré considerar que a prestação a cargo da Autora se havia tomado impossível por causa imputável à promitente vendedora pelo que ao, posteriormente, celebrar, na qualidade de procuradora da proprietária registada dos imóveis, as escrituras de compra e venda destes imóveis a Ré incumpriu de forma culposa os contratos.
In casu a fim de apurar se a conduta da Ré, traduzida na resolução unilateral dos contratos promessa e na celebração, na qualidade de procuradora da proprietária registada, das escrituras públicas de compra e venda que tiveram por objecto os mesmos imóveis prometidos vender à Autora, se encontra legalmente legitimada é necessário ter presente que: (i) a Autora foi verbalmente interpelada para proceder ao pagamento das prestações em falta, com a advertência de que se o não fizesse a Ré consideraria os contratos sem efeito; (ii) a Autora, desde a data da assinatura dos contratos promessa, em Julho de 1994, até à data da celebração das aludidas escrituras públicas apenas pagou 5% do preço devido; (iii) a Autora, conforme expressamente se refere na sentença e se deu como provado em sede de audiência de discussão de julgamento, tinha e sempre teve conhecimento do progresso das obras e, portanto, do preciso momento em que a sua obrigação de pagamento das prestações relativas ao preço se vencia; e que (iv) jamais a Autora, durante todos este período, pôs em causa ou interpelou a Ré no sentido de esta proceder à notificação por escrito para que aquela procedesse aos pagamentos devidos ou demonstrou interesse realizá-los ou sequer ter os meios para o fazer.
O primeiro dado a salientar é que, ao dar-se como assente a existência de interpelações verbais da Ré à Autora, não seria nunca possível concluir pela inexistência de mora da promitente compradora pelo facto de tais interpelações não terem observado a forma escrita.
Conforme expressamente admite a sentença recorrida, era impossível à Autora não saber ou não ter conhecimento sobre o progresso das obras, progresso que marcava as diferentes datas de vencimento da obrigação da Autora em pagar as prestações do preço acordado. Como tal, dúvidas não podem existir de que a Autora plena consciência do preciso momento em que se foi vencendo a sua obrigação de proceder ao pagamento das mencionadas prestações.
Por outro lado, dúvidas não restando também da existência de contactos estabelecidos entre as partes, nos quais foi sempre dado conta à Autora do andamento da construção sendo esta, simultaneamente, interpelada para proceder ao pagamento das prestações em dívida e nunca tendo a promitente vendedora, por sua iniciativa, interpelado ou notificado a Ré para esclarecer o porquê da ausência de notificações por escrito por parte desta, há que entender que a Autora aceitou tacitamente que as interpelações para o pagamento se processassem de forma verbal, dispensando-se a forma escrita.
Resulta do artigo 805.°, n.º 1 do Código Civil de 1966 (equivalente ao artigo 794.° do diploma de 99) que a interpelação para cumprimento não carece de meio especial para ser efectuada, podendo ser feita por qualquer dos meios admitidos para uma declaração negocial, a qual pode ser expressa ou tácita e feita por palavras, escrito ou qualquer outro meio de manifestação de vontade ou deduzida de factos que com toda probabilidade a revelam nos termos do artigo 217.° do Código Civil de 1966 (artigo 209.° do diploma de 1999) e, como prescreve o artigo 224 do mesmo diploma (artigo 216.° do actual Código Civil), a declaração negocial torna-se eficaz logo que chega ao seu poder ou é dele conhecida.
Tendo a Ré informado a Autora da conclusão das fases de construção do prédio e solicitado, ainda que de forma verbal, por diversas vezes e por diversos meios (telefonemas, reuniões, conversas pessoais, deslocações à obra) à promitente compradora para que procedesse ao pagamento das prestações do preço em falta e nunca tendo a Autora durante longos 9 anos que mediaram entre a celebração dos contratos promessa e a celebração das mencionadas escrituras públicas posto em causa o facto de a Ré não a ter notificado por escrito ou dado sinais de querer realizar os pagamentos que lhe competiam nos termos dos contratos promessa, ter-se-á de concluir que a Autora faltou culposamente ao cumprimento da sua obrigação e incorreu em responsabilidade nos termos dos artigos 798.° e 442.°, n.º 2, primeira parte do Código Civil de 1966, equivalentes aos artigos 787.° e 436.°, n.º 2 primeira parte do diploma de 1999.
Por outro lado, ao atribuir carácter decisivo à falta de interpelação por escrito da Autora para o efeito de não a considerar constituída em mora, o Meritíssimo Juiz a quo incorre num profundo erro de julgamento, pois ao concluir por esse carácter decisivo da interpelação por escrito, para efeitos de considerar se a Autora entrou ou não em mora, o Tribunal recorrido está a atribuir à forma escrita da interpelação a natureza de condição para o cumprimento das prestações a cargo da Autora quando isso manifestamente não encontra qualquer suporte na matéria de facto provada e muito menos no texto dos contratos sendo, pelo contrário, negado por todo o comportamento que as partes observaram posteriormente aos mesmos.
A exigência de interpelação por escrito não constituía uma condição do pagamento das prestações relativas ao preço por parte da Autora, tanto mais que o comportamento observado pelas partes posteriormente à celebração dos contratos e que se traduziu na existência de reuniões, contactos, deslocações à obra, pedidos verbais de pagamento, vai todo no sentido de confirmar que as partes dispensaram a referida formalidade.
Doutro passo, das referidas reuniões e contactos mantidos entre a Autora e Ré resultou sempre a recusa daquela em proceder ao pagamento do remanescente do preço dos contratos promessa, pois nunca a Autora se mostrou disponível ou sequer demonstrou ter meios para pagar os 95% do preço. Este é um facto que foi pura e simplesmente ignorado pela douta sentença recorrida não obstante, diga-se uma vez mais, ser convicção do Tribunal que a Autora tinha perfeito conhecimento do andamento das obras e, portanto, do vencimento da sua obrigação de proceder ao referido pagamento.
De acordo com o princípio da boa fé na celebração dos contratos, a interpelação é desnecessária quando o devedor se recusa a celebrar e a cumprir o contrato nos termos acordados, sendo que a existência de negociações, como sucedeu in casu com os constantes contactos mantidos entre Autora e Ré no sentido de se resolver esta problemática, constitui e equivale em termos jurídicos a uma recusa definitiva em realizar e cumprir o contrato nos termos acordados, recusa que apenas poderá ser imputada à Autora.
Sem embargo, ainda que se entenda que as partes não dispensaram de forma expressa ou tácita a necessidade de a interpelação para pagamento observar a forma escrita, há que analisar, de acordo com as circunstâncias concretas, se o não pagamento da 2.ª a 7.ª prestações do preço por parte da Autora se pode considerar legitimada, no sentido de a Autora não se encontrar em mora, pela suposta violação da aludida obrigação contratual.
Ora, sendo a obrigação de pagar o preço uma. Prestação típica e própria do contrato promessa e sendo inequívoco que a Ré deu conhecimento, por via verbal, à Autora do andamento das obras para efeito do vencimento das prestações daquele pagamento ou dito de outro modo, como o faz a douta sentença, sendo inquestionável que a Autora tinha conhecimento do estado da construção, ter-se-ia que considerar que a falta de notificação por escrito por parte da Ré constituiria uma violação de um dever meramente acessório e mais que secundário do contrato promessa, que perante a recusa ou falta de iniciativa da Autora em proceder aos pagamentos em falta, sempre facultaria à Ré o direito a resolver os contratos em apreço.
Efectivamente, quando não esteja em causa o incumprimento da obrigação principal, haverá que averiguar em concreto, qual a relevância da prestação incumprida na economia do contrato, em termos de proporcionar ao credor os efeitos jurídicos e patrimoniais tidos em vista com a conclusão do contrato.
Assim, por um lado tem-se o incumprimento por parte da Ré da obrigação de notificar por escrito a Autora para proceder ao pagamento dos remanescentes 95% do preço e por outro o não pagamento da Autora destes 95%, apesar de ter sido interpelada verbalmente para o fazer e de ter mantido negociações com a Ré nesse sentido e de nunca ter tomado a iniciativa, apesar de saber do andamento das obras, de indagar junto da Recorrente o porquê da ausência de interpelações escritas.
A decisão recorrida traduz-se, como tal, numa patente violação aos princípios da proporcionalidade, pois perante o cômputo global do contrato e as circunstâncias concretas que o rodearam, a falta de notificação por escrito para que a Autora procedesse aos pagamentos em falta assume uma escassa importância ou relevo, do ponto de vista do interesse afectado pelo incumprimento, já o mesmo não se poderá dizer da falta de pagamento por parte da Autora da 2.ª a 7.ª prestações (vencidas alguma delas 9 anos antes da celebração da escritura pública das fracções a favor da companhia F!) cuja gravidade é evidente principalmente se se tiver em conta que tais prestações correspondiam a 95% do preço e que a Autora sabia, conforme se provou, que as mesmas já se haviam vencido.
Do supra exposto resulta também que à Ré seria sempre legítimo invocar a perda do interesse no cumprimento da sua prestação, pois perante a gravidade da inexecução das obrigações que à Autora cabiam cumprir e a importância que tais obrigações assumiam na economia do contrato, a Ré teria sempre causa legal para resolver os contratos promessa em questão por força da referida perda do interesse (artigo 808.º do Código Civil de 1966, artigo 797.º do diploma de 1999).
Com efeito, a prestação incumprida por parte da Autora respeita a 95% do preço acordado nos contratos promessa e, por outro lado, tal incumprimento verificou-se ao longo de 9 anos, apesar das diversas tentativas da Ré em persuadir a promitente compradora a cumprir, pelo que não se poderá deixar de considerar, em face do disposto nos citados artigos 808.° e 797.°, estar-se, pela sua gravidade, perante um incumprimento definitivo dos contratos promessa, susceptível, tendo presente um critério objectivo e o princípio da boa fé no cumprimento dos contratos (artigo 762.°, n.º 2 do Código Civil de 1966, equivalente ao artigo 752.°, n.º 2 do diploma actualmente em vigor) de fundamentar o direito de resolução por parte da Ré.
Ao atribuir à Ré o incumprimento definitivo e culposo dos contratos promessa que tiveram por objecto as fracções autónomas designadas por A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, O, S, T, U, V, W, Y, Z, AB E AC, todas melhor identificadas nos autos, aplicando-lhe a sanção prevista na segunda parte do artigo 436.°, n.º 2 do Código Civil de 1999 e ao não considerar que a Autora se encontrava em mora, convertida em incumprimento definitivo e culposo dos mesmos contratos, o Meritíssimo Juiz a quo incorreu num erro de julgamento e violou as disposições dos artigos 217.°, .224.°, 236.°, 442.°, n.º 2, 762.°, 798.°, 801.°, 805.° e 808.° todos do Código Civil de 19666 e as equivalentes disposições do Código Civil de 1999 ou seja os artigos 209.°, 216.°, 228.°, 436, n.º 2, 752.°, 787.°, 790.°, 794.° e 797.°.
Ainda que este Venerando Tribunal não venha a atender ao pedido de alteração da decisão proferida sobre a matéria de facto, hipótese que apenas por cautela ou dever de patrocínio se admite, ainda assim a conclusão não poderá deixar de ser idêntica à que atrás se defendeu e que se traduz na improcedência total da acção.
Se é certo que a Autora não foi notificada por escrito para proceder aos pagamentos parcelares durante a construção da obra, o certo é que, como se disse, ficou abundantemente provado que a partir de certa altura a Ré interpelou a Autora, por inúmeras vezes e por diversas formas, para que esta procedesse aos pagamentos em questão. Pelo menos a partir do ano de 2003, altura em que a Ré notificou a Autora, formalmente, por escrito, para proceder aos pagamentos em falta essa hipotética situação de mora da Ré tem de se considerar cessada, e é a Autora quem a partir daí entra em mora com os pagamentos, que foram solicitados mas jamais pagos.
Por outro lado, nunca a Autora interpelou formalmente a Ré para comparecer num cartório notarial e outorgar nas escrituras. Nunca a Autora disse à Ré que queria fazer os contratos e que queria pagar os muitos milhões de patacas que correspondem aos 95% dos preços em falta. Nunca a Autora interpelou a Ré para cumprir.
Ora, esta factualidade, que está assente por provada nos autos, leva a que nos termos do disposto no artigo 797.º do Código Civil de Macau (equivalente ao artigo 808.º do Código anteriormente em vigor) nunca se possa considerar uma situação de incumprimento definitivo ou recusa do cumprimento por parte da Ré: é que a Autora jamais fixou a esta um prazo razoável para o cumprimento, como seria exigível nos termos do disposto na alínea b) do citado artigo.
Em suma, a situação que foi configurada pela Autora nos autos poderia quando muito configurar uma situação de mora da contraparte, na medida em que esta não lhe pediu, durante a construção do prédio, os pagamentos nos termos previstos nos contratos (por escrito). Mas essa mora cessou, pelo menos, em 2003, altura em que a Autora foi por diversas vezes interpelada para cumprir os contratos.
Uma pretensa revogação dos contratos por banda da Autora não foi antecedida pela fixação ao alegado contraente relapso de um prazo para cumprimento da sua prestação, como sempre ditariam as regras da Boa Fé no cumprimento dos contratos, sendo certo que o pedido de reconhecimento da resolução do contrato jamais pode proceder sem que antes tenha havido interpelação admonitória.
Acresce que a situação de eventual mora em que pode ter estado a Ré durante a construção de prédio há muito que cessou, pelo menos cessou em 2003, pois ao contrário do que fez a Autora, está provado nos autos que a Ré sempre agiu de boa fé e concedeu a partir de certa altura à outra parte (faltosa) diversos prazos e possibilidades de se cumprirem os contratos.
A Ré teve o cuidado de dirigir antes e depois de 2003 diversas interpelações admonitórias à Autora, advertindo-a que caso não cumprisse com as suas obrigações de pagamento de 95% dos preços consideraria os contratos resolvidos, por incumprimento definitivo e culposo da promitente compradora - vide alíneas p), r), s), t), u) e v) supra.
Diversas comunicações enviadas pela Ré à Autora, provadas nos autos, em preenchiam todos os requisitos e formalidades enunciados pela jurisprudência e doutrina para fundamentar a resolução do contrato, pelo que, não tendo nunca Autora dado cumprimento ao solicitado nas missivas, tendo antes optado por se manter em culposo e definitivo incumprimento, terá de se considerar que ocorreu in casu, e após o prazo final concedido pela Ré, a resolução dos contratos sub judice, por incumprimento culposo e definitivo por banda da Autora.
Concluindo, mesmo não dando como assente, a existência de interpelações verbais por parte da Ré ainda assim matéria de facto provada impunha uma decisão diversa daquela que foi adoptada na douta sentença ora posta em crise que violou o disposto no artigo 797.º do Código Civil de 1999.
Nestes termos e nos mais de direito, deve, em seu entender, o presente recurso ser julgado procedente, revogando-se:
a) a decisão proferida pelo Tribunal Colectivo quanto ao quesito 20.º da base instrutória, passando a dar-se como assente a seguinte matéria de facto "a Autora não pagou a 2.ª a 7.ª prestações do preço relativas aos vários contratos promessa, apesar de várias interpelações verbais da Ré”.
b) a sentença recorrida, na parte em que julgou parcialmente provada a acção e em consequência declarou "resolvidos os contratos-promessa de compra e venda celebrados entre a A. e a R. em 24 de Julho de 1994 em relação às fracções autónomas designadas por A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, O, S, T, U, V, W, X, Y, Z, AB e AC todas do prédio descrito sob o n.º 21937" e condenou a "Ré no pagamento à A. HKD$14,146,100.00 (catorze milhões cento e quarenta e seis mil e cem dólares de Hong Kong), correspondente ao dobro do sinal pago", substituindo-se por outra que declare resolvidos os referidos contratos por incumprimento definitivo e culposos da Autora e reconheça à Ré o direito de fazer suas as importâncias recebidas a título de sinal, com o que
A “B, LIMITADA”, contra alega, em síntese conclusiva:
Se a forma especial foi estipulada antes da conclusão do negócio, consagra-se uma presunção de essencialidade, isto é, presume-se que, sem observância da forma, o negócio é ineficaz; a forma tem, pois, carácter constitutivo.
Sendo presunção ilidível, a sua não ilisão traz a consequência de não se permitir uma outra interpretação sobre a vontade das partes no que respeita à forma a que o acto em causa deva obedecer.
A notificação por escrito é nesse contexto, não só uma formalidade ad substantiam, mas também ad probationem. Ou seja, as partes quiseram não só submeter a validade da notificação a uma certa forma, mas também o fizeram porque essa forma lhes facilitaria a prova da ocorrência (ou não) do facto a que se reportaria, evitando-se o recurso à prova testemunhal, nem sempre a mais credível.
A prova resultante desta forma escrita interessaria sobretudo à promitente-vendedora, ou seja a ora Recorrente, a qual assim comprovaria que estava a cumprir a sua parte do contrato e que ao mesmo tempo fazia nascer a seu favor um direito de exigir o pagamento respeitante àquela fase.
A circunstância de as testemunhas da Ré, Recorrente, terem referido ter esta tido vários contactos com a Autora, pondo-a ao corrente da situação do progresso das obras, não pode sobre pôr-se àquela forma contratualmente prescrita.
As interpelações ou contactos feitos que supostamente a R. Teria feito à Autora, por forma verbal, teriam sido à revelia do que foi convencionado, sendo por isso irrelevantes para a decisão da causa.
É princípio de que se as partes previram uma forma mais solene para a prática de um acto ou para a produção de um determinado efeito, só pela forma de semelhante solenidade aquela pode ser afastada.
A Autora nunca concordou, nem as testemunhas foram claras se alguma vez teriam as partes modificado a forma de notificação e se a forma verbal foi tacitamente aceite. A Recorrente não chegou a provar que a Autora, por forma clara e inequívoca manifestou ter aceite essa modificação.
Não sendo a obra efectuada num espaço vedado à visão do público, os representantes da Autora saberiam que ela ia progredindo. Mas tal não dispensaria da parte da Recorrente o cumprimento de uma formalidade: levar a conhecimento da Autora pela forma convencionada.
A sentença recorrida não fez mais do que considerar irrelevantes as interpretações verbais. Em nada alterariam quanto à situação da Ré, ora Recorrente: a de que teria violado grosseiramente um dever expressamente previsto nos contratos-promessa em causa.
O Tribunal a quo teria violado o artigo 556° do CPCM, se considerasse pertinentes tais interpleações verbais, pois aí estaria também a violar directamente o art. 215°, n.° 1 do CCM.
Não se podia exigir que a Autora adquirisse por compra as fracções em causa, enquanto a Recorrente não desembaraçasse da acção pauliana cujo registo onerava os imóveis, acção essa a que a Autora era totalmente alheia, com a incerteza sobre o seu desfecho.
O direito à resolução fundar-se-ia num incumprimento (definitivo) do contrato. No caso em apreço, havia sim uma excepção de não cumprimento do contrato, uma vez que a Recorrente não estava em condições de cumprir o contrato, ou seja transmitir as fracções livre de quaisquer ónus ou encargos.
Posto o que entende dever ser negado provimento ao presente recurso, mantendo-se o acórdão ora recorrido,
II - FACTOS
Vêm provados os factos seguintes:
Dos factos assentes
A). A A. e a R. são sociedades comerciais cujo objecto é o exercício de actividades comerciais na área da construção, desenvolvimento e fomento predial.
B). O pagamento do preço seria faseado, consoante a progressão das obras.
C). Sendo cada prestação exigível mediante notificação da A. pela R. nos termos da cláusula 3ª.
D). Os respectivos contratos prometidos seriam celebrados dentro de 600 dias “de tempo razoável” a contar da data do fim das obras de fundação – vd. Cláusula 5ª.
E). Por escritura do dia 13 de Março de 2003, outorgada a fls. 95 a 103, do Livro n.º 2 do Notário Privado, Dr. Hugo Ribeiro Couto, a R. na qualidade de procuradora substabelecida da G, Limitada, que por sua vez era procuradora da sociedade comercial H, Limitada, transmitiu parte do domínio sobre as ditas fracções à F, Limitada.
F). Concretamente as fracções A, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, O, S, T, U, V, W, X, Y, Z, AB e AC do mesmo imóvel – ibidem.
G). Os preços tabelados foram transmitidos a preços absolutamente inferiores aos acordados com a A. – ibidem.
H). A transmissão relativa às fracções A, B, C, D, E, F, G, H, I, K, L, O e S, está a ser objecto de uma acção pauliana, e como tal existe um registo de acção quanto às mesmas fracções.
I). A Ré por carta registada c/AR datada de 11 de Junho de 2003, interpelou a Autora para que esta procedesse, até 30 de Junho de 2003, aos pagamentos a que se tinha obrigado nos termos do vários contratos, nomeadamente o remanescente dos preços em falta (95%), sob pena de os contratos se considerarem resolvidos, com efeitos desde 1 de Julho de 2003, por incumprimento definitivo e culposo da Autora.
J). Em resposta àquela comunicação, a Autora, por comunicação de 30 de Junho de 2003, recusou proceder aos pagamentos solicitados, invocando, como justificativos, o facto de a Ré não ser a proprietária das 38 fracções autónomas, e a existência de uma impugnação pauliana que nesse momento corria termos em relação a 13 (treze) das 38 fracções autónomas.
K). Cinco dias depois, isto é, a 5 de Julho de 2003, a Ré dirige uma resposta escrita à Autora na qual comunica que a sociedade adquirente das fracções autónomas objecto dos 38 contratos-promessa (F, Limitada) estava absolutamente disponível para celebrar as escrituras públicas.
L). A Ré, em anexo a essa comunicação, juntou inclusive cópia de uma declaração emitida pela F no termos da qual esta manifesta expressamente a aceitação e disponibilidades supra referidas e, assim, possibilitar a cabal execução dos contratos-promessa.
M). Na mesma comunicação em que juntou tal declaração, a Ré volta a interpelar a Autora para que cumpra as obrigações por si assumidas contratualmente procedendo, “impreterivelmente” até 18 de Julho de 2003, ao pagamento integral do remanescente dos preços em falta, sob pena de uma vez mais os referidos contratos serem considerados definitivamente resolvidos, com efeitos a partir de 19 de Julho de 2003, por incumprimento definitivo e culposo da Autora.
N). A Ré, por carta datada de 25 de Julho de 2003, expressamente advertiu a Autora de que os mencionados contratos se encontravam, para todos os efeitos legais, resolvidos desde 19 de Junho de 2003.
Da base instrutória
1. Em 24 de Julho de 1994, a A. e a R. celebraram contratos-promessa de compra a venda de um conjunto de fracções autónomas respectivamente: A, AB, AC, AD, AE, AF, AG, AH, AI, AJ, AK, AL, AM, AN, AO, AP, AQ, AR, B, C, D, E, F, G, H, I, J, K, L, S, T, U, V, W, X, Y, Z, todas do rés-do-chão do então imóvel em construção, identificado por Lote N18 da Zona dos Novos Aterros do Porto Exterior (NAPE), hoje prédio nºs 10 a 116 da Rua de Londres, 82 a 122 da Alameda Dr. Carlos Assumpção, 81 a 123 da Avenida Governador Jaime Silvério Marques e 9 a 117 da Rua de Madrid, com descrição predial n.º 21937 do livro B104A da Conservatória do Registo Predial de Macau, inscrito na matriz sob o n.º 73423.
2. O preço global das fracções foi de HK$231,698,958.00 tendo cada uma delas o seguinte valor :
Fracções
(em dólares de Hong Kong)
A
7,328,000.00
AB
5,742,000.00
AC
7,149,000.00
AD
6,291,000.00
AE
5,254,000.00
AF
5,145,000.00
AG
5,145,000.00
AH
5,253,000.00
AI
6,159,000.00
AJ
5,297,000.00
AK
7,446,000.00
AL
4,522,000.00
AM
6,860,000.00
AN
4,196,000.00
AO
7,420,000.00
AP
6,767,000.00
AQ
7,319,000.00
AR
7,163,958.00
B
7,481,000.00
C
6,912,000.00
D
7,472,000.00
E
4,196,000.00
F
7,876,000.00
G
9,266,000.00
H
4,685,000.00
I
5,363,000.00
J
4,396,000.00
K
4,305,000.00
L
4,305,000.00
O
11,027,000.00
S
5,368,000.00
T
4,444,000.00
U
6,454,000.00
V
6,454,000.00
W
4,444,000.00
X
5,368,000.00
Y
5,163,000.00
Z
6,263,000.00
HK$231,698,958.00
3. À data da assinatura dos contratos promessa, a A. já tinha pago à R. 5%, correspondente à primeira prestação, no valor de HK$11,584,947.90.
4. A A. nunca foi notificada por escrito para o pagamento do que quer que fosse e nunca a R. deu conhecimento por escrito à A. sobre o progresso das obras.
5. A transmissão das fracções referidas em F) dos Factos assentes foi feita sem dar qualquer satisfação à A.
6. As fracções têm, no momento da proposição da acção, um valor muito aquém do que inicialmente foi indicado em 1994.
7. Os contratos prometidos nunca mais se realizaram.
8. A Ré através da sua mandatária, enviou a A. a comunicação consta de fls. 240 a 244, através de fax e através da carta registada.
9. A autora não pagou as segunda a sétima prestações dos preços relativos aos vários contratos promessa.
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa fundamentalmente pela análise das seguintes questões:
- Análise e ponderação da alteração da matéria de facto;
- Das consequências da existência de uma interpelação verbal;
- Do incumprimento definitivo por parte da Ré, justificativo da resolução do contrato
2. Sobre o recurso respeitante à matéria de facto insurge-se a recorrente porquanto o Tribunal devia ter dado como provado, em sede da resposta ao quesito 20º, que houve uma interpelação por parte da Ré, feita à A. no sentido desta cumprir as prestações a que se obrigara.
E permite-se até sugerir que tal factualidade bem podia ter sido firmada por via de uma resposta restritiva a tal quesito.
Extracta os depoimentos de várias testemunhas e da parte no sentido de demonstrar a razão que julga assistir-lhe quanto à existência de uma interpelação oral por banda da Ré.
Mas cremos que não tem razão no que concerne à fixação de tal interpelação e quanto às suas consequências por três ordens de razões.
3. Em primeiro lugar não se colhe necessariamente dos referidos depoimentos que tais pedidos de pagamento constituíssem uma interpelação admonitória no sentido de que a sua não satisfação implicaria a resolução, o pôr fim ao contrato celebrado.
Não estará aí em causa a forma de interpelação, se escrita, se oral, mas a própria integração de uma interpelação relevante juridicamente.
4. Depois, não nos podemos esquecer de um elemento importante e se prende com a valoração das provas, sendo que aí o Tribunal de 1ª Instância se encontra numa situação privilegiada para aquilatar do posicionamento, integridade, distanciamento, neutralidade, objectividade, tudo contribuindo para afazer acreditar ou desacreditar determinados depoimentos, mesmo que objectivamente certas afirmações tenham sido proferidas.
Já não estará aqui em causa o conteúdo dos depoimentos mas a sua valoração em termos de um juízo de conformidade com a realiadade em toda a sua extensão e detalhes.
5. Finalmente, quanto à terceira razão, prende-se ela com o valor de se dar como provada uma dada interpelação, ainda que oral, se entende que essa interpelação devia ser escrita.
Não há razões para censurar a sentença proferida enquanto entendeu que a interpelação devia seguir a forma escrita, perdendo assim relevância eventual comprovação de uma interpelação oral para pagamento das prestações.
A cláusula 3º do contrato promessa levada à especificação na alínea C) não deixa margem para dúvidas quanto a esta questão.
6. Acresce que a Ré, ora recorrente, pretende retirar - o que afirma por várias vezes e elege quase como argumento fulcral - ,do conhecimento que a A. tinha sobre o andamento das obras a consciência das fases da construçãoo e obrigatoriedade de pagamento das prestações acordadas (em particular as 2º e 7º que aqui estão em causa). Só que se nos afigura que não lhe assiste razão nessa vertente argumentativa, pois que não se pode retirar desse conhecimento a revogação da vontade expressa de as partes se submeterem à exigência de determinada forma para cumprimento das obrigações. E as razões para essa auto vinculação podem ser variadas, nomeadamente o permitir alguma flexibilidade a acordar tácita ou verbalmente pelas partes no âmbito do desenvolvimento da construção dos imóveis.
Entende-se assim não se dever alterar a matéria de facto no sentido propugnado.
7. Da relevância ou não da interpelação escrita
Com o que vimos dizendo demos já resposta a esta questão, no sentido da essencialidade de tal forma acordada.
Não assiste razão à recorrente enquanto pretende desvalorizar o acordado na referida cláusula 3ª, dizendo que tacitamente foi aceite pelas partes que a interpelação para o pagamento pudesse ser feita oralmente.
Não estamos certos de forma alguma dessa interpretação. Os pedidos de pagamento – é certo que se podem ter por assentes – não inculcam numa força interpelativa e susceptível de provocar a resolução e podem ter criado exactamente um efeito inverso ao pretendido em relação ao declaratário. Este sabe que a interpelação tem de ser escrita e assim enquanto ela não sobrevier vai observando que a obra continua e que ainda não está no momento de pagar, fazendo até acreditar que a vendedora compreende a sua situação de aperto financeiro da compradora e lhe dá prazo para o efeito.
Se as partes se quiseram vincular por via de uma determinada forma, face ao disposto no artigo 215, n.º 1 do CC, essa convenção assume-se como essencial e não pode ser afastada por qualquer outra interpretação. Só por essa via as partes se vincularão, assumindo essa formalidade uma natureza ad substantiam.1
O facto de pedir com insistência o pagamento das prestações é normal, insere-se numa boa prática negocial, sendo evidente que toda a gente gosta de ter o dinheiro do seu lado o mais rapidamente possível. E para ilustrar este entendimento chamamos aqui as palavras do gerente da Ré que diz que sabia que a A. não tinha dinheiro e por isso não pagava. Esta afirmação é muito clara no sentido da compreensão por banda da Ré da situação financeira da A., fazendo crer que lhe dava uma moratória e por isso não usava do instrumento que facultaria a resolução do negócio, qual seja a interpelação por escrito.
Atrevemo-nos até a considerar que o não uso daquele meio beneficiava a vendedora, porquanto enquanto fosse desenvolvendo o empreendimento e não resolvesse o contrato ficava sempre com a possibilidade de em qualquer altura resolver aquele negócio, deixando as portas abertas a outras negociações como aliás veio a acontecer.
Aqui falece, assim, ainda aqui, razão à recorrente.
8. Da pretensa culpa da A. pela não celebração dos contratos.
Afirma a Ré que pelo menos a partir de 2003 notificou a A., formalmente e por escrito, para proceder aos pagamentos em falta, pelo que pelo menos, a partir dessa altura a mora se deve ter por cessada, que nunca a A. interpelou formalmente a Ré para comparecer a outorgar as escrituras, nunca a A. comunicou que queria pagar os muitos milhões de patacas que lhe cumpria pagar.
É certo que só o incumprimento culposo e definitivo pode fundar uma resolução nos termos do artigo 426º e 790º do CC.
Mas como se pode entender que o negócio ainda se podia salvar se o vendedor entretanto vendeu ou onerou o objecto do negócio ou parte do mesmo de forma a comprometê-lo irremediavelmente?
9. Os contratos devem ser pontualmente cumpridos - art. 400º do CC.
Se o não cumprimento do contrato se configura como definitivo, face às interpelações sem resposta, tem a contraparte o direito de resolver o contrato-promessa e fazer suas todas as quantias recebidas - art.790, n.º 2º do CC.2
Apela-se, assim, para o disposto no art. 436º, n º2 e deste preceito resulta que o regime do sinal só é aplicável em situações de incumprimento definitivo, que não de simples mora.
O Prof. Galvão Telles ensina que "o sinal vale como cláusula penal compensatória, que impõe a rescisão do contrato-promessa por incumprimento definitivo (...) Não vale como cláusula penal moratória, se não convertida" naquele incumprimento nos termos do artigo 797º.3
Também para o Prof. Antunes Varela a perda do sinal é uma sanção sempre ligada à falta de cumprimento da obrigação daquele que se obriga e “anda indissoluvelmente ligada à resolução ou à desistência do contrato, ou, pelo menos, ao seu não cumprimento definitivo"4
No mesmo sentido, a Jurisprudência que aqui se cita apenas por referência, em termos de direito comparado5 decidiu que os artigos 787º, 790º, 793º e 797º do Código Civil são de observar quanto ao contrato-promessa; que a resolução do mesmo e as sanções da perda do sinal ou da sua restituição em dobro só têm lugar no caso de inadimplemento definitivo e finalmente que "se houver simples mora da parte de algum dos promitentes, já não se aplica o disposto no artigo 436º nº 2 do Código Civil, embora o promitente lesado tenha direito a uma reparação pelos danos, nos termos do artº 793º do Código Civil", concluindo-se ainda no sentido de que os dois casos do artigo 797º, n º1, a), são equiparados ao não cumprimento definitivo.6
Esta tem sido, aliás, a Jurisprudência adoptada e fixada por este Tribunal7 – “o incumprimento definitivo do contrato-promessa encontra-se pela verificação de situações (declaração antecipada de não cumprir, termo essencial, cláusula resolutiva expressa, impossibilidade da prestação e perda de interesse na prestação) que a induzam” e ainda no sentido de que “o regime do sinal só releva se convertida a mora em incumprimento definitivo”.
Existem situações típicas em que é definitivo o inadimplemento. Serão, v.g., a declaração não antecipada de não cumprir, o termo essencial, a cláusula resolutiva expressa.
Outras situações de incumprimento definitivo, como a impossibilidade da prestação (absoluta e relativa; originária e superveniente; objectiva e subjectiva) se podem considerar.
Também a prestação que já não interessa ao credor em consequência do atraso vale para o Direito como prestação tornada impossível. Pode acontecer que, não realizando o devedor a prestação no momento devido, ela ainda continue materialmente possível mas perca interesse para o credor. A prestação, conquanto fisicamente realizável, deixou de ter oportunidade. Juridicamente não existe então simples atraso mas verdadeira inexecução definitiva e o facto é imputável ao devedor; este não incorre em simples mora mas em não cumprimento definitivo (art. 808º, n.º 1).
A perda do interesse na prestação é apreciada objectivamente (art. 808º, n.º 2). Não basta que o credor diga, mesmo convictamente, que a prestação já não lhe interessa; há que ver, em face das circunstâncias, se a perda de interesse ou de utilidade corresponde à realidade das coisas.8
10. É neste contexto que se entende como justificável a perda do interesse da A. na aquisição das fracções face às onerações e alienações incidentes sobre as fracções, tal como comprovado vem, em 13 de Março de 2003. E a interpelação escrita só em Julho desse ano veio a ocorrer. O facto de a A. ter diligenciado junto de terceiro a venda à A. remete-nos para uma outra relação, diferente da acordada e a Mma juiz não passou ao lado da questão na abordagem feita na sua sentença. Para além de que uma coisa é a comunicação da disponibilidade e outra a garantia dessa transmissão. Para além de que essa eventual disponibilidade não faria suprir os efeitos das acções paulianas pendentes e consequências negativas daí decorrentes para os interesses da A.
Analisando à luz dos critérios de um homem mediano, é aceitável que essa pessoa, segundo os parâmetros de um comportamento razoável já não quisesse celebrar o negócio em tais condições.
Aliás, situações destas ilustram a Jurisprudência9 comparada e é caso mesmo apontado como ilustrativo de incumprimento definitivo na Doutrina10.
Nestes termos somos a sufragar as razões vertidas na sentença, julgando improcedente o recurso interposto.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a decisão recorrida.
Custas pela recorrente.
Macau, 7 de Outubro de 2010,
_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Primeiro Juiz-Adjunto)
_________________________
Lai Kin Hong
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 - RLJ103º, 494
2 - vd. ainda a posição de Rodrigues Bastos in Ac. do STJ de 18/11/82, in BMJ 321,p. 387 e segs e de 2/5/85 in BMJ 347, p. 375
3 - in Direito das Obrigações, 5.ed.., 95
4 - in " Revista da Legislação e de Jurisprudência" Ano 119, 216
5 - Ac. do S.T.J. de 2 de Maio de 1985
6 - BMJ 347,375, no mesmo sentido, o Ac. S.T.J. de 24 de Maio de 1983 -BMJ. 327.653 e Calvão da Silva, in "Cumprimento e Sanção Pecuniária Compulsória" Coimbra, 1987-299
7 - Acs. do TSI, proc. 997, de 15/6/00; proc. 1245, de 24/2/00; 115/2001, de 27/6/2002; proc.1245, de 24/2/00; proc. 231, de 24/10/02
8 - Inocêncio Galvão Telles, "Direito das Obrigações", Coimbra, 7º ed.,1997, pág. 311
9 - Ac. STJ de 12/1/2010, in http//www.dgsi.pt
10 - Galvão Telles, ob. cit. 327
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86/2010 1/36