Processo n.º 681/2010
(Recurso Penal)
Data: 21/Outubro/2010
Assuntos :
- Crime de burla; medida da pena
- Comparticipação
Sumário :
1. Não mera cumplicidade, se dos factos provados, a recorrente e o co-arguido praticaram as actividades de defraudação em co-autoria, contactando aquela por sua iniciativa com a lesada, se cobrou directamente os custos dos alegados serviços, a pretexto de introdução em Macau e de angariação de trabalho para residentes do Interior da China.
2. Ao abrigo do disposto no art.º 211.º do Código Penal de Macau, o crime de burla de valor consideravelmente elevado é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos. Se a recorrente se aproveitou da vontade de outras pessoas para trabalhar em Macau; inventou histórias infundadas para cobrar custos de recomendação de RMB¥10.000 por pessoa; se, apesar de haver apenas uma lesada neste processo, as verbas que a lesada entregou à recorrente são de 120 indivíduos do Interior da China que procuraram ajuda da recorrente através da lesada para trabalhar em Macau; sendo a quantia expressiva; nos últimos anos as actividades de burla sob pretexto de introdução de trabalho são frequentes; se a transparência, a imagem e a economia da RAEM também saem afectadas; a situação de comparticipação não deixando de constituir um factor agravante; por tudo isto não se pode considerar excessiva a pena concreta de prisão de 3 anos e 3 meses, não excedendo a sua culpa e correspondendo às finalidades da punição.
O Relator,
João A. G. Gil de Oliveira
Processo n.º 681/2010
(Recurso Penal)
Data: 21/Outubro/2010
Recorrente: A (presa)
Objecto do Recurso: Acórdão condenatório da 1ª Instância
ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
I - RELATÓRIO
No presente processo, o tribunal a quo condenou a 1ª arguida A (XX) pela prática de um crime de burla de valor consideravelmente elevado, p. p. pelo art.º 211.º, n.º 1 e n.º 4 al. a) e art.º 196.º al. b) do Código Penal de Macau, na pena de prisão de 3 anos e 3 meses, além disso, a 1ª arguida e o 2º arguido B (XXX) também foram condenados no pagamento de RMB¥320.000, em forma solidária, à lesada C (XXX), a título de indemnização, bem como os juros de mora calculados segundo a taxa de juro legal a contar desde 2007.
A (XX), 1ª arguida neste processo, ao abrigo do disposto no art.º 401.º do Código de Processo Penal, veio apresentar a sua motivação do recurso, concluindo da seguinte forma:
Segundo o acórdão recorrido, o Tribunal Judicial de Base condenou a 1ª arguida A (XX) neste processo pela prática dum crime de burla de valor consideravelmente elevado, p. p. pelo art.º 211.º, n.º 1 e n.º 4 al. a) e art.º 196.º al. b) do Código Penal de Macau, na pena de prisão de 3 anos e 3 meses.
Como é referido no acórdão recorrido, a 1ª arguida negou que tinha combinado com o 2º arguido em defraudar terceiro, alegando que ela própria também era lesada e acreditou erradamente que o 2º arguido podia arranjar títulos de identidade de trabalhador não-residente. Além disso, a 1ª arguida também entregou ao Juízo o “acordo de transacção” que tinha com a C (XXX), alegando que só era intermediário.
Mas o TJB entendeu que os depoimentos da 1ª arguida não eram acreditáveis com base nas seguintes duas dúvidas:
Primeiro, “a 1ª arguida cobrou dinheiro do respectivo indivíduo e emitiu recibo, se só era um introdutor comum, depois de introduzir o 2º arguido ao respectivo indivíduo, porque é que ainda cobrou o dinheiro para “tratar os documentos” e emitiu recibo em pessoa?”
Depois de cobrar as custas para o “tratamento de documentos” junto da pessoa introduzida C (XXX), a 1ª arguida emitiu recibos porque o 2º arguido B (XXX) não estava presente no local, e a 1ª arguida, em nome do 2º arguido, emitiu recibos provisórios à lesada.
É referido nos factos provados no acórdão recorrido (fls. 3) que, “a A (XX) entregou ao B (XXX) as verbas e os documentos que tinha cobrado da C (XXX), e o B (XXX) também emitiu recibo à A (XX).”
Se a 1ª arguida é cúmplice, porque é que entregou todas as custas para o “tratamento de documentos” ao 2º arguido? E porque é que o 2º arguido emitiu recibo à 1ª arguida?
Como é referido nas declarações prestadas pela 1ª arguida na audiência de julgamento e de sempre, ela só é intermediário, responsabiliza-se pela cobrança dos respectivos custas e documentos e espera que possa obter comissão de quantia diminuta após requerimento bem sucedido.
Segundo, “Quanto ao chamado “acordo de transacção”, este Colectivo entende que só é um acto de dilatação e espera de que a lesada C (XXX) retirasse a acusação, e a declaração de ser “intermediário” também é tentativa de dissimular o facto. Se só era um intermediário, porque é que assumiu a responsabilidade de restituição de dinheiro? E se quisesse sinceramente restituir as verbas, porque é que só restituiu RMB¥28.000 à C(XXX)?”
É registado explicitamente no «acordo de transacção» que a qualidade da 1ª arguida é intermediário, ou seja que desde o início até ao fim, a lesada C (XXX) sabia bem que a 1ª arguida era o intermediário, e a lesada também assinou no «acordo de transacção».
A assinatura da lesada foi reconhecida presencialmente e ninguém levantou arguição de falsidade, pelo que nos termos do art.º 369.º n.º 1 e do art.º 370.º n.º 1 do Código Civil de Macau, o «acordo de transacção» faz prova plena.
Com base nisso, o TJB deve aceitar o «acordo de transacção» e não pode negar o respectivo teor.
Além disso, a 1ª arguida explica que não conhece a lei nem os direitos e obrigações de “intermediário”, razão pela qual assumiu a responsabilidade de garantia no «acordo de transacção».
Daí se pode constatar que a lesada sabia bem da qualidade da 1ª arguida como intermediário, por isso, a 1ª arguida não burlou a lesada e em relação ao respectivo assunto, só existe relação civil entre a 1ª arguida e a lesada.
A 1ª arguida também é lesada, porque acreditou em que o 2º arguido pudesse ajudar indivíduos do Interior da China a trabalhar em Macau e obter quotas de trabalho nos casinos de Macau.
Para ajudar o irmão mais novo a procurar trabalho em Macau, a 1ª arguida também pagou RMB¥3.000,00 ao 2º arguido para tratar os documentos.
Por isso, a 1ª arguida, como a lesada C (XXX), também acreditou no que o 2º arguido disse, e notificou os parentes e amigos da notícia. Só ao descobrir que o 2º arguido não pôde arranjar trabalhos em Macau para indivíduos do Interior da China é que a 1ª arguida soube que foi enganada.
Em Janeiro de 2008, a 1ª arguida já avisou o respectivo departamento do Interior da China do assunto, e o processo foi admitido,
porém, o 2º arguido, cujo paradeiro está desconhecido, continua a esquivar-se da responsabilidade, não pretendendo explicar e esclarecer o assunto, e os agentes do CPSP tinham efectuado busca na residência da 1ª arguida, mas não encontraram qualquer objecto relacionado com o presente processo,
é referido nos factos provados do acórdão recorrido (fls. 4) que, “Em 29 de Novembro de 2007, os agentes do CPSP efectuaram um inquérito sobre a residência do B (XXX) sita no Istmo de Ferreira do Amaral, XXX (Bloco I), XXº andar B, encontrando uns instrumentos do crime e documentos de identidade, incluindo várias fórmulas de informações básicas de trabalhador não-residente, vários bilhetes de identidade dos residentes do Interior da China, cartões de registo de residência permanente, passaportes da China e livros de registo domiciliar, etc.”
Pode-se ver que o 2º arguido é o principal criminoso deste processo,
pelo exposto, a explicação de que a 1ª arguida é intermediário não só é lógica, mas também corresponde aos factos supracitados. O TJB violou o princípio de in dubio pro reo e os dispostos no art.º 400.º, n.º 2, al.s a), b) e c) do Código de Processo Penal ao conhecer as provas, negar as declarações da 1ª arguida e aprovar respectivos factos.
Se o tribunal tiver outro entendimento, e considerar que a 1ª arguida participou na prática do crime, a 1ª arguida aponta que:
A 1ª arguida já pagou por sua iniciativa RMB¥28.000,00 à lesada a título de indemnização antes de ser acusada, e a lesada também prometeu no «acordo de transacção» que deixou de intentar acção.
Pode-se descobrir obviamente que o grau de participação da lesada (sic.) no crime é baixo e ela própria não sabe bem das maneiras de tratamento dos respectivos documentos, só era intermediário e introduzia clientes ao 2º arguido, pelo que só é “cúmplice”.
Mas na determinação da medida da pena, o TJB violou os dispostos nos art.ºs 221.º, 201.º e 26.º do Código Penal de Macau, não considerou estas circunstâncias possíveis e não atenuou especialmente a pena aplicada à 1ª arguida.
Mesmo que não se possa conceder atenuação especial, a pena de prisão de 3 anos e 3 meses aplicada à arguida é obviamente grave demais.
E apesar de a 1ª arguida ter entregue todas as verbas cobradas ao 2º arguido e não obter qualquer comissão, a 1ª arguida ainda fez o seu melhor para indemnizar a lesada e assume a responsabilidade de garantia.
Com base nisso, a pena aplicada à 1ª arguida pelo TJB é suspeita de ser grave demais, não considerou plenamente o princípio de proporcionalidade da pena nem os dispostos nos art.ºs 64.º e 65.º do Código Penal de Macau, e não aplicou à arguida pena mais leve e adequada ou a suspensão da execução da pena.
Em 9 de Julho de 2010, a 1ª arguida interpôs recurso imediatamente após a leitura do acórdão, e o TJB proferiu despacho de aplicar medidas de prisão preventiva, tendo como fundamentos que a 1ª arguida não é residente de Macau e é condenada na pena de prisão efectiva, pelo que existe perigo de fuga.
Mas os indícios indicam o contrário, a 1ª arguida tem agido de forma cooperativa desde o inquérito do processo até a audiência de julgamento, tendo ajudado a autoridade correspondente a investigar a verdade.
A 1ª arguida é residente do Interior da China, e ao contrário do 2º arguido que fugiu, a 1ª arguida compareceu à audiência de julgamento realizada em Macau, explicou e esclareceu os pormenores do processo, e estava disposta a aceitar os resultados do julgamento.
A 1ª arguida veio a Macau exclusivamente para a audiência de julgamento, se pretendesse fugir, ela não teria comparecido à audiência. Apesar de saber bem que existe perigo de ser presa, a 1ª arguida ainda veio a Macau para o julgamento por acreditar na justiça da lei.~
Os filhos da 1ª arguida vivem em Macau e precisam muito de ser cuidados pela arguida.
Com base nisso, não existe perigo de fuga da 1ª arguida, deve-se anular o despacho recorrido de prisão preventiva e aplicar à 1ª arguida medidas de coacção não privativas da liberdade.
A final, formula o seguinte pedido:
Pede-se ao TSI para julgar procedente o recurso, revogar o acórdão recorrido e absolver a arguida do crime;
Se assim não for entendido, a 1ª arguida reúne as circunstâncias de atenuação geral e especial, solicita-se que condene a 1ª arguida na pena de prisão não superior a 3 anos e suspenda a execução da pena;
Anular o despacho recorrido de prisão preventiva e aplicar à 1ª arguida medidas de coacção não privativas da liberdade;
A Digna Magistrada do MP oferece douta resposta, que aqui se acolhe e se acompanha, seguindo de perto na nossa fundamentação o desenvolvimento por si expendido.
O Exmo Senhor Procurador Adjunto emite o seguinte douto parecer:
A nossa Exmª Colega põe a nu, de forma proficiente, a sem razão da recorrente.
E nada se impõe acrescentar, de relevante, às suas criteriosas explanações.
Não se divisa, desde logo, a existência de qualquer dos vícios referidos no n.º 2 do art. 400º do C. P. Penal.
A recorrente, ao invocá-los, mais não faz, realmente, do que discordar do julgamento da matéria de facto feito na decisão recorrida, afrontando flagrantemente a regra da livre apreciação da prova consagrada no art. 114º do mesmo Diploma.
Isso mesmo se evidencia, cabalmente, na resposta à motivação.
É descabida, também, a chamada à colação do princípio “in dubio pro reo”.
O Tribunal, na verdade, não chegou a uma situação de dúvida sobre a realidade dos factos.
Essa situação, por outro lado, não decorre – muito menos de forma evidente – “dos elementos constantes dos autos, por si só ou conjugados com as regras da experiência comum”.
No âmbito do enquadramento juridico-penal, por seu turno, não pode deixar de ter-se como infundada a pretensão da recorrente de ser condenada como cúmplice.
Dos factos apurados resulta, com efeito, que os arguidos agiram numa situação de co-autoria.
Emerge desses factos, claramente, uma decisão e uma execução conjuntas, sabendo-se que, em relação ao segundo requisito, “não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos a praticar para obtenção do resultado pretendido” (cfr. ac. do S.T.J. de Portugal, de 18/7/84, B.M.J. 339-276).
A recorrente, subsidiariamente, insurge-se contra e medida da pena, falando, até, na sua atenuação especial.
É óbvia, porém, a insubsistência da sua crítica.
A favor da mesma, na realidade, nada de relevante se apurou.
Em termos agravativos, por seu turno, há que destacar a apontada situação de comparticipação.
A atenuação especial, como é sabido, só pode ter lugar em casos extraordinários ou excepcionais.
E a situação em apreço não integra, seguramente, esse condicionalismo (ainda que se tenha presente o comando do art. 201º, n.º 2, do C. Penal – aplicável por força do subsequente art. 221º).
A pena aplicada, tudo ponderado, deve ter-se como justa e equilibrada.
E, mesmo que pudesse ser reduzida, nos termos propugnados, sempre deveria ser rechaçada a pretendida suspensão da sua execução.
Isto, naturalmente, por inverificação do pressuposto material exigido pelo art. 48º, n.º 1, do citado C. Penal.
Deve, pelo exposto, o recurso ser julgado improcedente – o até, mesmo, manifestamente improcedente (com a sua consequente rejeição, nos termos dos artigos 407º, n.º 3-c, 409º, n.º 2-a e 410º, do C. P. Penal).
Foram colhidos os vistos legais.
II - FACTOS
Com pertinência, respiga-se do acórdão recorrido o seguinte:
”(...)
Através de julgamento público, o Tribunal Colectivo provou os seguintes factos:
A 1ª arguida A (XX) e o 2º arguido B (XXX) são amigos. Para obter interesses ilegítimos, a A (XX) e o B (XXX) conspiraram em praticar actividades de burla a título de introduzir pessoas do Interior da China para trabalhar nos casinos em Macau. A A (XX) foi o introdutor e era responsável por convencer os lesados e cobrar as despesas e informações de documentos para entregá-los ao B(XXX), que alegou falsamente que tinha grande quantidade de quotas de trabalhadores a fim de defraudar dinheiro alheio.
Em Março de 2007, no dia desconhecido, durante a conversação com a C (XXX) (a lesada), a A (XX) disse-lhe que o seu amigo B (XXX) podia introduzir grande quantidade de trabalhadores para trabalhar nos casinos de Macau, e a despesa de documento foi de RMB¥10.000 por pessoa, mas teve-se de pagar RMB¥3.000 como adiantamento, e pagar a quantia restante de RMB¥7.000 após o tratamento dos documentos.
A C (XXX) acreditou nisso e informou a notícia aos seus parentes e amigos.
Desde 1 de Maio de 2007 a 23 de Julho de 2007, a C (XXX) entregou os bilhetes de identidade, livros de registo domiciliar e atestados de saúde dos 116 parentes e amigos, bem como RMB¥348.000 em numerário à A (XX) na sua residência por 9 vezes, como pagamento adiantado das despesas de tratamento dos documentos. A A (XX) emitiu recibos à lesada C (XXX) depois de cobrar os documentos e verbas supracitados (vide as fls. 7 a 14 e 109).
Em 15 de Junho de 2007, a A (XX), o B (XXX) e a C (XXX) encontraram-se no restaurante “KungFu” em Gong Bei da cidade de Zhu Hai, e durante o encontro, o B (XXX) alegou em pessoa à C (XXX) que tinha grande quantidade de quotas de trabalhadores para os casinos em Macau e podia ajudar as pessoas do Interior da China a trabalhar em Macau. Ao mesmo tempo, a A (XX) entregou ao B (XXX) as verbas e os documentos que tinha cobrado da C (XXX), e o B (XXX) também emitiu recibo à A (XX).
De facto, tanto a A (XX) como o B (XXX) não podiam tratar de documentos que permitiram aos indivíduos do Interior da China trabalhar em Macau.
Depois, por a A (XX) e o B (XXX) não terem sucesso em arranjar os documentos para que os parentes e amigos da C (XXX) trabalhassem em Macau, a C (XXX) contactou várias vezes com a A (XX) e o B (XXX), perguntando sobre o e tratamento dos documentos, mas a A (XX) e o B (XXX) tiveram sempre desculpes para dilatar. Até aos 23 de Julho de 2007, a A (XX) e o B (XXX) confessaram à C (XXX) que não podiam tratar os documentos que permitiram aos seus parentes e amigos trabalhar em Macau, prometendo restituir as respectivas verbas à C (XXX).
Em 25 de Setembro de 2007, a A (XX) e o B (XXX) restituíram à C (XXX) RMB¥28.000 (vide as fls. 162 dos autos). Mais tarde, a A (XX) e o B (XXX) continuaram dando desculpas para dilatar a restituição das verbas. A C (XXX) sentiu que foi enganada e em 26 de Novembro de 2007 contactou com o CPSP para a participação.
Em 29 de Novembro de 2007, os agentes do CPSP efectuaram um inquérito sobre a residência do B (XXX) sita no Istmo de Ferreira do Amaral, XXX (Bloco I), XXº andar B, encontrando uns instrumentos do crime e documentos de identidade, incluindo várias fórmulas de informações básicas de trabalhador não-residente, vários bilhetes de identidade dos residentes do Interior da China, cartões de registo de residência permanente, passaportes da China e livros de registo domiciliar, etc. (ora apreendidos aos autos, vide o auto de apreensão e busca constante das fls. 55 e 56 dos autos).
Os dois arguidos agiram de forma livre, voluntária e consciente, e em força, acordo e conspiração comuns ao defraudar dinheiro alheio através de alegar falsamente que podiam ajudar indivíduos do Interior da China a trabalhar em Macau, a fim de obter interesses ilegítimos para eles próprios ou para outrem, causando prejuízos patrimoniais a outrem.
Os dois arguidos sabiam bem que as sua condutas eram ilegais e punidas por lei.
Também se provou:
De acordo com o CRC, os dois arguidos são delinquentes primários.
*
Factos não provados: nenhum.
*
Os factos supracitados podem ser provados com base nos depoimentos da 1ª arguida, nas declarações do 2º arguido (foi permitida a leitura das declarações ao abrigo do disposto no art.º 338.º n.º 1 al. a) do Código de Processo Penal), nos depoimentos das testemunhas C (XXX) e D (XXX) e nos respectivos documentos constantes dos autos.
A 1ª arguida negou que tinha combinado com o 2º arguido em defraudar terceiro, alegando que ela própria também era lesada e acreditou erradamente que o 2º arguido podia arranjar títulos de identidade de trabalhador não-residente. Além disso, a 1ª arguida também entregou ao Juízo o “acordo de transacção” que tinha com a C (XXX), alegando que só era intermediário.
Porém, analisando os dados e os depoimentos das testemunhas constantes dos autos, este Colectivo entende que os depoimentos da 1ª arguida não são acreditáveis.
Primeiro, a 1ª arguida cobrou dinheiro junto do respectivo indivíduo e emitiu recibo, se só era um introdutor comum, depois de introduzir o 2º arguido ao respectivo indivíduo, porque é que ainda cobrou o dinheiro para “tratar os documentos” e emitiu recibo em pessoa?
Quanto ao chamado “acordo de transacção”, este Colectivo entende que só é um acto de dilatação e espera de que a lesada C (XXX) retirasse a acusação, e a declaração de ser “intermediário” também é tentativa de dissimular o facto. Se só era um intermediário, porque é que assumiu a responsabilidade de restituição de dinheiro? E se quisesse sinceramente restituir as verbas, porque é que só restituiu RMB¥28.000 à C (XXX)?
(...)”
III - FUNDAMENTOS
1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
- Discordância da fixação da matéria de facto;
- Violação do “in dubio pro reo”;
- Da medida da pena; atenuação especial;
- Dos pressupostos da medida de coacção de prisão preventiva
2. Sobre a primeira questão, relativa à integração típica, ou seja, a de saber se a arguida, ora recorrente praticou os referidos factos integrantes do crime de burla por que foi condenada, desde logo se chama a atenção para o facto de a sua argumentação recair sobre dúvidas.
Concretiza essas suas dúvidas em três aspectos:
A arguida cobrou o dinheiro à ofendida sobre os serviços atinentes aos serviços a que se comprometia e passou recibo, entregando o dinheiro recebido ao 2º arguido;
No chamado “acordo de transacção” reconhece-se e a lesada também reconhece que a 1º arguida era uma mera intermediária;
A 1ª arguida também é lesada acreditando que o 2º arguido pudesse ajudar indivíduos do Interior da China a trabalhar em Macau e a arranjar quotas de trabalho nos casinos de Macau e quando se viu enganada também se queixou à Polícia da China.
3. O que dizer sobre estas dúvidas?
Serão elas de molde a abalarem a convicção de uma comparticipação na burla orquestrada pelos arguidos?
A estas dúvidas da arguida responde o próprio Tribunal Colectivo, enquanto diz: “A 1ª arguida negou que tinha combinado com o 2º arguido em defraudar terceiro, alegando que ela própria também era lesada e acreditou erradamente que o 2º arguido podia arranjar títulos de identidade de trabalhador não-residente. Além disso, a 1ª arguida também entregou ao Juízo o “acordo de transacção” que tinha com a C(XXX), alegando que só era o intermediário.
Porém, analisando os dados e os depoimentos das testemunhas constantes dos autos, este Colectivo entende que os depoimentos da 1ª arguida não são acreditáveis.
Primeiro, a 1ª arguida cobrou dinheiro do respectivo indivíduo e emitiu recibo, se só era um introdutor comum, depois de introduzir o 2º arguido ao respectivo indivíduo, porque é que ainda cobrou o dinheiro para “tratar os documentos” e emitiu recibo em pessoa?
Quanto ao chamado “acordo de transacção”, este Colectivo entende que só é um acto de dilatação e espera de que a lesada C (XXX) retirasse a acusação, e a declaração de ser “intermediário” também é tentativa de dissimular o facto. Se só era um intermediário, porque é que assumiu a responsabilidade de restituição de dinheiro? E se quisesse sinceramente restituir as verbas, porque é que só restituiu RMB¥28.000 à C (XXX)?”
4. Na verdade, pouco mais haverá a responder em relação às apontadas dúvidas, sendo fácil compreender que esses comportamentos da arguida não desmentem, não são contraditórias de uma versão que passe pela sua comparticipação nos factos descritos.
Assim, a primeira dúvida pode-se explicar porque o normal é que quem paga pede recibo e as vantagens da arguida podiam não passar por um recebimento material imediato.
Quanto à segunda dúvida estamos perante um acordo privado que tutelava os interesses imediatos e particulares das partes envolvidas, não sendo pelo facto de a lesada dizer que arguida era intermediária que ela o fosse de facto.
Ainda quanto à terceira dúvida – a da participação à Polícia da China – tal facto também não se apresenta decisivo. Na verdade, essa participação pode ter sobrevindo num momento em que a arguida actua “para tentar salvar a pele” e evitar males maiores.
Acresce que se a recorrente não participou nas actividades de burla também não se compreende facilmente que assumisse sem razão a dívida superior a RMB¥300.000,00.
5. Improcede a alegação da recorrente respeitante à incursão nos vícios do art.º 400.º n.º 2 do CPP.
A condenação da recorrente baseia-se nas provas prestadas pelas partes arguidas na audiência de julgamento (lidas as do 2º arguido), nas testemunhas e nos documentos constantes dos autos, o que não violou obviamente as regras de experiência ou outras regras legais de prova, não se vislumbrando contradições, tendo-se observado os princípios legais atinentes à produção da prova,
6. A recorrente questiona a medida concreta da pena, em particular na desconsideração feita pelo Tribunal de atender a uma atenuação especial da pena.
Enquanto cúmplice, a arguida já restituiu parte do dinheiro obtido através de burla.
Desde logo se observa que essa qualidade de mera cúmplice não se evidencia. Conforme os factos provados, a recorrente e o 2º arguido praticaram as actividades de defraudação em co-autoria. A recorrente contactou por sua iniciativa com a lesada, cobrou directamente os custos dos alegados serviços, a pretexto de introdução em Macau e de angariação de trabalho para residentes do Interior da China.
É certo que a recorrente já pagou cerca de RMB¥30.000,00 a título de indemnização à lesada antes da audiência de julgamento, e ainda deve à lesada RMB¥320.000,00.
De acordo com o art.º 201.º n.º 2 do Código de Processo Penal (sic.), “a pena pode ser especialmente atenuada”, o que não significa que o tenha de ser necessariamente. O Tribunal Colectivo terá considerado as circunstâncias do processo e a personalidade da recorrente e não atenuou especialmente a pena aplicada à recorrente, o que não se afigura desajustado.
De facto, apesar de a recorrente ser delinquente primária, o certo é que não confessou os factos criminosos na audiência de julgamento e a quantia envolvida neste processo é consideravelmente elevada. Já passaram 3 anos e a recorrente só indemnizou à lesada a quantia inferior a um décimo do valor total. A ilicitude dos actos da recorrente não é reduzida e a não concessão da atenuação especial não merece censura.
7. Por fim, a recorrente entende que a pena é grave demais e viola o princípio da proporcionalidade, pugnando ainda pela suspensão da execução da pena.
Os critérios da medida da pena estão plasmados nos artigos 40º e 65º, devendo atender-se aos fins da punição, o que passa pela protecção dos bens jurídicos, pela defesa da prevenção geral e especial e preocupações de ressocialização.
A fixação da pena deve ser feita em função da culpa do agente e atender às necessidades da punição.
Ao abrigo do disposto no art.º 211.º do Código Penal de Macau, o crime de burla de valor consideravelmente elevado é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos. Neste particular, como bem observa a Digna Magistrada do MP, a recorrente aproveitou-se da vontade de outras pessoas para trabalhar em Macau; inventou histórias infundadas para cobrar custos de recomendação de RMB¥10.000 por pessoa; apesar de haver apenas uma lesada neste processo, as verbas que a lesada entregou à recorrente são de 120 indivíduos do Interior da China que procuraram ajuda da recorrente através da lesada para trabalhar em Macau; a quantia é expressiva; nos últimos anos as actividades de burla sob pretexto de introdução de trabalho são frequentes; a transparência, a imagem e a economia da RAEM também saem afectada; a situação de comparticipação não deixa de constituir um factor agravante; por tudo isto não se pode considerar excessiva a pena concreta de prisão de 3 anos e 3 meses, não excedendo a sua culpa e correspondendo às finalidades da punição.
A pena mostra-se, pois, adequada e justa, pelo que obviamente não reúne os requisitos de pressuposto (pressupostos de forma: pena de prisão não superior a 3 anos) da suspensão da execução da pena previstos pelo art.º 48.º n.º 1 do Código Penal de Macau.
8. Por último uma palavra breve sobre as medidas de coacção.
A confirmação da condenação infligida seria por si só seria suficiente para a considerar prejudicada não fora o caso de a prolação do presente acórdão, neste preciso momento, não garantir o respectivo trânsito.
A recorrente discorda da medida de prisão preventiva, alegando que apesar de não ser residente de Macau, os seus filhos vivem em Macau e ela compareceu à audiência de julgamento realizada em Macau, solicitando a aplicação de medidas de coacção não privativas da liberdade.
Procura assim infirmar a ideia subjacente ao perigo de fuga.
É certo que só se podem aplicar ao arguido medidas de coacção privativas da liberdade sob orientação dos princípios da legalidade, da adequação e da proporcionalidade, e quando estão reunidos os requisitos gerais das medidas de coacção e os pressupostos especiais da prisão preventiva.
Observa-se no presente caso que, durante o período de inquérito, a recorrente violou a medida de coacção de apresentação periódica (vide as fls. 198 e 278 dos autos), não confessou os seus actos criminosos na audiência de julgamento e, apesar de ter comparecido na audiência, não se pode garantir que irá cumprir a pena, importando não esquecer que a recorrente é residente do Interior da China e existe perigo de fuga perante a iminência de ter de cumprir a aludida pena.
A recorrente foi condenada num crime de burla de valor consideravelmente elevado que é punido com a pena de prisão até 10 anos. As circunstâncias do processo revelaram que a intensidade de dolo e o grau de ilicitude da recorrente são elevados e não é adequado nem suficiente aplicar-lhe medidas de coacção de apresentação periódica e interdição de saída, pelo que só a aplicação da medida de prisão preventiva realiza com eficácia as finalidades de prevenção e garante a execução da decisão condenatória.
9. Entende-se assim que o recurso se mostra manifestamente improcedente, devendo, consequentemente, ser rejeitado nos termos dos artigos 407º, n.º 3 - c), 409º, n.º 2 - a) e 410º, do C. P. Penal.
IV - DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em rejeitar o recurso por manifestamente improcedente.
Custas pela recorrente, fixando em 6 UCs a taxa de justiça, devendo pagar ainda o montante de 3 UCs, a título de sanção, ao abrigo do disposto no artigo 410º, n.º 4 do CPP.
Fixam-se os honorários da Exma Defensora em MOP 1200,00, a adiantar pelo GABPTUI.
Macau, 21 de Outubro de 2010,
João A. G. Gil de Oliveira
Tam Hio Wa
Lai Kin Hong
681/2010 1/24