Processo nº283/2010(/) Data: 20.01.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Acusação manifestamente improcedente.
Despacho de não recebimento.
SUMÁRIO
1. Atento o princípio da economia processual, pode o juiz de julgamento rejeitar a acusação quando a mesma se lhe apresente “manifestamente infundada ou improcedente”.
O relator,
José Maria Dias Azedo
______________________
Processo nº 283/2010(()
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. O Digno Magistrado do Ministério Público requereu o julgamento de A, com os sinais dos autos, imputando-lhe a prática de 1 crime de “fuga à responsabilidade”, p. e p. pelo art. 64° do (então) Código da Estrada; (cfr., fls. 113 a 113-v e 122 a 122-v).
*
Remetidos os autos ao T.J.B., proferiu o Mm° Juiz o despacho seguinte:
“Autue como processo comum com intervenção de Tribunal Singular.
*
O Tribunal é competente.
*
Questão prévia susceptível de obstar à apreciação do mérito da causa.
Não se recebe a acusação pública deduzida a fls. 113 por não configurar crime a factualidade ali descrita e imputada ao arguido.
Vejamos.
Nos termos do art. 293°, n° 1 do C.P.P., "recebidos os autos no tribunal competente para o julgamento, o juiz pronuncia-se sobre as questões prévias ou incidentais susceptíveis de obstar à apreciação do mérito da causa de que possa, desde logo, conhecer" .
Ora, não pode deixar de considerar-se abrangida por tal normativo a situação em que os factos da acusação não integrem qualquer crime e, por isso, não determinem responsabilidade penal para o arguido. Com efeito, se os factos da acusação não constituírem crime, desnecessário se torna submetê-los a julgamento, pois que daí não resulta responsabilidade criminal para o acusado, o que configura uma questão de que se pode conhecer no momento processual de "recebimento da acusação" e que deve obstar à apreciação do mérito da causa criminal, que já se sabe iria ser de absolvição.
E o mesmo é de concluir quanto à situação em que os factos relatados na acusação não abrangem todos os elementos típicos de um crime, reportando-se apenas a algum ou alguns deles, uma vez que, submetendo a acusação a julgamento, se o elemento típico em falta não ficar provado, impõe-se a absolvição do arguido e no caso de se provar tal elemento omisso o Tribunal só dele pode conhecer havendo acordo nos termos do disposto no n° 2 do art. 340° do Código de Processo Penal, pois que se tratará, inevitavelmente, de uma alteração substancial dos factos, tal como vem definida na al. f) do n° 1 do art. 1 ° do Código de Processo Penal, pelo que também o processo não deve prosseguir apenas com hase na dupla esperança de que se prove um facto que não consta da acusação e de que haja acordo para que o tribunal dele possa conhecer.
Cremos, depois de observado todo o respeito devido, que é muito e merecido, pela opinião plasmada na acusação, que os factos a submeter a julgamento não constituem crime.
Vejamos.
Em resumo, o arguido, em termos objectivos, encontra-se acusado de ter tido um acidente de viação quando conduzia um automóvel. Nada mais. Depois afirma-se conclusivamente, sem se descrever qualquer facto concreto e em jeito de "nuda cogitatio", que "após o acidente, o arguido pretendeu, fora dos meios legais ao seu alcance, furtar-se da responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente tinha incorrido". Não se diz que se ausentou do local, nem que nele permaneceu, referindo-se apenas que um terceiro passou, depois do acidente, a conduzir o veículo que antes era conduzido pelo arguido, sem que se diga se o arguido permaneceu ou não no local.
A conduta imputada ao arguido é depois subsumida na douta acusação ao crime de fuga à responsabilidade, p. e p. pelo art. 64° do anterior Código da Estrada.
Dispõe o referido artigo que "quem intervier em acidente e tente, foras dos meios legais ao seu alcance, furtar-se à responsabilidade civil ou criminal em que eventualmente tenha incorrido é punido com ... ".
São, pois, elementos do crime em apreço:
1- que o arguido intervenha em acidente de viação e
2- tente furtar-se à responsabilidade civil ou criminal para si eventualmente decorrente do acidente;
3- que essa tentativa seja feita de forma ilegal.
4- o dolo genérico.
5- o dolo específico, enquanto intenção de não assumir a responsabilidade.
Se bem se analisam os elementos típicos do crime em causa, dir-se-á que nem todos se encontram preenchidos nos factos da acusação.
E é ao nível da parte objectiva do tipo que se discorda da acusação pública. Com efeito, entende-se que a acusação é omissa relativamente ao elemento típico atrás referido sob o n° 2, uma vez que não diz que o arguido tenha tido qualquer comportamento objectivo que configure tentativa de se furtar à responsabilidade típica. Apenas se conclui que o arguido pretendeu furtar-se a tal responsabilidade, sem no entanto se apontar um facto em que se corporize essa tentativa, sendo certo que a pura intenção não chega para o preenchimento do elemento típico objectivo em referência. Com efeito, quem tem um acidente de viação e não quer assumir qualquer responsabilidade dele decorrente, não comete, só por isso, o crime de fuga à responsabilidade. É necessário que tenha um comportamento, activo ou omissivo, que possa objectivamente auxiliar a não efectivação da responsabilidade que não se quer assumir. Ora, ao nível objectivo, a acusação não imputa ao arguido qualquer actuação com vista à irresponsabilização, limitando-se a afirmar conclusivamente a intenção específica da fuga à responsabilidade. Conclui-se, pois, que falta um elemento objectivo do crime imputado ao arguido, pelo que a acusação não preenche o crime em causa, pelo que, mesmo que toda a acusação se prove, maxime por confissão do arguido, terá este de ser absolvido por falta de verificação de um elemento típico.
Os factos a apreciar em julgamento e plasmados na acusação não são subsumíveis integralmente à norma jurídico-penal que pune o crime em causa.
Assim, a acusação não pode ser recebida, pois é evidente que não poderá proceder.
Conclui-se pois que não pode ser recebida a acusação nos termos do n° 1 do art. 293° do Código de Processo Penal.
*
Pelo exposto, não se recebe a acusação deduzida pelo Ministério Público.
Sem custas.
Notifique.
(…)”; (cfr., fls. 122 a 123-v).
*
Inconformado, o Exm° Magistrado do Ministério Público recorreu, pedindo, em síntese, a revogação do referido despacho pois que considera que o mesmo viola o art. 293° do C.P.P.M. e que incorreu o Mm° Juiz a quo em erro; (cfr., fls. 127 a 127-v).
*
Sem resposta, foi o recurso admitido, e remetidos os autos a este T.S.I, em sede de vista, emitiu o Exm° Procurador-Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Inconformando com o douto despacho proferido nos autos que decidiu não receber a acusação deduzida pelo Ministério Público, vem a Magistrada do MP interpor recurso.
A primeira questão submetida à apreciação deste Tribunal consiste em saber se o Juiz pode não receber a acusação do Ministério Público, considerando que os factos plasmados na acusação não são subsumíveis integralmente à norma jurídico-penal que pune o crime imputado ao arguido.
Salvo o devido respeito, parece-nos que a resposta só pode ser negativa, sendo que o comando do art° 293° do CPPM não deixa margem para quaisquer dúvidas.
Nos termos do n° 2 do art° 293°, a acusação do assistente ou do Ministério Público só pode ser rejeitada na parte "que não obedeça, respectivamente, ao disposto no n° 1 do artigo 266° ou no n° 4 do artigo 267°", ou seja, na parte em que representa uma alteração substancial dos factos.
Evidentemente, no caso vertente não está em causa essa situação.
Por outro lado, o CPP de Macau, apesar de seguir de muito perto o CPP de Portugal (na sua versão originária), não acolheu a possibilidade, contemplada na al. a) do n° 2 do art° 311° deste Diploma, de o Tribunal rejeitar a acusação com o fundamento de esta ser manifestamente infundada.
Sem intenção de ignorar o douto entendimento deste Tribunal de Segunda Instância no sentido de reconhecer ao Tribunal o poder e a possibilidade de devolver ou rejeitar uma acusação quando a considerar manifestamente improcedente (cfr. Ac.s proferidos nos processos n° 184/2001, n° 54/2002, n° 231/2002 e n° 490/2008), mantemos a posição que tem sido por nós propugnada.
A questão de fundo a apreciar por este Tribunal reside em saber se nos factos da acusação se encontram preenchidos todos os elementos típicos do crime imputado - crime de fuga à responsabilidade p.p. pelo art° 64° do Código da Estrada.
Merecem a nossa total concordância as considerações explanadas no douto despacho ora recorrido no que respeitam aos elementos típicos do crime em apreço.
No entanto, não podemos acompanhar, salvo o muito respeito, a posição aí afirmada que se conclui pela omissão da acusação relativamente ao elemento objectivo que se refere à tentativa de o arguido "furtar-se à responsabilidade civil ou criminal para si eventualmente decorrente do acidente" .
Para o Tribunal a quo, "a acusação não imputa ao arguido qualquer actuação com vista à irresponsabilização, limitando-se a afirmar conclusivamente a intenção específica da fuga à responsabilidade", pois não se diz se o arguido se ausentou do local do acidente, nem que nele pennaneceu, o que não é bastante para preencher o crime em causa.
Ora, teria razão o Tribunal se se tomasse em conta apenas a versão portuguesa da acusação.
No entanto, da leitura da acusação (na sua versão chinesa) não resulta a mesma coisa.
Constata-se nessa acusação que após o embate, B, passageiro que se encontrava no veículo conduzido pelo arguido, deslocou o ciclomotor que caiu junto à Parte dianteira do automóvel do arguido e depois o arguido "pôs em acção o motor do automóvel e foi-se embora do local de facto" (o sublinhado é nosso).
Daí que não se nos afigura omissa a acusação quanto à actuação concreta do arguido depois do acidente, pois resulta da acusação que o arguido se ausentou do local do acidente, conduta esta que configura sem dúvida tentativa de se furtar à responsabilidade decorrente do acidente.
Tal facto objectivo faz parte da acusação, na sua versão chinesa, que deve valer, pois é nessa língua que foi redigida a acusação, traduzida depois para a língua portuguesa.
Concluindo, parece-nos que na acusação deduzida pelo Ministério Público foram descritos os factos necessários para preencher todos os elementos constitutivos do crime imputado ao arguido, incluindo o elemento objectivo indicado pelo Tribunal a quo, pelo que a acusação deve ser recebida.
Pelo exposto, entendemos que se deve julgar procedente o presente recurso.”; (cfr., fls. 143 a 144-v).
*
Nada obstando, cumpre conhecer.
Fundamentação
2. Vem interposto recurso do despacho do Mm° Juiz do T.J.B que não recebeu a acusação pelo Exm° Magistrado do Ministério Público deduzida contra A, imputando-lhe a prática de 1 crime de “fuga à responsabilidade” p. e p. pelo art. 64° do então Código da Estrada.
Colhe-se do até aqui relatado que duas são as questões a apreciar.
A primeira que consiste em saber se podia o Mm° Juiz a quo decidir como decidiu, não recebendo a acusação deduzida, e, a segunda, se correcta foi a apreciação efectuada ao teor da mesma acusação.
— Quanto à primeira, pouco há a dizer.
De facto, e como bem salienta o Exm° Procurador-Adjunto, tem este T.S.I. decidido que atento o princípio da economia processual, pode o juiz de julgamento rejeitar a acusação quando a mesma se lhe apresente “manifestamente infundada ou improcedente”; (cfr., v.g., os Acs. deste T.S.I. proferidas nos Procs. n° 144/2001, n° 54/2002, n° 231/2002 e 490/2008).
Motivos não havendo para se alterar este entendimento, que – admitindo-se outro – se nos mostra porém o correcto e adequado, nada mais se nos mostra de acrescentar sobre a questão.
— Quanto à “deficiência” da acusação, e subscrevendo-se aqui as doutas considerações pelo Exm° Procurador-Adjunto produzidas no seu Parecer, está bem de ver que o Mm° Juiz a quo – que tanto quanto julgamos saber, não domina a língua chinesa – terá sido induzido em lapso pela tradução da mesma acusação redigida em língua chinesa para a língua portuguesa e que lhe foi facultada, pois que, na dita versão chinesa, e, no caso, original, consta a matéria considerada em falta e que, em consequência, originou o juízo da sua manifesta improcedência.
Com efeito, na dita acusação em língua chinesa consta que “após o acidente, o arguido pôs o seu veículo a funcionar e ausentou-se do local”.
Tendo-se considerado que a título de elementos objectivos faltava um comportamento, activo ou omissivo, que configure uma tentativa de o mesmo arguido se furtar à responsabilidade, há que concluir pela procedência do recurso.
Decisão
3. Pelo exposto, acordam julgar parcialmente procedente o recurso, devendo os autos voltar ao T.J.B. para nova decisão, (se outro motivo a tal não obstar).
Sem custas (dado que o arguido é alheio ao recurso e não apresentou resposta).
Macau, aos 20 de Janeiro de 2011
_________________________
José Maria Dias Azedo
(Relator)
_________________________
Tam Hio Wa
(Segundo Juiz-Adjunto)
_________________________
Chan Kuong Seng
(Primeiro Juiz-Adjunto)
(concordo com a decisão de resolução do recurso e respectiva fundamentação, e entendo que o arguido ora não recorrente não deve pagar as custas do recurso, não porque não apresentou resposta ao recurso, mas sim exclusivamente porque não deu causa à decisão ora recorrida – veja-se, por outro lado, o art.º 62.º, alínea b), do Regime das custas nos Tribunais, preceito esse que não tem aplicação no caso).
Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
. Processo redistribuído ao ora relator em 10.01.2011.
---------------
------------------------------------------------------------
---------------
------------------------------------------------------------
Proc. 283/2010 Pág. 14
Proc. 283/2010 Pág. 1