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Processo nº 784/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, assistente, notificada do despacho de não pronúncia de B, arguido, com os sinais dos autos, do mesmo veio recorrer para este T.S.I..
Motivou para, a final, produzir as conclusões seguintes:
“1. Vem o presente recurso interposto do despacho que determinou a não pronúncia do 2.° Arguido B e ordenou o consequente arquivamento dos autos.
2. O despacho recorrido fundamenta a não pronúncia do 2.° Arguido com o facto de na opinião da Meritíssima Juíza a quo não existirem no processo provas de que aquele tenha participado ou que tinha conhecimento do acto de revogação da procuração, nem indícios suficientes de que, tendo em vista um fim ilícito, falsificou documentos ou usou documentos falsos, bem como estava ciente de que o outro arguido não tinha poderes para vender os imóveis da Assistente.
3. Ora, salvo o devido respeito, é outro o entendimento da Assistente que considera existirem nos autos indícios e provas suficientes para determinarem a pronúncia do 2.° Arguido pela prática de sete crimes de falsificação de documento de especial valor previstos e punidos pelos artigos 244.° e 245.° e de um crime de burla de valor consideravelmente elevado previsto e punido pelo artigo 211.° todos do Código Penal, pelo que o despacho recorrido incorre num erro de apreciação de prova.
4. Da prova produzida e carreada para os autos foi possível apurar que a Assistente e o 1.° Arguido decidiram, de comum acordo e por vontade recíproca, cancelar e revogar a procuração que havia sido outorgada no dia 30 de Setembro de 1993 no Cartório do Notário Privado C.
5. Ficou também provado que, a fim de procederem à revogação do instrumento em apreço os representantes da Assistente, actuando nessa qualidade, e o Primeiro Arguido, munidos do original da procuração, deslocaram-se no dia 14 de Fevereiro de 1995 ao escritório do advogado C e que aí chegados, e perante o Ilustre Causídico, expressaram verbalmente a sua vontade mútua e recíproca de revogarem e cancelarem a procuração em questão.
6. E que, em seguida, ainda, na presença do Exmo. Sr. Dr. C, formalizaram o acordo revogatório, apondo no corpo do original da procuração, em língua chinesa, as expressões "A presente procuração cancela-se a partir da presente data. 14/2/95" e, em língua inglesa, a expressão "CANCELADA", tendo o original da procuração, já cancelada e revogada, sido depois assinado pelo punho de cada um dos representantes da Assistente e, de igual modo, pelo Primeiro Arguido D.
7. A Assistente e Primeiro Arguido, para além da aposição das expressões acima referidas, inutilizaram o original do instrumento em questão, traçando por completo o seu texto.
8. Para conferir solenidade e testemunhar essa expressão de vontade das partes, o Exmo. Sr. Dr. C apôs também a sua assinatura e o seu carimbo de advogado no original do corpo da procuração revogada.
9. Ficou também provado que na sequência do cancelamento e revogação da procuração o respectivo documento original foi restituído pelo Primeiro Arguido à Assistente que ficou, assim, na posse do mesmo.
10. Na sequência do cancelamento e revogação da procuração o respectivo documento original foi também em 14/02/95 restituído pelo Primeiro Arguido à Assistente, tendo sido guardado pelo seu então Presidente da Assembleia-Geral num cofre bancário aberto junto do Banco XX, o que significa que desde 14 de Fevereiro de 1995 (data da revogação da procuração) e até aos dias de hoje não mais os Arguidos tiveram acesso ao original da procuração em questão.
11. O Primeiro Arguido, através de escrituras públicas celebradas em 23 e 25 de Junho de 2003 transferiu para o património do Segundo Arguido 43 imóveis propriedade da Assistente, tendo, de forma a comprovar os seus alegados (falsos) poderes de representante da Assistente na outorga das escrituras públicas de compra e venda em apreço, utilizado a certidão junta como doc. n.º 1 ao requerimento de 8/08/03.
12. A qualidade do Primeiro Arguido de representante da Assistente, com poderes para dispor do património desta, foi então confirmada por uma certidão de uma alegada pública-forma da procuração que a Assistente outorgou, a favor do Primeiro Arguido em 30/09/93 e que, com o acordo de ambos foi revogada, nos termos acima descritos, em 14/02/95.
13. A referida pública-forma, supostamente extraída no Cartório do Notário Privado F em 7 de Junho de 1995 (e posteriormente arquivada no Cartório Notarial das Ilhas) e na qual este notário apôs os dizeres "a presente fotocópia vai conforme o original, que me apresentaram ... ", é falsa, conforme os numerosos indícios dessa falsidade e que foram enunciados no corpos destas alegações e se encontram demonstrados nos autos.
14. O Primeiro Arguido sabia que a referida pública-forma era falsa - pois 4 meses antes de a mesma ter sido extraída esteve presente e participou na revogação do respectivo original, facto confirmado pelo Exmo. Sr. Dr. C nas declarações por si prestadas a fls. 589 - e que não dispunha de quaisquer poderes para representar a Assistente.
15. O mesmo se diga do Segundo Arguido que tinha perfeito conhecimento da falta dos poderes de representação da Assistente invocados pelo Primeiro Arguido e da falsidade do documento em que esses supostos poderes se baseariam.
16. Pelo que, ao outorgar, nas cinco escrituras publicas de compra e venda dos imóveis da Assistente, como comprador, escrituras nas quais foi utilizado um documento falso e ao ter consciência dessa utilização e concordar com a mesma, o Segundo Arguido cometeu cinco crimes de falsificação de documento de especial valor, tantos quanto as escrituras públicas em que tal documento falso foi utilizado.
17. As compras e vendas celebradas pelos Arguidos, tituladas pelas escrituras públicas cujas cópias foram juntas com o requerimento de 8/08/03, e que tiveram por objecto 43 imóveis propriedade da Assistente que, desse modo, passaram para o património do Segundo Arguido, traduzem-se na consumação da prática de um crime de burla por parte dos Arguidos.
18. Resultou claro da prova produzida nos autos que, os Arguidos, em conluio e com o intuito de obterem para si um enriquecimento ilegítimo, em prejuízo do património da Assistente montaram um plano para à revelia desta transferirem para o seu nome diversos imóveis propriedade daquela, locupletando-se, assim, ilegitimamente com os imóveis e respectivos frutos ou com o preço que poderia resultar da respectiva venda a terceiros.
19. Quanto ao Primeiro Arguido dúvidas nunca existiram de que o mesmo tinha conhecimento de que já não tinha poderes para, em representação da Assistente, vender imóveis pertencentes a esta, uma vez que expressamente interveio e deu o seu consentimento na revogação da procuração com base na qual se arrogou esses poderes, conforme acima melhor se explicitou.
20. O mesmo se diga do Segundo Arguido que, conforme acima já se referiu, tinha também perfeito conhecimento da falta de poderes invocados pelo Primeiro Arguido e da falsidade do documento em que tais poderes se baseariam.
21. Com efeito, conforme se logrou apurar o Segundo Arguido era amigo e colega de profissão do Primeiro Arguido tendo ambos colaborado na realização do plano tendente a burlar a Assistente. Aliás, a intervenção do Segundo Arguido em todo este esquema apenas se pode compreender em face das estreitas relações de confiança e amizade que existiam entre este e o Primeiro Arguido.
22. Por outro lado, o facto de os 43 imóveis em apreço terem sido transmitidos a favor do Segundo Arguido demonstra bem que este sabia da ilicitude do negócio e que para ela contribuiu. Efectivamente, esta transmissão desmonta e deita por terra a teoria que o Primeiro Arguido apresentou nestes autos e que consistia em afirmar que tais imóveis se destinariam, como o consentimento da Assistente, a ser transmitidos à A.
23. Acresce que, conforme foi referido pelas testemunhas arroladas pela Assistente e em particular pelo Dr. F (Notário que tem a seu cargo o Cartório Notarial das Ilhas) o Segundo Arguido fez, ele próprio e por intermédio do seu mandatário judicial – Dr. G, diversas tentativas de marcação das escrituras de compra e venda dos bens pertencentes à Assistente em vários Cartórios Notarias de Macau, tendo-lhe sido dito nessas mesmas tentativas pelos notários em questão que estes não aceitavam exarar as escrituras pretendidas já que a documentação apresentada era irregular.
24. Importa também referir que, o então mandatário dos Arguidos – Dr. G - antes da outorga das escrituras (em Março de 2003) a que se vem fazendo menção enviou, conforme consta do presente processo e do processo de providência cautelar n.º CV3-0013-CAO-A, cartas, entre outros, ao Dr. C, indagando sobre o original e a validade da procuração em questão tendo-lhe o referido causídico respondido em 18 de Março de 2003 que em 14 de Fevereiro de 1995 presenciou pessoalmente a revogação e a declaração de renúncia por parte do Primeiro Arguido aos poderes constantes da aludida procuração.
25. Ora, sendo na altura esse advogado mandatário de ambos os Arguidos, é impensável que não tenha transmitido aos seus Constituintes, mormente ao Segundo Arguido, enquanto pretenso comprador dos 43 imóveis esta informação pelo que este estava perfeitamente ciente da falta de poderes do Primeiro Arguido para transmitir os imóveis pertencentes à Assistente e da falsidade dos documentos que serviram para instruir as escrituras públicas.
26. De resto, conforme já se referiu, o Segundo Arguido é beneficiário do substabelecimento que o Primeiro Arguido outorgou, relativamente aos poderes que lhe haviam sido conferidos pela Assistente, já depois do cancelamento da respectiva procuração.
27. Ora, não sendo o Segundo Arguido um agente imobiliário, é forçoso concluir que o mesmo, ao "comprar" 43 imóveis, agiu com dolosamente e com o único intuito de posteriormente vender aqueles mesmos imóveis pertença exclusiva da Assistente ou auferir os respectivos frutos, locupletando-se, em conjunto com o Primeiro Arguido, com o respectivo valor, na execução deste plano criminoso que, dúvidas não restam consubstancia uma gigantesca burla.
28. Por outro lado, é também óbvio que o Segundo Arguido não pagou quaisquer quantias pela aquisição dos referidos imóveis o que constitui mais um indício de que sabia das ilicitudes que estavam na base deste negócio.
29. Os factos a que acima se fez menção resultaram provados nos autos de acção ordinária n.º CV3-03-0013-CAO (conforme se comprova pelo doc. n.º 4 junto com o requerimento de abertura de instrução), onde se deu nomeadamente como assente que o Segundo Arguido tinha perfeito conhecimento da falta de poderes invocados pelo Primeiro Arguido e da falsidade da pública-forma a que se vem fazendo menção; e que um e outro, desde os primeiros meses do ano de 2003 realizaram em diversos cartórios notariais várias tentativas de marcação das escrituras dos imóveis pertencentes à Assistente, cartórios esses que se recusaram a proceder às mesmas.
30. Por último importa recordar uma vez mais que, no âmbito da providência cautelar a que acima se fez menção, o Segundo Arguido foi condenado como litigante de má fé precisamente por ter alterado dolosamente a verdade da factualidade acima descrita (conforme acórdão cuja cópia se encontra junta aos autos). Ora, quem assim mente e altera a verdade dos factos é porque tenta esconder a sua real conduta, a qual neste caso tem evidentes contornos criminais.
31. Em face do exposto há pois que concluir que o Tribunal a quo incorreu num erro notório de apreciação da prova uma vez que há nos autos indícios suficientes para se proceder à pronúncia do Segundo Arguido pela prática de 5 (cinco) crimes de falsificação de documento de especial valor, p.p. pelos artigos 244.° e 245.° do Código Penal e por um crime de burla de valor consideravelmente elevado p.p. pelo artigo 211.° do mesmo diploma legal.”

Pugna, assim, pela revogação do despacho recorrido; (cfr., fls. 1346 a 1361-v).

*

Em resposta, afirma o arguido o que segue:
“1. O recorrido apoia incondicionalmente o despacho do Mº J.I.C. que expressamente refere a inexistência de prova nos autos de que ele, recorrido, tinha conhecimento que a procuração referida nos autos havia sido alegadamente revogada, bem como do facto de se ter conluiado com o 1º arguido, já falecido, para utilizar aquela procuração alegadamente com um fim ilícito.
Andou, pois, bem o Mº J.I.C. quando não pronunciou o recorrido pelos crime de falsificação de documento de especial valor e de burla, porquanto apreciou correctamente a prova existente nos autos.
2. O arguido recorrente tinha uma relação reverencial com o 1º arguido e sempre obedeceu cegamente às instruções deste emanadas.
Desconhecia, como ainda hoje desconhece, os factos referidos pela recorrente que fundamentam o presente recurso, designadamente, aqueles referidos sob as epígrafes "do original da procuração e da respectiva revogação" e "da falsa pública-forma da procuração e da sua utilização pelos arguidos", pelo que, em consequência, a sua conduta ao longo de todo o processo não tipifica qualquer crime, nomeadamente, o "crime de burla".
3. Aliás, atentando-se no teor da motivação da recorrente, todos os factos aí descritos são alegadamente imputados ao 1º arguido, sendo que as referências feitas ao "2º arguido", ora recorrente, são, todas elas, de uma descarada imaginação, fantasiando uma sua pretensa ligação aos crimes alegadamente imputados ao 1º arguido.
4. Para que conste, reitera-se que o recorrente não esteve presente quando foi outorgada, em 30 de Setembro de 1993, a procuração a que se alude nos autos; não esteve presente quando, no dia 14 de Fevereiro de 1995, tal procuração terá sido "revogada"; nunca esteve na presença do Ilustre Advogado e Notário Privado, Dr. C; e não conhece qualquer dos outros Ilustres Causídicos e/ou Notários Privados referidos nos autos, à excepção do signatário, que pela primeira vez viu e contactou na data em que lhe pediu para assumir o seu patrocínio neste processo (facto este último que resulta bem claro de fls. 607 dos autos!).
5. O recorrente assinou as escrituras referidas nos autos, a solicitação do 1º que lhe foram transmitidas por esses actos notariais e desconhece a existência do alegado substabelecimento que o 1º arguido terá feito a seu favor.
Tudo se passou no absoluto desconhecimento do arguido recorrente, o qual se limitou a apôr a sua assinatura quando e no local que lhe foi solicitado.
6. Conclui-se, assim, pela inexistência de qualquer tipo de dolo por parte do arguido recorrente na prática dos actos que praticou, nomeadamente, a intenção de causar prejuízo a quem quer que seja e/ou a intenção de obter para si ou para terceiro enriquecimento ilegítimo.”

Pede, assim, a confirmação da decisão recorrida; (cfr., fls. 1366 a 1368).

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Por sua vez, e pronunciando-se sobre o recurso, considera o Exmº Representante do Ministério Público que o recurso deve ser julgado improcedente, alegando o que segue:
“1. No despacho de arquivamento anteriormente proferido, o Ministério Público já manifestou que embora os 1º e 2º arguidos D e B sejam suspeitos de cometer o crime de falsificação de documento de especial valor, p.p. pelos artigos 244º e 245º do Código Penal, e o crime de burla, p.p. pelo artigo 211º, nº4, al. a) do mesmo diploma legal, as provas obtidas da investigação não são suficientes para deduzir acusação, pelo que foi decidido o arquivamento do inquérito. O Ministério Público mantém a referida decisão.
2. In casu, a questão nuclear é a veracidade da procuração constituída, em 30 de Setembro de 1993, pelo Sr. E em representação da assistente, em que substabeleceu poderes ao 1º arguido D. A assistente entende que tal procuração já foi revogada e cancelada pelos constituinte e procurador, em 14 de Fevereiro de 1995, no Escritório de Advogados C, tendo ambas as partes assinado na mencionada procuração, bem como o Advogado C como testemunha. Mas o 1º arguido D insistia que a procuração não foi revogada ou cancelada e que a procuração detida e utilizada por ele, que foi constituída em 30 de Setembro de 1993 era verdadeira, alegando não ter ido ao referido escritório (C) em 14 de Fevereiro de 1995 e afirmando que a assinatura aposta para revogar ou cancelar a procuração não era dele.
3. Cada parte tem os seus fundamentos, não conseguindo invocar provas induvidosas para contestar a alegação da outra parte. Os 1º e 2º arguidos, D e B celebraram o contrato de compra e venda baseando-se na procuração constituída em 30 de Setembro de 1993 e com intervenção do advogado e notário, F.
4. Dos factos do caso, conclui-se, através das experiências, a alegação de uma das duas partes [a denunciante (assistente) e os denunciados (arguidos)] é falsa ou não é verdade. Analisado o acto anormal da venda dos imóveis pertencentes à assistente (A – uma associação religiosa) pelo 1º arguido a outrem (2º arguido), é mais provável que os 1º e 2º arguidos tenham falsificado documentos para desfalcar os bens públicos. Portanto, o Ministério Público concorda com alguns pontos de vista deduzidos na petição de recurso da assistente.
5. Porém, do ponto de vista da acusação penal, embora os dois arguidos tenham motivos e intenção para praticar o crime, é necessário obter provas suficientes e induvidosas para acusar os dois dos crimes de falsificação de documento de especial valor, p.p. pelos artigos 244º e 245º do Código Penal, e do crime de burla, p.p. pelo artigo 211, nº 4, e al. a), do mesmo código.
6. In casu, apesar de se poder suspeitar razoavelmente que a procuração utilizada pelo 1º arguido D (falecido) já foi revogada e cancelada, pelo que é uma procuração “falsa”, não se conseguiu obter provas suficientes para sustentar esta conclusão. Nesta conformidade e de acordo com o princípio e espírito da lei no artigo 259º, nº 2, do Código de Processo Penal, o Ministério Público mantém a posição de não pronunciar os dois arguidos e também concorda com o despacho de não pronúncia do 2º arguido B, proferido pela MMª Juíza do JIC, nos termos do artigo 289º, nº 2 do mesmo diploma legal.”; (cfr., fls. 1374 a 1375 e 1388 a 1391).

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Remetidos os autos a este T.S.I., e em sede de vista, juntou o Exm° Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:
“Concordamos inteiramente com a posição assumida pelo Exmo colega junto da 1ª instância.
Uma coisa é a possibilidade de existência de suspeitas e tal poder-se-à colocar, até a nível da motivação do recorrido, outra, assaz diversa, é a existência de indícios sérios e suficientes, com prova sustentável, de que o mesmo tenha sabido ou participado no acto de revogação da procuração em causa e que tenha falsificado ou utilizado documentos notariais falsificados, "conspirando" com o outro arguido, já falecido, no intuito de causar prejuízo à assistente, tudo a permitir a pronúncia almejada, relativa à prática de 5 crimes de falsificação de documento e especial valor e de um crime de burla de valor consideràvelmente elevado.
Pese embora o alegado pela recorrente, também não descortinamos matéria indiciária e comprovativa passível de alteração do decidido.
Donde, entendermos ser de manter o mesmo.”; (cfr., fls. 394).

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Cumpre decidir:

Fundamentação

2. Antes de mais, mostra-se útil aqui consignar o que segue:

Os presente autos tiveram início em 28.02.2003 com a queixa – crime pela ora recorrente apresentada contra D, imputando-lhe a prática dos crimes de “falsificação” p. e p. pelo art. 244º, al. a) do C.P.M. e de “burla”, p. e p. pelo art. 211º do mesmo código; (cfr., fls. 2 a 3).

Em sede do Inquérito (nº 2120/2003) que tal queixa veio originar, e em 08.08.2003, apresentou também a mesma recorrente queixa-crime contra B, (ora recorrido), imputando-lhe também a prática de um crime de “burla”; (cfr., fls. 251 a 254-v).

Por despacho de 26.11.2008, ordenou-se o arquivamento dos autos; (cfr., fls. 733 a 733-v).

Tempestivamente, requereu a ora recorrente a abertura da instrução; (cfr., fls. 749 a 765-v).

Finda a instrução, proferiu o Mmº Juiz de Instrução Criminal o seguinte despacho de não pronúncia (objecto do presente recurso):
“O Juízo de Instrução Criminal é competente.
O processo é o próprio.
O Ministério Público dispõe de legitimidade na interposição da acção criminal.
Não há nulidade, nem excepções ou questões preliminares que obstem o conhecimento do mérito e que requeiram imediata solução oficiosa.
Não há detenção ilegal no presente processo.
Concluídos a instrução e o debate instrutório, cumpre-nos decidir.
Dispõe o artigo 289º do Código de Processo Penal que: “Se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos…”
Deste modo, não se exige prova material nesta fase, isto quer dizer que o juiz pronuncia o arguido quando haja indícios suficientes de o arguido ter praticado acto ilícito, por qual deve o mesmo ser punido por lei, no caso contrário, o juiz profere despacho de não pronúncia.
Nesta causa, o Ministério Público decidiu o arquivamento do inquérito, ao abrigo do artigo 259º, nº 2, do Código de Processo Penal, por falta de prova suficiente.
A assistente, A, pediu a instrução, solicitando que sejam pronunciados os arguidos abaixo indicados (vide fls. 840 a 844 dos autos):
- O arguido D pela prática de sete crimes de falsificação de documento, p.p. pelos artigos 244º e 245º do Código Civil e pela prática de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 211º do mesmo diploma legal;
- O arguido B pela prática de sete crimes de falsificação de documento, p.p. pelos artigos 244º e 245º do Código Civil e pela prática de um crime de burla qualificada, p.p. pelo artigo 211º do mesmo diploma legal;
Aberta a instrução, o JIC tomou as diligências necessárias e viáveis, tendo analisado e apreciado em pormenor as provas documentais, os depoimentos testemunhais e os dados relacionados constantes dos autos, o que serve como base para tomada de decisão.
Após o debate instrutório, foi confirmado, através do Conservatória de Registo Civil, que o arguido D morreu no dia 24 de Agosto de 2010 (vide fl. 1336 dos autos).
De acordo com o artigo 119º do Código Civil dispõe, a responsabilidade penal extingue-se pela morte do arguido. Nesta conformidade e nos termos do artigo 289º do Código de Processo Penal, decide-se não pronunciar o arguido D.
No que tange ao arguido B, não há prova de que o mesmo tenha sabido ou participado no acto de revogação da procuração em causa. Também não existe indícios suficientes de o mesmo, a fim de obter benefício ilegítimo, ter falsificado ou utilizado documentos notariais falsificados, ou ter conspirado com o outro arguido, com intenção de causar prejuízo à assistente, mesmo sabendo que o outro arguido não tinha direito de vender os imóveis da assistente.
Nos termos expostos, decide-se não pronunciar o arguido B, ao abrigo do artigo 289º, segunda parte do nº 2, do Código de Processo Penal.
Notifique nos termos da lei.
Extinguem-se as medidas de coacção aplicadas aos arguidos após o trânsito em julgado da presente decisão.
Arquive o processo oportunamente.”; (cfr., fls. 1339 a 1340 e 1384 a 1387).

Atento o assim decidido, (onde, certamente por lapso se consignou que a ora recorrente pedia a pronúncia do ora recorrido por “sete crimes de falsificação de documentos...”, pois que apenas pediu a pronúncia por “cinco” destes crimes), e tendo-se presente o pela ora recorrente alegado no âmbito do seu recurso, vejamos.

Nos termos do já citado art. 289º do C.P.P.M.:
“1. Encerrado o debate instrutório, o juiz profere despacho de pronúncia ou de não-pronúncia.
2. Se tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se terem verificado os pressupostos de que depende a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, o juiz pronuncia o arguido pelos factos respectivos; caso contrário, profere despacho de não-pronúncia.
3. É correspondentemente aplicável ao despacho referido nos números anteriores o disposto nos n.ºs 2 a 4 do artigo 265.º
4. No despacho referido nos números anteriores o juiz começa por decidir todas as questões prévias ou incidentais de que possa conhecer.
5. A circunstância de ter sido requerida apenas por um dos arguidos não prejudica o dever de o juiz retirar da instrução as consequências legalmente impostas para todos os arguidos.”

Importa assim saber se nos presentes autos constam os referidos “indícios suficientes” da prática dos crimes que pela ora recorrente são imputados ao arguido, ora recorrido, B.

No que toca ao conceito de “indícios suficientes” ocorre-nos aqui recordar o que em sede declaração de voto anexa ao Ac. de 23.05.2007, Proc. nº 231/2007 tivemos oportunidade de afirmar:
“Pois bem, note-se desde já que a questão não é nova, e – embora nem sempre com o mesmo sentido – foi já algumas vezes abordada tanto a nível de decisões judiciais como por alguma doutrina processual penal.
Da pesquisa que nos foi possível efectuar, e pugnando pelo entendimento que ao referir-se à existência de “forte indícios” (e não apenas de “indícios suficientes”), o legislador quis ser mais exigente, temos o Ac. da Rel. do Porto de 29.03.2000, Proc. nº 0010091, e o da Rel. de Guimarães de 07.07.2004, Proc. nº 1319/04-1 (in, “www.dgsi.pt”), podendo-se ver também os trabalhos de Araújo Barros, “Critérios da prisão preventiva”, RPCC, 2000, pág. 243, Mouraz Lopes, “Responsabilidade civil do estado pela privação da liberdade decorrente da prisão preventiva”, R.M.P., 2001, nº 88, pág. 84, e Pedro J. Teixeira de Sá, “Fortes Indícios de Ilegalidade da Prisão Preventiva”, Scientia Iuridica, Tomo XLVIII, nº 280/282, pág. 387 e segs.
Noutro sentido, entendendo-se que os “fortes indícios” não carecem de atingir o grau da probabilidade dos “indícios suficientes”, ou que tenham até um significado semelhante, vão os Acs. da Rel. do Porto de 06.01.1993, Proc. nº 9231013, de 14.03.1997, Proc. nº 9710417, de 28.01.1998, Proc. nº 9810024, de 13.10.1999, Proc. nº 9940910, e, mais recentemente, de 24.04.2005, Proc. nº 0542295, (in, “www.dgsi.pt”).
Nesta mesma linha de entendimento, encontram-se Jorge Noronha da Silveira in, “O despacho de acusação e o conceito de indícios suficientes”, “Jornadas de Dtº Processual Penal e Direitos Fundamentais”, pág. 155 e segs., e Maria João Antunes in, “Liber discipuloram. O segredo de justiça e o direito de defesa do arguido sujeito a medida de coacção”, pág. 1252.
Afigurando-se-me que o entendimento segundo o qual os “fortes indícios” são algo mais – um «plus» – em relação aos “indícios suficientes”, assenta essencialmente no argumento literal das expressões em causa, mostra-se-me porém de acompanhar a posição que considera que com a expressão “fortes indícios” – para efeitos de aplicação da prisão preventiva – não se exige mais que com a expressão “indícios suficientes”, (para efeitos de acusação e pronúncia), pois que, como já afirmava Castanheira Neves, a boa hermenêutica das normas jurídicas não se alcança com o recurso a um dicionário.
De facto, e como esclarecidamente refere Maria João Antunes, (in ob. e loc. cit.), “o que seria insuficiente para a acusação ou para a pronúncia pode ser bastante para dar como verificado o pressuposto fortes indícios de prática de crime, tanto mais quanto, tratando-se da fase de inquérito, a medida de coacção pode ser decidida num momento processual ainda de aquisição de prova”, (...), “quando se decide a aplicação de uma medida de coacção podem ainda não ser mobilizáveis os mesmos elementos probatórios ou de esclarecimento, e portanto de convicção, que já estarão disponíveis quando se decide pela acusação ou pronúncia. Por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a acusação ou pronúncia pode ser bastante para dar como verificado o pressuposto «fortes indícios de prática do crime»”.
Aliás, também Figueiredo Dias, no âmbito do C.P.P. de 1929 defendia que “os indícios só serão suficientes e a prova bastante quando, já em face deles, seja de considerar altamente provável a futura condenação do acusado ou quando esta seja mais provável do que a absolvição”, afirmando, em seguida, que “tem pois razão Castanheira Neves quando ensina que na suficiência dos indícios está contida «a mesma exigência de verdade requerida pelo julgamento final – só que a instrução preparatória (e até a contraditória) não mobiliza os mesmos elementos probatórios e de esclarecimento, e portanto de convicção, que estarão ao dispor do Juiz na fase de julgamento, e por isso, mas só por isso, o que seria insuficiente para a sentença pode ser bastante ou suficiente para a acusação”; (in, “Dtº Processual Penal”, 1974, I Vol. pág. 133).”

Atento o que se deixou consignado, vejamos.

Da análise que se efectuou aos autos, em nossa opinião, e em síntese, resulta que:
– em 30.09.1993, E, na altura, vice-presidente da Direcção da ora recorrente, outorgou, em representação desta, no Cartório do Notário Privado C, uma procuração através da qual constituiu seu bastante procurador D, a quem conferiu os poderes que aí se enunciam;
– em 14.02.1995, as partes revogaram a dita procuração, e o respectivo original foi restituído à ora recorrente que o depositou num cofre de um banco local;
– em 13.01.2003, D, outorgou um substabelecimento a favor de B, ora recorrido;
– através de cinco escrituras públicas celebradas em 23.06.2003 e 25.06.2003, (após a queixa-crime, e de ser ouvido em sede do Inquérito instaurado em consequência daquela, cfr., fls. 132), D, transferiu para B, ora recorrido, 43 imóveis propriedade da ora recorrente;
– em tais actos notariais, e para comprovar a sua qualidade de legal representante da ora recorrente, D, exibiu uma pública-forma da referida procuração, extraída de uma cópia desta tirada antes da sua revogação;
– tal circunstância era do conhecimento de D e B, ora recorrido;
– os mesmos agiram em concluio e com o intuito de obterem enriquecimento ilícito e em prejuízo do património da ora recorrente.

Perante o que se consignou, (que em nossa opinião, resulta, suficientemente indiciado nos autos), evidente é que a decisão recorrida não se pode manter, impondo-se, assim, a sua revogação, pois que da retratada factualidade constam os elementos objectivos e subjectivos dos crimes que pela ora recorrente são imputados ao arguido ora recorrido.

Dir-se-à, (eventualmente), que não se alcançam os motivos para se considerar a dita matéria como “suficientemente indiciada”.

Pois bem, eis o porque deste nosso entendimento:
– quanto, à “outorga da procuração” em 30.09.1993, posterior “substabelecimento” e “cinco escrituras públicas” outorgadas em 23.06.2003 e 25.06.2003, afigura-se-nos, (pelo menos, por ora) inquestionável, bastando uma mera consulta aos documentos juntos aos autos; (cfr., v.g., fls. 19 a 23 e 283 e segs.);
– quanto à “revogação” da dita procuração, em 14.02.1995, dúvidas também não parece que possam existir face ao documento junto a fls. 19 a 23 e às (claras) declarações do Exmº Notário Privado que presenciou e teve intervenção neste acto; (cfr., fls. 589 a 590);
– quanto ao “conhecimento” que D tinha da dita revogação, basta lembrar que o mesmo também teve intervenção pessoal em tal acto revogatório;
– quanto ao “conhecimento” que B tinha de tal revogação, o mesmo, resulta, essencialmente, do que segue:
– é amigo de D, não lhe sendo conhecida a prática de actividades de investimento ou especulação imobiliária, (até por ser bonzo), nada justificando a súbita decisão de, em tão curto espaço de tempo, (3 dias), adquirir um tão elevado número de imóveis, (recorde-se que são 43);
– beneficiava já de um substabelecimento, e, mesmo assim, (algo incompreensivelmente), preferiu outorgar, como comprador, escritura pública de compra e venda com D; e,
– em sede da acção ordinária nº CV3-03-0013-CAO que correu termos no T.J.B., e após audiência colectiva de julgamento, deu-se como provado que “tinha perfeito conhecimento da falta de poderes do dito D, e da falsidade da pública-forma da procuração outorgada em 30.09.1993; (cfr., fls. 818).

Ora, perante isto, pouco se mostra de acrescentar.

Não se nega que os factos provados na dita “acção ordinária” são “autónomos” em relação aos presentes autos.

Todavia, em sede de “indícios”, não vemos como não se atribuir o devido relevo.

Com efeito, não se pode olvidar que a prova do aludido “conhecimento e falta de poderes” foi produzida e apreciada por um Colectivo de Juízes, e obviamente, submetida ao contraditório próprio deste tipo de processos.

Nesta conformidade, e na ausência de qualquer outro elemento que se possa retirar dos autos que permita outra perspectiva das coisas – até porque o próprio arguido, que, eventualmente, podia colaborar no esclarecimento da verdade material dos factos, se remeteu ao silêncio – à vista está a solução, restando decidir.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, e em conferência, acordam conceder provimento ao recurso, revogando-se a decisão recorrida.

Pagará o arguido recorrido as custas do presente recurso, com taxa de justiça que se fixa em 8 UCs.

Macau, aos 16 de Dezembro de 2010
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
João A. G. Gil de Oliveira

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