Processo n. 561/2007
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 14/04/2011
Descritores: Acidente de viação
SUMÁRIO:
Não tendo sido possível aos autores demonstrar a culpa, nem exclusiva, nem concorrencial, do condutor do veículo pesado e, por outro lado, tendo sido obtida prova de que o acidente se deveu exclusivamente a culpa de um dos condutores, por não ter respeitado o dever de cedência de passagem a veículo que circulava em estrada com prioridade, violando o disposto nos arts. 14º, n.1, do Código da Estrada e 4º, n.s 1 e 2, al. f) e 9º, n.1, 2 e 6, alínea b), do Regulamento do Código da Estrada, afastada fica a possibilidade da responsabilidade pelo risco.
Proc. N. 561/2007
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A(XXX), viúvo, contabilista, titular do BIRM nº X/XXXXXX/X, e seu filhos menores B e C, todos residentes em Macau, na Rua da XXX, nº 58, Edf. XX, 2º andar,
Intentaram, em 28/10/2004, acção declarativa com processo ordinário contra:
(1) D (XXX), casado, residente em Macau, à Avenida do XXX, edf. Jardim XX, bloco 1, XXº andar “I”, titular do BIRM nº X/XXXXXX/X, tel.: XXXXXXX,XXXXXX; e
(2) Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L., com sede em Macau, ao Aterro do Pac On, Avenida XX, lote I, Taipa; e,
(3) Companhia de Seguros XXX, S.A.R.L., com sede em Macau, na Rua de Pequim, Edf. Macau XX, nºs XXXª – XXX, 6º andar “A”,
Pedindo a condenação dos RR no pagamento de Mop$ 5.973,375, a título de danos patrimoniais e não patrimoniais, em consequência da morte por acidente de viação de que foi vítima E, que foi esposa do primeiro e mãe dos segundo e terceiro autores.
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Na oportunidade, foi lavrado o despacho saneador, no qual, por ilegitimidade passiva, foram absolvidos da instância os primeiro e terceiros réus.
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Lavrada a sentença, foi a acção julgada improcedente e a ré absolvida do pedido.
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Dessa decisão interpuseram os autores o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações formularam as seguintes conclusões:
“1. Não tendo em conta os depoimentos justos e imparciais prestados pelas testemunhas, o tribunal a quo respondeu incorrectamente os pontos 4.º, 28.º, 37.º, 6.º e 17.º da base instrutória e violou o princípio da livre apreciação das provas previsto no artigo 558.º n.º 1 do Código de Processo Civil;
2. Assim sendo, vêm os recorrentes invocar as impugnações das respostas aos pontos 4.º, 28.º, 37.º, 6.º e 17.º da base instrutória feitas pelo tribunal a quo, impugnações essas são baseadas nos depoimentos prestados pelas aludidas testemunhas na audiência de julgamentos que foram registados na gravação sonora da audiência de julgamento (registo de gravação sonora: Translator 2);
3. Caso o ponto 4o da base instrutória seja provado, o condutor do autocarro interveniente violou manifestamente o limite máximo genérico de velocidade previsto no artigo 20.º do Regulamento do Código da Estrada por remissão do artigo 22.º n.º 2 do Código da Estrada, isto é, de 50 km/h para os automóveis pesados de passageiros na localidade, por isso, ao abrigo do artigo 22.º n.º 3 do Código da Estrada, devendo considerar-se excessiva velocidade;
4. Caso os pontos 28.º e 37.º da base instrutória não sejam provados, o condutor do autocarro interveniente manifestamente não regulou a sua velocidade conforme a situação concreta do pavimento naquele momento e circulava em excessiva velocidade, e sendo como o condutor a quem devia ser cedida a passagem, o condutor do autocarro interveniente não tomou previamente as precauções impostas pela segurança do trânsito, condutas essas violaram o artigo 22.º n.º 1 e o artigo 25.º n.º 2 do Código da Estrada;
5. Mesmo que os MM.ºs Juízes do Tribunal de Segunda Instância não concordem com as impugnações dos factos ora invocadas e por mera cautela de patrocínio, vêm os recorrentes invocar, com base nos factos provados do tribunal a quo, a indemnização resultante dos factos ilícitos por culpa;
6. Dos elementos objectivos resulta que na altura, o condutor do autocarro interveniente devia ter condições básicas necessárias para se aperceber previamente da presença do veículo automóvel da vítima mortal, por forma a evitar o acidente;
7. Além disso, o condutor do autocarro interveniente é condutor profissional e já trabalha para a referida companhia de autocarro já há muitos anos, pelo que, ele possui rica experiência da condução e conhece muito bem o ambiente do local do acidente, porém, dos factos constantes dos autos, pode-se concluir que o condutor do autocarro em causa conduzia com imprudência e imprevidência, pois qualquer homem médio (mesmo o condutor profissional com rica experiência), deve prever que desde a Avenida de Kwong Tung até ao local de acidente, para além de haver outras viaturas que saírem, a qualquer tempo, da Rua da Bragança, há também viaturas provenientes da outra faixa de rodagem em sentido contrário da Avenida de Kwong Tung que viram à direita para a Rua da Bragança (mesmo que devam tais viaturas cumprir o dever de ceder a passagem), bem como é muito possível que há outros utentes da via pública que surgem nas passageiras para peões existentes no local do acidente;
8. Conforme os factos provados e as respostas à base instrutória, o condutor do autocarro interveniente não tomou previamente as precauções impostas pela segurança do trânsito e conduzia manifestamente com falta de previdência, o que assim violou o artigo 25.º n.º2 do Código da Estrada;
9. Apesar de provado que a vítima mortal saiu da rua de forma súbita e inesperada, não se conseguiu provar que a vítima mortal circulava à velocidade não inferior a 70 km/h;
10. Para o condutor do autocarro interveniente que conduzia de forma descuidada, isto pode ser “forma súbita e inesperada”, porém, para o condutor comum que conduz com prudência, isto nunca pode ser “forma súbita e inesperada”;
11. Conforme a resposta ao ponto 38.º da base instrutória, provou-se que o veículo automóvel da vítima mortal foi embatido pela parte dianteira do autocarro interveniente. Dai, pode-se ver que não foi o veículo automóvel da vítima mortal que embateu na parte dianteira do autocarro;
12. Com base nos factos provados, o tribunal a quo provou indubitavelmente que a vítima mortal não respeitou o sinal de cedência de passagem e causou o embate entre a viatura por si conduzida e o autocarro interveniente, contudo, o tribunal a quo não tomou em conta outros factos provados;
13. Também ignorou a conduta e a atitude do próprio condutor do autocarro, pois os factos referidos nos pontos 21.º a 26.º da base instrutória não foram provados, factos não provados esses podem provar que o condutor do autocarro interveniente não agiu de forma cuidadosa e prudente;
14. Conforme as doutrinas citadas na sentença, o tribunal a quo considerou que a conduta da vítima mortal constitui a contravenção prevista no Código da Estrada, por isso, isto implica que existe a presunção legal de negligência, contudo, o tribunal a quo não considerou que conforme os factos confirmados e provados, o condutor do autocarro interveniente também praticou a contravenção prevista no Código da Estrada e no Regulamento do Código da Estrada;
15. Nestes termos, é errado e não é objectivo que o tribunal a quo provou isso;
16. O recorrente entende que in casu, existe pelos menos culpa concorrente entre o autocarro interveniente e a vítima mortal, porém, o tribunal a quo não considerou isso com base na matéria de factualidade;
17. Se o referido condutor não faltasse manifestamente de prudência e de precaução, o autocarro em causa não embateu no veículo automóvel da vítima mortal, quer isto dizer que, desde que o condutor do autocarro conduzisse com precaução e prudência, a vítima mortal e a viatura dela não foram necessariamente embatidas, mesmo que o veículo automóvel da vítima mortal saísse da rua sem cumprir o sinal de cedência de passagem;
18. Pelo que, o recorrente entende que a responsabilidade do condutor do autocarro no presente acidente deve ser de 60% enquanto a da vítima mortal de 40% e assim só corresponde às situações concretas do caso;
19. Quanto a isso, nos termos do artigo 564.º n.º 1 do Código Civil, o tribunal a quo devia determinar conceder totalmente a indemnização ou reduzi-la;
20. Sendo a empregadora do condutor do autocarro interveniente, a Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L é a entidade que fica com a direcção efectiva e o dever de vigilância do autocarro interveniente, por isso, nos termos do artigo 486.º n.º 1 do Código Civil, esta responde pelos danos que a coisa causar, salvo se provar que nenhuma culpa houve da sua parte ou que os danos se teriam igualmente produzido ainda que não houvesse culpa sua;
21. Porquê é que o veículo pesado conduzido pelo condutor em causa acabou por embater no veículo automóvel ligeiro da vítima mortal? Isto porque o condutor em causa não conseguiu travar o autocarro a tempo. Além disso, dado que não se deu como provado que o sistema de travagem do referido autocarro estava em normal funcionamento e em estado completamente eficiente (vide a resposta ao ponto 30.º da base instrutória), pode-se provar que na manutenção e na direcção dos seus autocarros, a Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L não conseguiu assegurar a circulação segura e eficiente dos seus autocarros na via pública, por isso, violou o artigo 29.º do Regulamento do Trânsito Rodoviário quanto ao funcionamento eficiente do sistema de travagem;
22. Mais ainda, sendo a empregadora do condutor do autocarro interveniente, a proprietária e detentora da direcção efectiva do referido autocarro, a Sociedade de Transportes' XX de Macau, S.A.R.L que encarrega outrem para exercer as actividades de transportes colectivos por si explorados responde, independentemente de culpa, pelos danos que o comissário causar, desde que sobre este recaia também a obrigação de indemnizar (artigo 493.º do Código Civil);
23. Caso os MM.ºs Juízes não entendam os pontos de vista acima referidos e por mera cautela de patrocínio, vêm os recorrentes invocar a responsabilidade pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo na circulação:
24. Nos termos do artigo 496.º n.ºs 1 e 3 do Código Civil, a Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L. que tem a direcção efectiva de veículos de circulação terrestre e o utilizar no seu próprio interesse, ainda que por intermédio de comissário, responde pelos danos provenientes dos riscos próprios do veículo;
25. Quanto à questão da exclusão ou não dos riscos, o Dr. Sinde Monteiro, Professor da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Portugal, entende que “o facto “imputável ao próprio lesado” previsto no artigo 498.º do Código Civil deve ser grave e crucial que causa necessária e directamente o acidente;
26. Por outro lado, “Este artigo não é aplicável quando o acidente tenha resultado de culpas concorrentes do lesado e do condutor do veículo”;
27. “Tem que se provar, para excluir a responsabilidade, que houve culpa do lesado e não houve culpa do condutor ou detentor”;
28. O próprio condutor do autocarro e a Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L. são efectivamente os culpados pelo acidente em causa, por isso, não se pode excluir a responsabilidade objectiva ou do risco deles;
29. Porém, o tribunal a quo aplicou o artigo 498.º do Código Civil e provou que a culpa do acidente de viação em causa é da vítima, por isso, não fixou nenhuma indemnização;
30. O recorrente entende que só é aplicável o referido disposto legal para excluir a responsabilidade objectiva do condutor do autocarro quando a vítima é a única e exclusiva culpada do acidente de viação;
31. A doutrina portuguesa entende que: Neste artigo 505.º supõe-se, por exclusão, ter sido o acidente apenas imputável ao lesado ou a terceiro ou resultante de causa de força maior estranha ao funcionamento do veículo, para excluir a responsabilidade fixada no n.º 1 do artigo 503.º;
32. Porém, como já foi referido, mesmo que o veículo automóvel da vítima moral saiu da rua sinalizada com cedência de passagem, caso o condutor do autocarro não conduzisse em excesso de velocidade ou conduzisse com precaução e prudência, ele poderia travar ou parar o autocarro a tempo, evitando o embate no veículo automóvel da vítima mortal e na própria vítima; pelo menos, não provocaria um embate tão forte e violento que causou directamente a morte quase instantânea da vítima;
33. Por outras palavras, mesmo que a vítima mortal saísse da referida via, a conduta do condutor do autocarro interveniente tomou-se possível a ocorrência do acidente, constituindo o elemento decisivo da ocorrência do acidente, quer isto dizer que, o acidente não pode ser imputado unicamente à própria vítima mortal;
34. Além disso, a doutrina e a jurisprudência portuguesas entendem unanimemente que: Para a exacta compreensão do preceito, importa considerar que não é um problema de culpa que está posto no artigo 505.º, mas apenas um problema de causalidade: trata-se de saber se os danos verificados no acidente deve ser juridicamente considerados, não como um efeito do risco próprio do veículo, mas sim como uma consequência do facto praticado pela vítima ou por terceiro;
35. O tribunal a quo não pode considerar que a vítima é a culpada do acidente só com base na contravenção por ela praticada, mas sim deve considerar se existe nexo de causalidade entre a conduta da vítima e a produção do acidente e se os danos sofridos pela vítima (a morte) constituem a consequência necessária da sua conduta;
36. Pelos acima expostos, é errado e injusto que o tribunal a quo aplicou o artigo 498.º do Código Civil e excluiu a responsabilidade pelo risco da ré.
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Contra-alegou a Ré, tendo formulado as seguintes conclusões:
1a
Os ora recorrentes vêm, em primeiro lugar, impugnar a decisão de facto constante da douta decisão recorrida, designadamente a matéria respeitante aos quesitos 4º, 6º, 17º, 28º e 37º da Base Instrutória, alegando, a propósito, que o Tribunal a quo não valorou parte dos depoimentos de diversas testemunhas em sede de julgamento que impunham, sobre esses pontos da matéria de facto, decisão diversa da recorrida.
2ª
Estipula o artigo 599º, n.º 1, alínea b), do CPC, a este respeito, que cabe ao recorrente especificar, sob pena de rejeição de recurso, quais os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo realizado, que impunham, sobre a matéria de facto em causa, decisão diversa da recorrida.
3ª
Acrescentando ainda o n.º 2 daquele artigo que, e passamos a citar: “No caso previsto na alínea b) do número anterior, quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação da prova tenham sido gravados, incumbe ainda ao recorrente, sob pena de rejeição do recurso, indicar as passagens da gravação em que se funda” .
4ª
Impunha-se assim aos recorrentes que indicassem as passagens da gravação dos depoimentos das testemunhas com base nos quais pretendiam impugnar a matéria de facto acima assinalada, transcrevendo na íntegra, ou seja, “ipsis verbis”, as passagens dos depoimentos em causa ou, no mínimo dos mínimos, indicando o início e o termo da gravação respeitante a cada depoimento.
5ª
Sucede que os recorrentes não procederam a qualquer transcrição dos depoimentos com base nos quais pretendiam alterar aquela matéria de facto; e, por outro lado, não especificaram sequer a passagem da gravação respeitante a cada depoimento.
6ª
Conclui-se assim que os recorrentes não observaram a estipulação legal plasmada no artigo 599º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPC, não indicando, em suma, as passagens da gravação dos depoimentos das testemunhas em que se funda o seu pedido de impugnação da decisão de facto, devendo, em conformidade, o recurso a que ora se responde ser rejeitado (artigo 599º, n.º 2, daquele Código).
7ª
Aliás, se assim não fosse entendido, estaria o TSI a realizar um novo julgamento através da audição do depoimento de diversas testemunhas, quer elas tenham ou não sido mencionadas no recurso, quer relativamente a questões que nada têm a ver o objecto do mesmo.
8ª
Ora, a plena efectivação do segundo grau de jurisdição na apreciação da matéria de facto não implica a repetição do julgamento pelo tribunal de 2.ª instância - um novo julgamento, no sentido de produzir ex novo, respostas aos quesitos da base instrutória -, mas, apenas, verificar, mediante a análise da prova produzida, nomeadamente a que foi objecto de gravação, se as respostas dadas pelo tribunal recorrido têm nas provas suporte razoável, ou se, pelo contrário, a convicção do tribunal de 1.ª instância assentou em erro tão flagrante que o mero exame das provas gravadas revela que a decisão não pode subsistir.
9ª
Esteve bem o Tribunal a quo ao decidir do modo como o fez relativamente aos quesitos 4º, 6º, 17º, 28º e 37º da Base Instrutória, dentro do princípio da livre apreciação das provas que lhe assiste e em estrito respeito do critério de objectividade e das regras da experiência comum.
10ª
Ao abrigo daquele princípio, o Tribunal recorrido respondeu aos quesitos formulados em conformidade com as provas produzidas e examinadas em audiência, facto reconhecido, aliás, pelos ora recorrentes que nem sequer reclamaram das respostas aos quesitos da Base Instrutória como lhes era legalmente permitido pelo artigo 556º, n.º 5, do CPC (cfr., acta de fls. 318 e 319).
11ª
Os recorrentes limitam-se nas suas alegações de recurso tão somente a discordar do julgamento da matéria de facto feita pelo tribunal recorrido no que respeita aos quesitos acima identificados, pretendendo, ao fim ao cabo, impor o seu juízo pessoal ao juízo do tribunal, colocando em causa o princípio da livre apreciação da prova.
12ª
Não nos podemos esquecer que a possibilidade conferida pela lei do Processo Civil de reapreciação da matéria de facto não deve ser erigida num regime-regra, antes configura um meio excepcional, circunscrito às hipóteses em que a renovação dos meios de prova se revele absolutamente indispensável ao apuramento da verdade material e ao esclarecimento cabal das dúvidas surgidas quanto aos pontos da matéria de facto impugnada.
13ª
Em face desse carácter excepcional da renovação dos meios de prova em sede de recurso, é jurisprudência unânime que a eventual alteração da matéria de facto só pode ter lugar quando haja elementos cuja análise a imponham muito claramente, não sendo suficiente que a análise da prova possa sugerir respostas diferentes das que foram dadas.
14ª
Uma alteração da matéria de facto, ainda que processualmente admissível e regulada na lei, implica um segundo julgamento com a perda de frescura e da imediação inerentes, por natureza, ao primeiro julgamento da matéria de facto. Ressalta assim que as razões que ditam uma reescrita dos factos terão de resultar como claras e evidentes, não podendo deixar a dúvidas ou interpretações alternativas.
15ª
Os depoimentos das testemunhas indicados pelos recorrentes em nada alteram a matéria de facto a que chegou o tribunal Colectivo da 1ª instância, em particular a referente aos quesitos 4º, 6º, 17º, 28º e 37º da Base Instrutória.
16ª
Concluindo, nenhum dos depoimentos mencionados pelos recorrentes é claro e evidente a ponto de determinarem respostas diferentes das que foram dadas aos quesitos em causa e de forma a não deixar dúvidas ou interpretações alternativas; nenhuma daquelas provas conduz à conclusão que a convicção do Tribunal de 1.ª instância relativamente aos quesitos em questão assentou em qualquer erro flagrante e que a decisão de facto não pode subsistir.
17ª
Pelo contrário. Os depoimentos em causa comportam uma outra interpretação e são claramente infirmados por outros elementos de prova como seja o depoimento do próprio condutor do autocarro, conforme resulta das transcrições que foram acima expressamente transcritas; são, por outro lado, totalmente estranhos e por demais irrelevantes relativamente à matéria constante dos quesitos 28º e 37º, não chegando sequer a sugerir respostas diferentes das que foram dadas; e, por fim, revelam-se totalmente insuficientes e precários no caso dos quesitos 4º, 6º e 17º, não corroborando as conclusões dos recorrentes a esse respeito.
18ª
Nesta conformidade, o recurso não poderá deixar igualmente de improceder no tocante à impugnação da matéria de facto pretendida.
19ª
Na segunda parte do seu recurso, os recorrentes alegam que houve concurso de culpas por parte de ambos condutores, do condutor do autocarro, D, e da condutora do automóvel, E, na proporção de 60% e 40% respectivamente, impugnando assim a decisão recorrida na parte em que o Tribunal a quo decidiu que houve culpa exclusiva desta na produção do acidente em causa.
20ª
Para fundamentar a sua tese, os recorrentes não hesitam em lançar mão a matérias que, em bom rigor, foram consideradas como não provadas ou que nem sequer foram alegadas, ao arrepio do princípio da lei processual civil que cinge a discussão jurídica e a aplicação da lei apenas à matéria de facto considerada assente, presumindo ainda os mesmos recorrentes, de forma deficiente, que a não prova de um determinado facto constitui a prova do facto contrário.
21ª
Face ao quadro fáctico dado corno assente pelo Tribunal recorrido, é inquestionável que deve ser imputada exclusivamente à vítima, E, face à sua conduta imprudente e imprevidente, a culpa exclusiva do acidente de viação ora em discussão e, consequentemente, toda a responsabilidade pelos danos emergentes do mesmo sinistro, sendo de realçar que aquela vítima violou de forma grosseira o sinal e a linha de cedência de prioridade existentes na via em que transitava.
22ª
Cedência de passagem que consiste no dever de o condutor reduzir a velocidade ou parar, por forma a que outro não tenha necessidade de modificar a sua velocidade ou direcção (artigo 25º do CE).
23ª
O processo causal do acidente iniciou-se com o não respeito por parte da vítima do sinal de perigo (estrada de prioridade) colocado na Rua de Bragança bem como da linha de cedência de prioridade complementada pela inscrição de um triângulo (marca M9a) pintados naquela artéria antes do cruzamento em causa.
24ª
Por força do artigo 9º do CE e do artigo 9º, n.º 6, al. b), do Regulamento do Código da Estrada, a vítima teria necessariamente que parar naquele local, cedendo a passagem ao autocarro com a matrícula MD-32-97, na medida em que este circulava numa estrada com prioridade, como os recorrentes, aliás, acabam por reconhecer expressamente nas suas alegações de recurso.
25ª
A conduta da vítima foi assim totalmente imprevisível uma vez que esta, de forma súbita e inesperada, avançou para a frente, sem ter respeitado o sinal de perigo, que lhe impunha especial atenção e prudência nos termos do artigo 4º, n.ºs 1 e 2, al. f1), do Regulamento do Código da Estrada (RCE), e, bem assim, a linha de cedência de prioridade, infringindo aquela condutora as mais elementares regras de segurança estradal, designadamente os artigos 14º, n.º 1, do CE e ainda os artigos 4º, n.ºs 1 e 2, alínea f1), e 9º, n.ºs 1, 2, e 6, alínea b), do RCE.
26ª
Por seu lado, o condutor do autocarro tentou evitar o acidente, travando o veículo que conduzia logo que vislumbrou o carro da vítima surgindo de forma súbita e inesperada, aferindo-se os reflexos daquele condutor como os de um homo medius, dotado de um razoável e normal tempo de reacção; o que aquele condutor não podia contar era com a negligência e inconsideração da vítima que não obedeceu ao sinal e à linha de cedência de prioridade que lhe eram impostos, em total desrespeito daquelas normas estradais.
27ª
Pelo que também nessa parte deve o recurso a que ora se responde naufragar, confirmando-se a decisão recorrida na parte em que se concluiu pela culpa exclusiva da vítima na produção do acidente ora em apreço, na forma de mera culpa ou negligência.
28ª
Quanto à responsabilidade pelo risco aflorada pelos recorrentes nas suas alegações de recurso, cumpre dizer que não é legalmente permitida a aplicação da presunção legal fixada no artigo 496º, n.º 3, 1ª parte, do CC, já que a presunção de culpa preconizada nessa disposição legal cede perante a culpa efectiva da vítima traduzida na prática, por parte desta, de contravenção causal por violação das referidas normas estradais.
29ª
Consagra efectivamente o artigo 498º do CC que a responsabilidade pelo risco é excluída quando o acidente for imputável ao próprio lesado, não sendo assim admissível a concorrência do risco de veículo com a culpa daquele; havendo culpa da vítima na produção do acidente em análise, para mais a título exclusivo, a responsabilidade pelo risco não funciona mercê do preceituado no artigo 498º do CC.
30ª
Cumpre salientar que a obrigação de reparar um dano supõe a existência de um nexo causal entre o facto e o prejuízo; o facto, lícito ou ilícito, causador da obrigação de indemnizar deve ser a causa do dano, tomada esta expressão agora no sentido preciso de dano real e não de mero dano de cálculo (artigo 557º do CCM) - doutrina da causalidade adequada.
31ª
Voltando ao caso em apreço, conclui-se que a causa juridicamente relevante, a causa em abstracto adequada ou apropriada à produção do infausto evento, foi o desrespeito da vítima do sinal e da linha de cedência de prioridade que se lhe deparou à entrada do cruzamento formado pela Rua de Bragança e a Avenida de Kwong Tung, cedência de prioridade forçada que impunha à vítima que cedesse a passagem ao autocarro.
32ª
Concluí-se assim que a responsabilidade, por culpa, pela eclosão do acidente - e suas consequências - é inteiramente da vítima, não recaindo sobre a ré qualquer obrigação de indemnização.
33a
Por mera cautela de patrocínio sempre se dirá que uma indemnização pela supressão do direito à vida na ordem dos valores de MOP$400.00,00 (quatrocentas mil patacas) ou de MOP$500.00,00 (quinhentas mil patacas) se mostraria perfeitamente adequada e equitativa, na hipótese (não confirmada) do acidente não ter ocorrido por culpa exclusiva da vítima.
34a
Em face da resposta ao quesito 40º, o pedido indemnizatório formulado no artigo 71º do petitório, no valor de MOP$100.000,00 (cem mil patacas), não poderia deixar de decair.
35a
Embora não se questionando que os recorrentes tenham sofrido com a morte de Pun Min Chi (cfr. respostas aos quesitos 19º e 20º), o pedido formulado no artigo 74º do petitório, a título de “pretium doloris”, revela-se exagerado e excessivo, não estando minimamente em consonia com anteriores decisões proferidas pelos tribunais de Macau no tocante a essa matéria.
36ª
Relativamente ao pedido de indemnização por perda de alimentos, urge dizer que parte da contribuição da vítima para as despesas familiares seria consumida por ela própria e outra parte, numa proporção que se desconhece, seria consumida para outros fins que não para os alimentos dos seus filhos.
37ª
Acresce que não assiste ao 1º recorrente o direito de pedir qualquer indemnização por lucros cessantes uma vez que, à data do acidente, não tinha qualquer direito de exigir alimentos à vítima nem, tão pouco, prestava esta alimentos a seu favor no cumprimento de uma obrigação natural.
38ª
Dir-se-á ainda que os ora recorrentes na sua petição inicial procederam ao cálculo da indemnização com base na contribuição mensal que a vítima supostamente prestava para os encargos familiares sem apresentar qualquer elemento que, de alguma forma, estabelecesse essa previsibilidade, com bastante segurança, olvidando ainda a composição do agregado familiar da vítima e não tomando em conta que o destino efectivo desse mesmo contributo seria repartido por quatro pessoas (a vítima, o 1º recorrente e os seus dois filhos), sendo que, relativamente aos dois primeiros, a parte desse contributo não pode ser tido em conta para efeitos de apuramento da indemnização peticionada.
39a
E, pior ainda, esse cálculo assentou num prazo de 27 anos, dando os autores como previsível o imprevisível.
40a
Os recorrentes reclamam assim danos futuros por um período de vinte e sete anos à razão de MOP$168.000,00 por ano, ignorando os critérios de verosimilhança, de probabilidade e de equidade que deveriam ter condicionado a sua pretensão, danos esses que, em hipótese alguma, poderiam revelar-se minimamente previsíveis, pedido que colide frontalmente com o estipulado nos artigos 488º, n.º 3, e 558º, n.º 2, do CCM.
41a
Haveria ainda que proceder a um desconto, nunca inferior a um quarto, por forma a evitar uma situação de enriquecimento injustificado à custa alheia.
42a
Por último, não tendo ficado provado que os danos verificados no veículo automóvel da vítima representassem uma perda de MOP$100.000,00 (cfr. resposta ao quesito 17º), decairia sempre o pedido formulado pelos ora recorrentes nessa parte.
Termos em que, face ao acima exposto, deve o presente recurso ser rejeitado na medida em que os recorrentes não indicaram as passagens da gravação em que se funda o seu pedido de impugnação da decisão de facto (artigo 599º, n.ºs 1, al. b), e 2, do CPC).
Caso assim não seja entendido, deve o mesmo recurso ser julgado totalmente improcedente, mantendo-se assim a decisão recorrida que absolveu a ora recorrida do pedido, com custas, selos e procuradoria condigna a cargo dos ora recorrentes, fazendo assim v. Exas. a habitual JUSTIÇA.
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Cumpre decidir.
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II- Os factos
A sentença deu por provados os seguintes factos:
- No dia 13 de Fevereiro de 2002, cerca das 7H46m, ocorreu um acidente de viação no cruzamento formado pela Rua de Bragança e a Avenida de Kwong Tung, na Ilha da Taipa, em que foram intervenientes E, enquanto condutora do veículo automóvel ligeiro com a matrícula MH-XX-XX, e D, enquanto condutor do veículo pesado de transporte de passageiros (autocarro) com a matrícula MD-XX-XX (alínea A) da Especificação).
- Na altura do acidente, E seguia pela Rua de Bragança, na Ilha da Taipa (alínea B) da Especificação).
- D seguia pela via de trânsito do lado direito da Avenida de Kwong Tung, proveniente da Rotunda Dr. Carlos d’Assumpção, em direcção ao Jockey Club de Macau (Taipa) - sentido da Estrada Governador Albano de Oliveira (alínea C) da Especificação).
- Na Avenida de Kwong Tung há duas faixas de rodagem, cada qual com um sentido de trânsito (alínea D) da Especificação).
- A faixa de rodagem onde ocorreu o acidente (sentido Rotunda Dr. Carlos d’Assumpção - Jockey Club de Macau) comporta duas vias de trânsito, respectivamente, com 3.70 metros (1ª via adjacente ao passeio, do lado esquerdo, tomando em consideração o sentido de marcha do referido autocarro) e 3.50 metros (2ª via, do lado direito) (alínea E) da Especificação).
- Na altura do acidente, o estado do tempo era bom, o pavimento estava em condições e seco e a densidade de tráfego era fraca (alínea F) da Especificação).
- Após o acidente, E foi transportada com vida para o Centro Hospitalar Conde de São Januário, vindo então a falecer, pelas 14H30m, do dia 13/02/2002 (alínea G) da Especificação).
- D conduzia na qualidade de motorista da Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L. (alínea H) da Especificação).
- A Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L. é proprietária do veículo pesado de transporte de passageiros (autocarro) com a matrícula MD-XX-XX (alínea I) da Especificação).
- A Sociedade de Transportes XX de Macau, S.A.R.L. transferiu a responsabilidade civil por danos causados a terceiros para a Ré, Companhia de Seguros XXX, S.A.R.L., por contrato titulado pela apólice nº XXX/MFT/2001/000132 (alínea J) da Especificação).
- À data do acidente, E era casada com o 1º Autor, A (alínea K) da Especificação).
- Do casamento nasceram dois filhos, o 2º Autor, B e a 3ª Autora C, respectivamente em 20 de Julho de 1995 e 8 de Setembro de 1996 (alínea L) da Especificação).
- À data do acidente, E tinha 38 anos de idade (alínea M) da Especificação).
- Por despacho do Magistrado do Ministério Público, constante de fls. 110 e 110v, o inquérito instaurado por virtude do acidente referido em A) foi arquivado com fundamento no artigo 259º, nº 1, do Código de Processo Penal (alínea N) da Especificação).
- E conduzia com destino a Macau para iniciar mais um dia de trabalho (resposta ao quesito 1º).
- No Centro Hospitalar Conde de São Januário onde era enfermeira (resposta ao quesito 2º).
- Cujo turno iniciava às 8H00 (resposta ao quesito 2º-A).
- D embateu no veículo automóvel conduzido por E, com a parte dianteira do autocarro na zona central do lado direito do veículo automóvel (resposta ao quesito 3º-A).
- O veículo automóvel foi projectado em direcção oposta ao que deveria seguir (resposta ao quesito 5º).
- Ficou com a sua parte central destruída do automóvel (resposta ao quesito 6º).
- O autocarro imobilizou-se a uma certa distância (resposta aos quesitos7º e 39-A).
- Deixando uma marca de travagem da 2.4 metros (cfr. fls. 23) (resposta ao quesito 8º).
- A Avenida de Kwong Tung é desde a Rotunda Dr. Carlos Assumpção até ao local do acidente, praticamente uma recta e com um grande campo de visibilidade (resposta ao quesito 9º).
- A Avenida situa-se numa zona habitacional e tem várias passadeiras para peões (resposta ao quesito 10º),
- Na sequência do embate, E sofreu as seguintes lesões (resposta ao quesito 11º):
a) Fractura do maxilar direito, da 1ª vértebra cervical, da clavícula do lado direito e de várias costelas;
b) Hemorragia cerebral por lacerações da fase mediana do cérebro, laceração (5 cm) na fase direita da artéria cava inferior, hemorragia e laceração do tórax;
c) Laceração do fígado (5 a 6 cm), do baço, dos rins, pâncreas e bexiga (edema hemorrágico).
- E era pessoa saudável (resposta ao quesito 12º).
- Auferia a remuneração mensal de, aproximadamente, MOP$18,000.00, complementada por subsídio de férias e 13º mês (cfr. fls, 36 a 41) (resposta ao quesito 13º).
- Contribuía para as despesas familiares com cerca de MOP$12,000.00 por mês (resposta ao quesito 14º).
- O 1º Autor, como contabilista, auferia MOP$7,000.00 por mês (cfr. fls. 42) (resposta ao quesito 15º).
- O custo do funeral de E incluindo o de aquisição da sepultura foi de MOP$69,375.00 (cfr. fls. 43 a 45) (resposta ao quesito 16º).
- Pela morte de E, o 1º Autor sofreu angústia e dor, havendo perdido a vontade de viver, tombando em crise de solidão e pânico, este último provocado pela incapacidade económica de assegurar aos filhos futuro equilibrado e confortável (resposta ao quesito 19º).
- O 2º e 3ª Autores não cessavam de clamar pela presença da mãe, apesar de terem percebido a sua morte (resposta ao quesito 20º).
- Quando o autocarro se aproximou do cruzamento formado pela Avenida de Kwong Tung e pela Rua de Bragança, surgiu o veículo automóvel, proveniente daquela rua (resposta ao quesito 27º).
- De forma súbita e inesperada (resposta ao quesito 28º).
- D, logo que vislumbrou o veículo automóvel, accionou o sistema de travagem por forma a evitar o embate (resposta ao quesito 29º-A).
- Imediatamente antes do cruzamento formado pela Rua de Bragança e pela Avenida de Kwong Tung havia um sinal de perigo (estrada com prioridade) colocado na Rua de Bragança e uma linha de cedência de prioridade (marca M9a) complementada pela inscrição de um triângulo pintadas na Rua de Bragança (resposta ao quesito 31º).
- Invadiu a faixa de rodagem da Avenida de Kwong Tung onde D circulava com o autocarro (resposta ao quesito 37º).
- Acabando por ser embatido pela parte dianteira do autocarro (resposta ao quesito 38º).
- O veículo automóvel foi projectado para a frente tomando em consideração o sentido de marcha do autocarro (resposta ao quesito 39º).
- O embate deu-se dentro da Avenida Kwong Tung, no cruzamento, a cerca de 4.1 metros da Rua de Bragança (resposta ao quesito 39º-B).
- Logo após o acidente e até à morte, E entrou em estado de coma (resposta ao quesito 40º).
- Provado conforme o que consta do documento nº 10 de fls. 36 a 41 (resposta ao quesito 41º).
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III- O Direito
Vem o presente recurso interposto da sentença da 1ª instância que absolveu a Ré do pedido, por considerar improcedente a acção. E para assim concluir, o M.mo Juiz considerou que a vítima fora única culpada na produção do acidente. Para tanto fez uso do disposto no art. 14º, n.1 e 25º do Código da Estrada, 4º, n. 1 e 2, al. f)1 e 9º do Regulamento do Código da Estrada.
Disse a propósito: A culpa foi exclusivamente da vítima por não ter parado no local onde a Rua de Bragança (via em que circulava) cruzava com a Avenida Kwong Tung e, portanto, por não ter respeitado o sinal e a linha de cedência da prioridade existentes naquela.
No presente recurso, os recorrentes começam por se insurgir contra a matéria de facto dada por provada no que respeita aos artigos 4º, 6º, 17º, 28º, 37º da Base Instrutória, com a alegação de que o tribunal não valorou devidamente os depoimentos das diversas testemunhas.
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Comecemos pelo 4º. Perguntava-se se o condutor do veículo pesado circulava a uma velocidade não inferior a 80 km por hora. O tribunal deu esse quesito como não provado.
Ouvidas algumas testemunhas, por elas foi dito que a velocidade se aproximaria desse limite, sim. Todavia, foram depoimentos baseados na regra da experiência de cada uma delas, não por serem testemunhas presenciais. O valor deles é, portanto, reduzido, a não ser que outros elementos concorram a corroborar essa tese.
Na opinião dos recorrentes, a testemunha F (polícia) demonstrou que o autocarro circulava a uma velocidade superior a 60Km/h e que essa viatura embateu a uma velocidade muito alta no automóvel da vítima. Outra testemunha G teria dito que a velocidade a que circulava o autocarro foi bastante alta, pelo menos a 70km/h. Ora, estas declarações foram sopesadas e confrontadas com outras, por exemplo, com as do próprio condutor do autocarro – que referiu que tinha acabado abrandar junto de uma paragem e que no cruzamento não circulava a mais de 40 Km/h. O tribunal ouviu as pessoas e não parece não ter feito um mau juízo sobre esta facticidade. É claro que a resposta podia ter sido, mas não foi, restritiva, isto é, não fixou a velocidade em nível inferior ao perguntado. Todavia, se o não fez, sob pena discricionariedade que lhe não cabia produzir, foi por não dispor de elementos seguros sobre a velocidade a que circulava o veículo pesado. E reavaliada (o que fizemos) a prova testemunhal neste TSI, não vemos motivos para divergir do resultado probatório a que a 1ª instância chegou.
O quesito 6º pretendia levar o tribunal a apurar se a velocidade do autocarro era grande ao ponto de, com o embate, ter destruído por completo a parte central do veículo ligeiro, inutilizando-o e tornando impossível a sua recuperação. A resposta foi simplesmente esta: “Provado que ficou com a sua parte central destruída do automóvel”.
Esta matéria, aliada ao facto provado em resultado do quesito 5º (provado que o veículo automóvel foi projectado em direcção oposta ao que deveria seguir), podia denotar que a sua velocidade não podia ser muito pequena. E tanto é assim que, à pergunta do quesito 21º sobre se D conduzia a uma velocidade não superior a 40km/h, a verdade é que a resposta foi “Não provado”. Portanto, o próprio tribunal não acreditou nessa versão, sendo levado a pensar que a velocidade do autocarro foi mais de 40 km/h e menos de 80km/h, não só pelo pelos danos na viatura ligeira como pela extensão das lesões corporais na vítima, que acabariam por lhe provocar a morte.
Mas a verdade é que para avaliar a velocidade do veículo pesado, à falta de testemunhas presenciais (à excepção do próprio condutor do veículo pesado) também importaria que os quesitos 7º (pretendia-se saber se ele, após o embate, se imobilizou a muitos metros do local) e 39º-A (se essa imobilização foi de cerca de 5,3 metros do embate) merecessem resposta afirmativa. Contudo, uma só foi a resposta agrupada: a de que o autocarro se imobilizou a uma certa distância. Que distância? Não se sabe. A ideia, portanto, desta resposta é a de que a distância ficou indefinida, por demonstrar. E com isso, também se perdeu mais um elemento indiciário acerca da velocidade do autocarro. Ouvidas as passagens da gravação também este TSI fica com dúvidas irresolúveis, as quais não permitem obter a conclusão por que se batem os recorrentes, com o devido respeito.
Quanto à matéria do quesito 17º, ela não é muito importante, nem reveladora do objectivo da sua invocação neste recurso. Talvez por isso os recorrentes não se tivessem dado ao cuidado de o mencionarem desenvolvidamente nas conclusões das suas alegações. De qualquer modo, o tribunal não deu apenas por provado que o veículo ligeiro ficou danificado na sua parte central. O que deu como provado é que a sua parte central ficou destruída (resposta ao art. 6º). Quanto ao valor dos danos (perguntava-se no ponto 17º se os danos verificados no automóvel representam uma perda de 100.000,oo patacas), a resposta de não provado nada tem de ilógico, até mesmo considerando que uma testemunha (H) tenha referido que o valor do carro fosse de 100.000,00 patacas. É que o valor do carro não equivale necessariamente ao valor dos danos, a não ser que o carro ficasse completamente destruído e nenhum valor, nem residual, mais tivesse. Mas isso não estava perguntado, nem, por isso, foi provado.
Sobre o ponto 28º da base instrutória (perguntava-se se o veículo ligeiro da vítima surgiu na Avenida Kwong Tung, vindo da Rua de Bragança, de forma súbita e inesperada), os recorrentes fazem uma construção curiosa: o de que estes adjectivos “súbita”e “inesperada”só têm significado para os condutores que conduzem com prudência e cautela, o que não seria o caso do condutor do autocarro. Não concordamos com o pressuposto da crítica. Efectivamente, a quem conduz de forma prudente e cautelosa pode parecer ser imprudente e temerária a forma como alguém lhe surge repentinamente à sua frente vindo de uma rua perpendicular àquela em que siga. Mas, discordamos que o mesmo condutor não possa ter essa mesma ideia se, na mesma rua, conduzir a sua viatura a grande velocidade e de repente o outro veículo lhe surge à sua frente vindo de outra rua perpendicular à sua em que segue. Portanto, o que realmente importa é ver se, mesmo a velocidade inferior, qualquer veículo corta o sentido de marcha de outro, colocando-se à sua frente em zona de embate num momento em que já não o pode evitar. E para tanto, este posicionamento do veículo que corta o sentido de marcha de outro, em termos que não permita evitar o acidente, terá sempre contida a noção de imprevisibilidade, própria dos vocábulos em apreço. Portanto, a forma como o tribunal deu por provado o facto não merece censura, nem alteração, de acordo com os elementos recolhidos a partir do depoimento das testemunhas, que este TSI ouviu a partir da gravação.
Quanto ao ponto 37º da base instrutória (perguntava-se se o veículo ligeiro invadiu a faixa de rodagem da Av. Kwong Tung onde circulava o autocarro), a resposta foi afirmativa.
Ora, os elementos obtidos podem revelar isso mesmo, com efeito. A questão, portanto, está em saber se o ligeiro de passageiros “invadiu” a faixa da Avenida ou se simplesmente entrou nela para a cruzar com toda a normalidade. Invadir aqui tem um sentido de ocupação inopinada e súbita. Mas, como se viu, o tribunal deu por provada a matéria quesitada. Nada a censurar-lhe face aos testemunhos recolhidos em audiência. E sobre este assunto, não vemos qualquer estranheza na resposta. Basta ver que o veículo pesado apenas deixou uma marca de travagem de 2,4 metros. O que sem dúvida aponta para a revelação de que o ligeiro se lhe deparou à sua frente subitamente, sem possibilidade de deter a sua marcha antes do embate.
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Agora, o direito.
Tinha o autocarro prioridade em relação ao veículo ligeiro? Sim, não porque fosse um veículo prioritário (arts. 25º, n.4, al. c), 44º e 45º, do Código da Estrada), mas porque a natureza da via lha conferia. Na verdade, existia na Rua de Bragança um sinal (M9a) que indica o dever de cedência de prioridade de passagem e consequente paragem no local assinalado (ver art. 9º, n.6, al. b), do Regulamento do Código da Estrada). Além disso, ainda ali havia um sinal de perigo que indicava a aproximação de estrada com prioridade.
Perante estes sinais, à condutora do veículo ligeiro cumpria revelar atenção, parar e só depois, ante a inexistência de perigo, avançar. No caso de avistar a aproximação do veículo na Avenida Kwong Tung, porque estrada com prioridade, deveria redobrar os seus cuidados e esperar que o veículo passasse e só depois avançar. Claro que numa via com prioridade, como era aquela – mais larga e com maior intensidade de tráfego – não podia a condutora do veículo ligeiro ficar indefinidamente à espera que mais nenhum veículo circulasse naquela artéria para só então poder entrar nela. Mas, do que não há dúvida é que deveria nesse caso adequar o seu comportamento estradal à situação da via e ao trânsito do momento. Se o autocarro estivesse longe do local, isto é, se a distância entre o local do avistamento e o local preciso da movimentação do autocarro fosse de tal ordem que lhe permitisse entrar na avenida, então deveria fazê-lo, embora com as devidas precauções e cuidado. Se, diferentemente, o autocarro estivesse já perto do local do entroncamento ou da intersecção, então deveria limitar-se a esperar que o veículo pesado passasse. Contudo, uma ou outra destas situações deveria ter sido alegada e demonstrada para daí se inferir a culpa. Mas, os factos levados à base instrutória não ilustram nenhum destes acontecimentos possíveis.
De resto, ainda seria preciso operar com outros elementos. Com efeito, podia acontecer que o veículo com prioridade estivesse ainda longe do local, mas circulando a uma velocidade elevada. O condutor do veículo ligeiro sem prioridade, a tal distância, podia não ter a consciência da velocidade daquele outro veículo e ter progredido sobre a via que pretendia cruzar, sendo nesse momento abalroado pelo outro. Parece-nos que, neste caso, o acidente não se deveria à imprudência do condutor do veículo sem prioridade, ou pelo menos, não se deveria exclusivamente a si, na medida em que a velocidade daquele outro podia ter sido concausal do acidente.
Na verdade, a prioridade não é um valor absoluto1. O veículo que circula em estrada com prioridade não pode deixar de respeitar as restantes regras que a todos os utentes da via o Código impõe, nomeadamente a que limita a sua velocidade ou as que lhe demandam cautela e diligência próprias da condução.
Mas também podia acontecer que o pesado viesse a velocidade inadequada mas já muito perto da intersecção. Neste caso, a imprudência da condutora do ligeiro ainda era muito maior, como facilmente se calcula.
Ora, nada se sabe a que distância a condutora do ligeiro avistou o autocarro (nem sequer esta matéria foi alegada) no momento em que ela entrou na Avenida para a intersectar. Mas, sabe-se, sim, é que o ligeiro surgiu inopinadamente à frente do pesado, não permitindo a este uma travagem maior do que 2,4 metros. Tudo leva a crer que a intersecção incompleta da Avenida foi feita pela condutora do ligeiro quando o pesado estava já muito próximo do local.
Portanto, mesmo supondo que o autocarro não pudesse circular a menos de 50 Km/h, isso mais reforça o especial dever de cuidado que a condutora do ligeiro deveria ter tido. Ou seja, perante a eventual velocidade transgressora do pesado e ante a sua aproximação ao local da intersecção das vias, o dever da condutora era parar e não tentar prosseguir, pois não tendo prioridade, sobre si recaia o respeito essencial pela regra que lhe comina o dever imperativo de cedência de passagem e um ainda maior dever de responsabilidade, sensatez e de prudência, tal como o determina o art. 14º, n.1, do Código da Estrada de então. A velocidade maior do pesado não podia nesse cenário hipotético ser causal do acidente. Podia aumentar, quando muito, a gravidade dos danos e das consequências, mas não seria causa, nem concausa, do acidente.
Portanto, no caso em apreço, o quadro de facto aponta, não para a concorrência de culpas, mas para a culpa exclusiva da infeliz vítima, atendendo à forma como o acidente está descrito na matéria de facto. Na verdade, havia na Rua de Bragança um sinal de perigo que avisava da intersecção de estrada com prioridade e, além disso, uma linha de cedência de prioridade (M9a) complementada pela inscrição de um triângulo pintado no piso da rua onde seguia a condutora do veículo ligeiro avisando da aproximação de estrada com prioridade e dever de cedência de passagem. Provado está, ainda, que esse veículo invadiu a faixa de rodagem da Avenida Kwong Tung onde circulava o veículo pesado de passageiros e foi dentro já desta avenida, a 4,1 metros da rua de Bragança, que o acidente se deu.
Por outro lado, a matéria de facto que podia envolver a culpa do pesado ficou por demonstrar. Tinha ela que ver com a velocidade a que este circularia (ponto 4 da base instrutória) e o facto de a condutora do veículo ligeiro ter posicionado o seu automóvel próximo do eixo central da Avenida quando pretendia voltar em direcção a Macau (ponto 3 da B.I.), altura em que foi embatido pelo pesado (ponto 3-A da B.I.). Ora sobre a velocidade, nada se provou. Ao contrário, o que está demonstrado é que o veículo ligeiro surgiu na avenida vindo da outra rua (resposta ao ponto 27 da BI), de forma súbita e inesperada (resposta ao ponto 28 da B.I.)2.
Tudo quanto os ora recorrentes invocam são meras conjecturas sobre a forma como o acidente podia ter ocorrido, mas não são a tradução exacta da forma como o acidente ocorreu, face à falta de testemunhas presenciais (senão o condutor do veículo pesado de passageiros).
Quer dizer, não foi possível aos autores demonstrar a culpa, nem exclusiva, nem concorrencial, do condutor do veículo pesado (art. 480º do Código Civil), estando, por outro lado, afastada a responsabilidade pelo risco (art. 498º, n1 do Código Civil3), na medida em que o acidente, tal como provados os factos, foi exclusivamente imputável à infeliz vítima, condutora do veículo ligeiro, cujo decesso lamentamos, por violação do disposto nos arts. 14º, n.1, do Código da Estrada e 4º, n.s 1 e 2, al. f) e 9º, n.1, 2 e 6, alínea b), do Regulamento do Código da Estrada.
Nesta conformidade, a sentença impugnada não merece censura.
***
IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas pelos recorrentes.
TSI, 14/04/2011
José Cândido de Pinho
Choi Mou Pan
Lai Kin Hong (vencido nos termos da declaração de voto que se junta)
Processo nº 561/2007
Declaração de voto de vencido
Vencido nos termos seguintes:
O Acórdão antecedente decidiu atribuir a culpa exclusiva à condutora vítima do acidente.
O que salvo o devido respeito não posso acompanhar.
Ora, foi quesitado sob o número quatro no saneador o facto “D (condutor do autocarro) vinha a uma velocidade de pelo menos 80 km/hora?” que veio a ser dado não provado pelo tribunal de primeira instância.
Todavia, atendendo às fotografias, constantes das fls. 24 a 32 dos autos e examinadas pelo tribunal a quo para a formação da convicção, que são bem demonstrativas do estado da danificação dos ambos os veículos e do posicionamento dos mesmos logo após o acidente, entendo existir erro evidente na apreciação da prova no julgamento de facto de primeira instância, ao simplesmente dar como não provado o quesito nº 4, pois, de acordo com a lei da física e a experiência da vida, das imagens documentadas nas fotografias podemos tirar perfeitamente ilações para afirmar que o autocarro, no momento imediatamente anterior à colisão, se circulava a uma velocidade nunca inferior a 50 km por hora.
Assim, a resposta ao quesito nº 4 deveria ser, embora redutiva, “provado apenas que D (condutor do autocarro) vinha a uma velocidade não inferior a 50 km/hora”.
Há que portanto proceder-se à modificação da matéria de facto em causa, ao abrigo do disposto no artº 629º/1-a) e 2 do CPC, passando a considerar provado o facto “D (condutor do autocarro) vinha a uma velocidade não inferior a 50 km/hora”.
Assim, atendendo à velocidade máxima, que é 50km/hora, imposta pelo então vigente Código de Estrada, aos condutores de veículos pesados e ao dever, imposto aos condutores em geral, de moderar a velocidade ao aproximar-se das intersecções (artº 23º/-a) do antigo CE), não posso deixar de considerar que se trata de um caso de concorrência de culpa na produção do acidente, por ter o condutor do autocarro infringido normas estradais por forma a contribuir para a ocorrência dos factos.
Eis as razões que me levaram a votar vencido.
RAEM, 14ABR2011
O 1º juiz adjunto,
Lai Kin Hong
1 Neste sentido, o Ac. do TSI de 8/05/2008, Proc. n. 709/2007.
2 Sobre a actuação inopinada e repentina de um dos intervenientes num acidente de viação, ver Ac. deste TSI, de 12/11/2009, Proc. n. 317/2009.
3 O risco só pode ser accionado na falta de matéria de facto reveladora da culpa. Neste sentido, o Ac. do TSI de 22/05/2008, Proc. n. 507/2006.
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