Processo n. 602/2008
Recurso Jurisdicional
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 14 de Abril de 2011
Descritores: Direito de preferência
Arrendamento para exercício de profissão liberal
Sucessão de leis no tempo: Lei aplicável
SUMÁRIO:
I- Ainda que um contrato de arrendamento seja nulo ao abrigo do Decreto n. 43525, de 7/03/61, em virtude de inobservância de forma legal, ele seria convalidado, dentro de certos condicionalismos, segundo a Lei n. 12/95/M, de 14/08.
II- Tendo um contrato de arrendamento para o exercício de profissão liberal sido celebrado sob o império do Decreto n. 43525, a venda do arrendado só conferirá direito de preferência ao arrendatário se o diploma legal vigente ao tempo da alienação o previr.
Recurso Jurisdicional n. 602/2008
Acordam na 2ª Instância da RAEM
I- Relatório
A instaurou contra B e C, todos com os demais sinais dos autos, acção declarativa com processo ordinário pedindo se reconheça o seu direito de preferência sobre a venda de uma fracção imobiliária que a 1ª ré vendeu à 2ª, o direito de a haver para si, se declare a sua transmissão e o cancelamento do registo que a segunda ré (compradora) efectuou.
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Foi, na oportunidade, proferida sentença de improcedência da acção, de que vem agora interposto recurso jurisdicional, em cujas alegações a recorrente apresentou as seguintes conclusões:
“A) Aos factos aplicam-se as Leis, mas apenas aquelas que com esses mesmo factos se achem em contacto - arts. 5º, 7º, 8º e 12º do Código Civil de 1966 e arts. 4º, 6º, 7º, 8º e 11º do Código Civil de 1999.
B) A Lei nº 12/95/M, no seu art. 3º, prevê a sua própria aplicação aos arrendamentos de pretérito e, no seu art. 5º, veio considerar o arrendamento objecto dos autos válido e sem qualquer vício de forma, pois cumpriu os requisitos de forma do seu art. 21º.
C) O art. 1º, que prevê o âmbito de aplicação da Lei nº 12/95/M, estabelece que, onde não haja qualquer oposição, se aplica o regime geral da locação, pelo que, no modesto entendimento do recorrente, os arts. 1117º e 1119º do Código Civil de 1966, que prevêem o direito legal de preferência dos arrendatários que no locado exerçam profissão liberal, lhe é aplicável porque adquiriu esse direito.
D) Mesmo que se não considerasse a aplicação do Regime Geral do Código Civil de 1966 e, destoutra, se considerasse a aplicação do Decreto nº 43525, porque a Lei nº 12/95/M sanou qualquer vício de forma que o contrato contivesse, sempre se aplicaria o art. 84º daquele Decreto, sendo certo que, também nesta perspectiva, o recorrente adquiriu o direito de preferência legal sobre a aquisição do locado.
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Também a recorrida alegou, formulando as seguintes conclusões:
“i. Não se verifica os vícios imputados a sentença, nos termos do artigo 571º do CPC.
ii) Os factos considerados provados em sede de audiência e discussão de julgamento, não tinham, como não têm, relevância jurídica para a decisão em causa.
iii) Não se percebe a razão por que o Recorrente impugna a sentença recorrida, fundamentando a sua pretensão com base nas alíneas c) e d) do artigo 571º do Código de Processo Civil.
iv) É de todo perceptível quer a fundamentação apresentada, quer a decisão tomada, pelo que se estranha o vício que é apontado a sentença recorrida.
v) É o próprio Recorrente que diz e admite na sua peça processual que foi preterida a forma legal exigível para a celebração do contrato de arrendamento daquela natureza, embora, venha posteriormente argumentar o vício de forma viria a ser sanada com a entrada em vigor da Lei nº 12/95/M.
vi) O Recorrente percebeu mal a vontade do legislador ao querer estender os efeitos da nova lei aos contratos já existentes.
vii) A sentença recorrida não padece de nenhum vício e, muito menos, do vício que lhe é I apontado, pelo que não merece censura.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
Em 31 de Dezembro de 2004, a lª ré, através da escritura pública, vendeu à 2a ré a fracção autónoma localizada na Rua do Dr. XXX n.º 9, 2.º andar.
O autor não foi avisado do supradito plano da venda do referido apartamento pela lª ré.
Em 15 de Maio de 1986, a lª ré e o autor celebraram um contrato, segundo o qual o primeiro concedeu ao segundo, a título provisório, o gozo do apartamento localizado na Rua do Dr. XXX n.º 9, 2.º andar, por renda mensal de HKD2.000,00.
A partir de 15 de Maio de 1986, o autor aproveitou o apartamento para exercer profissão liberal.
Em 14 de Maio de 1988, nenhuma das partes informou à outra de não querer renovar ou manter o contrato.
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III- O Direito
A questão a decidir neste recurso é a seguinte: Tem o recorrente, autor na acção, direito de preferência na venda de uma fracção imobiliária de que era arrendatário para o exercício de profissão liberal?
A sentença impugnada entendeu que não, no que é acompanhada pela 2ª ré (adquirente da fracção); o recorrente, entende que sim.
Vejamos. Os diplomas que atravessam o tempo da celebração e duração do contrato são: Decreto n. 43525, de 7/03/1961, o Código Civil de 1966, a Lei n. 12/95/M, de 14/08/1995 (que aprovou o novo regime do arrendamento urbano) e o Código Civil de Macau de 1999.
Consideremos, antes de mais nada, que o recorrente tomou de arrendamento em 15/05/1986 uma determinada fracção imobiliária. Não foi um contrato escrito e, tanto quanto se sabe da matéria recolhida nos autos, nada teria sido estipulado sobre o destino do arrendado. Todavia, sabe-se que desde essa mesma data o inquilino vem usando o apartamento para ali exercer profissão liberal.
Consideremos, também, que a 1ª ré (proprietária do imóvel) vendeu à 2ª, a referida fracção em 31/12/2004 através de escritura pública, sem que da intenção da venda tivesse sido dado conhecimento ao arrendatário.
Perguntamos: tinha que ser dado conhecimento ao recorrente da intenção da venda? Tinha este direito de preferência na compra da fracção?
Apreciemos, então. O contrato foi celebrado em Maio de 1986, numa altura em que vigoravam o Código Civil de 1966 e o Decreto n. 43525, de 7/03/1961.
Se tomarmos como ponto de partida unicamente este último diploma, encontraríamos no art. 84º um princípio de resposta a algumas das dúvidas que se colocam neste processo, porque, diz o número 1, “Na venda…do prédio…os arrendatários que ali exerçam o comércio ou indústria há mais de um ano têm direito de preferência, graduado no último lugar, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas”. Comércio e indústria, diz o preceito. Porém, como o artigo 86º manda aplicar aos arrendamentos para o exercício de profissão liberal os artigos 80º, 82º e 84º, fica claro que a preferência estabelecida no artigo 84º transcrito se aplica também a esta situação. Ou seja, este arrendatário teria preferência na venda (não coloquemos, por irrelevante, a questão do lugar da preferência).
Entendemos, porém, que este regime parte do princípio de que o contrato é válido, pois só dessa forma se entende que dele se possam extrair todos os efeitos resultantes da locação.
Todavia, aquele contrato não foi sujeito a escritura pública, conforme o exigiam, já então, os art. 1029º, n.1, al. b), do Código Civil1, e o art. 10º, n.1, al. c), do Decreto citado para os casos em que o arrendamento era para comércio, indústria ou exercício de profissão liberal.
Temos assim, portanto, que, tendo o contrato sido celebrado para o exercício de profissão liberal (pelo menos assim o terão reconhecido as partes contratantes, dado que a 1ª ré assim o aceitou na sua contestação a fls. 38/42), a falta de título formal torná-lo-ia ferido de nulidade, face ao art. 10º citado (bastaria mero escrito particular, se a renda não ultrapassasse uma importância mensal não superior a 4 000$00, nos termos do n.2, do art. 10º, citado e Portaria n. 24080, de 16/05/69).
Portanto, não podia sob o seu império o arrendatário extrair a garantia da preferência que o diploma concede aos contratos válidos.
Ignoremos, então, por ora, o diploma em apreço.
Depois disso, surgiu a Lei n. 12/95/M que aprovou o Regime do Arrendamento Urbano ( RAU), com entrada em vigor marcada para o dia 1 de Janeiro de 1996 (à excepção do disposto no art. 21º, que entraria imediatamente em vigor) e que revogou aquele outro diploma. Trata-se de um articulado com inovações várias, uma das quais tem que ver, precisamente, com o facto de não exigir escritura pública e antes se bastar com mero documento escrito assinado por senhoria e inquilino (art. 21º, n.1).
E no artigo 5º, n.1 deste diploma é dito, inclusive, que “Os arrendamentos urbanos de pretérito não reduzidos à forma legal, que preencham os requisitos de forma da presente lei, consideram-se validamente celebrados”. E o n. 2 do mesmo artigo dispõe: “Os arrendamentos urbanos de pretérito que se tenham mantido não obstante a falta de forma legal, podem ser provados por qualquer modo, quando se demonstre que a falta é imputável ao senhorio ou arrendatário”2 (negrito nosso).
Ora, não se colocando nos autos quaisquer problemas relativos à existência do contrato, porque nenhuma das partes o impugnou e, pelo contrário, o reconhecem reciprocamente para aquele fim, temos que ele, celebrado para exercício de profissão liberal, pese embora a falta de escritura pública, mas porque incluído no âmbito de previsão da Lei 12/95/M (uma vez que se aplica também aos contratos de pretérito), se devia considerar, desde essa altura, validamente celebrado. Este diploma eliminou a nulidade contemplada pela lei anterior, é o que se pode dizer (trata-se de uma convalidação ope legis).
Ora, este tipo de contratos, incluindo aquele que é feito para o exercício de profissão liberal (art. 6º, n.1), passou a ser regulado por esse diploma (ver arts. 105º a 110º) e pelas disposições do regime geral da locação em tudo o que nele não estivesse previsto (art. 1º, n.1). Assim sendo, dada a validação formal que este diploma conferiu ao contrato celebrado ao abrigo do Decreto 43525, podemos tranquilamente dizer que o regime geral da locação passou a aplicar-se-lhe desde então.
Para o efeito, recorramos ao Código Civil de 1966.
O artigo 1117º, n.1 dispõe que “Na venda,…, os arrendatários que nele exerçam comércio ou indústria há mais de um ano têm direito de preferência, sucessivamente e por ordem decrescente das rendas”. E porque o artigo 1119º do Cod. Civil prevê que é aplicável aos arrendamentos para o exercício de profissões liberais o disposto no artigo 1113º a 1127º precedentes, é óbvio que a preferência do artigo 117º também se aplica a este caso. O arrendatário tinha preferência na venda, desde que ela se realizasse durante o período de vigência da Lei 12/95/M.
Neste sentido, não cremos ser de subscrever a afirmação feita na sentença recorrida segundo a qual, a remissão contida no art. 1º do DL 12/95/M para o “regime geral da locação” - em relação a tudo o que não estivesse em oposição com o disposto naquele diploma - não cobriria o disposto no art. 1117º do Código Civil por “não ser norma genérica sobre locação”. Quando a lei fala em “regime geral da locação”quer referir-se, se bem interpretamos a expressão, ao regime global da locação, a todo o regime, ao regime de todas as regras e normas que o Código Civil contém sobre a matéria da locação. Ora, o artigo 1117º, “ex vi”art. 1119º, é um dispositivo legal que, dentro do capítulo da locação (capítulo IV), se destina a estatuir sobre o direito de preferência na venda de prédio arrendado para o exercício de profissão liberal. Regime geral da locação, não tem, pois, o sentido de “disposições gerais da locação” (essas encontram-se nos arts. 1022º a 1030º e aplicam-se a todas as formas de locação).
Portanto, e uma vez que a Lei n. 12/95/M nada estatui sobre o assunto, seria naquela disposição (art. 1117º) que se haveria de buscar a solução para casos destes.
A vida deste contrato atravessou, assim, a vigência de vários textos legais, sendo certo que, segundo o que se acaba de dizer, se poderia ter criado um direito de preferência por parte do arrendatário em caso de venda ao abrigo do penúltimo.
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Sucede que a venda se verificou em 31/12/2004, já em pleno domínio do Código Civil actual. Quid iuris?
O DL n. 39/99/M, de 3/08, que aprovou o novo Código Civil de Macau de 1999, determina a revogação do RAU, com excepção dos arts. 116º a 120º. E no art. 17º, dedicado à locação, estabeleceu que aos contratos celebrados antes da sua entrada em vigor seria aplicável o regime de locação nele estabelecido. E o número 2 preceitua que o disposto no número anterior não prejudica a validade dos contratos, desde que constem de título considerado suficiente à data da sua celebração ou “tenham sido convalidados por disposição legal posterior”(e tal foi o caso, como vimos). Nada mais estabeleceu.
Este Código, no seu corpo de normas, não estabeleceu nenhum direito de preferência ao arrendatário em caso da venda do prédio arrendado. E por isso, ao mandar aplicar aos contratos anteriores o regime estabelecido no novo Código, parece poder inferir-se que a preferência estaria arredada da situação concreta.
Mas, em todo o caso, suponhamos que esta afirmação normativa tinha outro alcance e que apenas se queria referir ao núcleo mais estrito do regime locatício e não também a todo o regime da locação (envolvendo as preferências resultantes da venda do locado). Nessa hipótese, estaríamos confrontados com um regime legal anterior permissivo (na nossa tese) e outro posterior proibitivo.
E as dúvidas afiguram-se-nos, então, legítimas: Constituiu-se – e não se perdeu - o direito de preferência? Ou perdeu-se com o Código de 1999? Ou será que só com este Código se pode equacionar a questão do eventual nascimento do direito?
A questão, como se adivinha, é de sucessão de leis no tempo, sobre a qual, em matéria igual, já este TSI se pronunciou decisivamente em termos que não deixam margem para divergência da nossa parte.
Diz a certa altura o acórdão proferido no processo n. 544/2009, de 26/11/2009: “Constitui-se o direito de preferência com o arrendamento ou com a alienação da coisa? Qualquer que seja, porém a tese dos direitos adquiridos, importa sempre indagar qual o pára-raios legal que, por um lado, o contemple e, por outro o iniba de o mesmo se extinguir. Para o A, que afasta a dilucidação da questão por via da sucessão de leis no tempo, antes se estribando numa construção de direitos adquiridos, estes ter-se-iam por adquiridos com a constituição do arrendamento. E daí parte para a construção de uma tese baseada na natureza real desse direito, oponível a terceiros.
Tivemos ensejo de ensaiar uma solução que não passasse pela determinação da natureza do direito, sendo certo que, a insistir na natureza real e na constituição do direito, desde o momento da constituição da relação arrendatícia, ficaria sem resposta a ausência de inerência em relação à coisa, antes a um direito genericamente tido como correlativo de uma obrigação a que ficaria adstrito o titular do direito real, explicando-se mais por uma via propter rem, do que por uma pretensa oponibilidade erga omnes, ficando o terceiro adquirente sem protecção nas preferências legais, não sujeitas a registo e não identificáveis porque situações de pretérito aparentemente não abrangidas pela previsão normativa, como bem salientou o Mmo Juiz a quo.
(…) Mas mesmo que se entendesse não ficar resolvida a questão com a argumentação derivada a partir do conceito e enquadramento do direito de preferência e sua constituição, cremos, no entanto que sempre por via da sucessão das leis no tempo chegaríamos à mesma conclusão: a de que o A. não beneficia do direito de preferência na alienação do imóvel em 2008.
(…) Temos a referida Lei de 1961 que previa o direito de preferência e a lei posterior que deixou de consagrar esse direito. (…). Será de aplicar ao caso a lei velha ou a lei nova?
(…) Atente-se no facto (…) de não se fazer qualquer ressalva em relação aos direitos de preferência legais anteriores.
(…) O art. 11º do C. Civil dispõe:
“1. A lei só dispõe para o futuro; ainda que lhe seja atribuída eficácia retroactiva, presume-se que ficam ressalvados os efeitos já produzidos pelos factos que a lei se destina a regular. 2. Quando a lei dispõe sobre as condições de validade substancial ou formal de quaisquer factos ou sobre os seus efeitos, entende-se, em caso de dúvida, que só visa os factos novos; mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor.”
A interpretação do presente preceito tem feito correr rios de tinta, mas sempre temos recorrido àquela que decorre, cristalina, das palavras de Inocêncio Galvão Telles:
“O enunciado do artigo 12º( leia-se, entre nós, art. 11º) não é por si suficiente. Quando se deverá dizer que a lei dispõe directamente sobre o conteúdo das relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhe deram origem? Como discriminar as hipóteses em que os efeitos pendentes ou futuros são vistos em ligação com os factos, sua causa, e aquelas outras em que são olhados em si, no seu próprio conteúdo? O artigo 12º não fornece a resposta, não apresenta um critério orientador. Esse critério tem de ser determinado doutrinariamente. Penso que o critério exacto é dado pela distinção atrás formulada entre situações jurídicas instantâneas e situações jurídicas duradouras. São as segundas que se traduzem num exercício continuado ou periódico, as visadas afinal na 2º parte do nº 2 do artigo 12º. Pela sua permanência maior ou menor, elas escapam, quanto ao futuro, à lei antiga, entrando na órbita da lei nova. É a lei nova que define a partir da sua vigência o conteúdo dos poderes do proprietário ou do tutor ou do cabeça de casal, etc.“
Para dizer que
“as situações instantâneas tendem a desaparecer e as duradouras a perdurar, resolvendo-se aquelas em actos periódicos ou permanentes. A execução de umas é momentânea, a das outras é sucessiva ou continuada. Representam por ex. situações instantâneas o direito à restituição do capital mutuado ou o direito à anulação de um acto jurídico; situações duradouras, a posição de funcionário público, a de senhorio ou inquilino, proprietário, a de cônjuge. A lei antiga rege os factos e os efeitos pretéritos, os já executados. Quanto aos outros efeitos, ainda não executados ou nem sequer nascidos, há que ver se integram situações instantâneas ou duradouras. Se integram situações instantâneas, também se lhes aplica a lei antiga [v. g. as obrigações ligadas ao cumprimento do contrato deferido no tempo]. Se integram situações duradouras, respeita-se o seu passado sob a égide da lei antiga, mas para o futuro ficam sob o domínio da lei nova, que pode v.g. mudar os poderes do proprietário ou do cônjuge.”
Radicando o direito de preferência numa relação arrendatícia, não se pode deixar de ter essa situação como duradoura, cujo conteúdo encerra uma série de poderes, acções, abstenções, destinadas a permanecer no tempo e que serão reguladas pelo princípio do tempus regit factum. Embora seja princípio aceite, na doutrina e na jurisprudência, que o reconhecimento judicial do direito de preferência retroage os seus efeitos ao momento da alienação, sendo o adquirente substituído pelo preferente com eficácia ex tunc, já a qualidade de titular do direito de preferência deve ser aferida em relação à data em que o mesmo é exercido, por ser esta a solução que resulta da segunda parte do n.º 2 do art. 11º do CC (“mas, quando dispuser directamente sobre o conteúdo de certas relações jurídicas, abstraindo dos factos que lhes deram origem, entender-se-á que a lei abrange as próprias relações já constituídas, que subsistam à data da sua entrada em vigor”)3
(…) Perante este enquadramento e por tudo quanto acima se expôs parece claro que o direito de preferência concretiza um poder decorrente de uma situação duradoura (o seu esgotamento num dado momento não substantiva o conceito de situação instantânea no enquadramento supra), devendo considerar-se essa faculdade como desligada dos factos que lhes deram origem (os constitutivos da situação arrendatícia, relevando tão somente a existência dessa situação).
(…) Este entendimento, de que o pressuposto legal de existência ou supressão do direito de preferência implica aplicação da lei nova às situações jurídicas anteriores, se o acto sobre que se pretende exercer a prioridade foi praticado no domínio desta, parece evidenciar-se em termos de Jurisprudência comparada.
Pode colher-se ali a ideia de que é aplicável ao direito de preferência, na venda, o regime da lei vigente na data da alienação e não o estabelecido em diploma posterior, embora nesta exista uma disposição que manda aplicar o regime nela prescrito aos contratos existentes à data da sua entrada em vigor.4
Era o caso de situação similar, embora inversa, não decisiva, até porque o direito não estava anteriormente consagrado, em que a lei nova passou a prever o direito de preferência, até aí não previsto, e o beneficiário da prelação pretendeu prevaler-se dessa opção em relação a um acto dispositivo praticado no domínio da lei velha. Serve, no entanto, a referência sobre o âmbito da sucessão de leis em matéria de preferência.
Ainda, noutra situação, se decidiu que o direito de preferência genericamente reconhecido por uma dada lei, - tratava-se da preferência dada ao senhorio, no caso de trespasse de estabelecimento comercial ou industrial - , só se radica na sua esfera jurídica quando aquela situação ocorrer – mais se tendo decidido que a lei posterior, o Código Civil, embora não proibisse a existência e o exercício do aludido direito de preferência, mas ao não se lhe referir, excluiu-o do estatuto legal do arrendamento para comércio e indústria, embora o reconhecesse quando resultante do facto de preferência5.
(…) Este entendimento que vimos delineando vai ao encontro do ensinamento do Prof. Baptista Machado, segundo o qual em matéria contratual a aplicação ou não aplicação imediata das disposições da lei nova ao conteúdo e efeitos dos contratos anteriores depende fundamentalmente duma qualificação dessas disposições se referir a um estatuto legal ou contratual. Depende fundamentalmente do ângulo de incidência dessas disposições sobre as situações jurídicas visadas nas suas hipóteses legais, isto é, depende da resposta à questão de saber se elas abstraem ou não dos factos constitutivos das mesmas situações jurídicas, podendo referir-se a contratos e, todavia, não terem a natureza própria de regras próprias de um estatuto contratual. Se a lei nova abstrair dos factos constitutivos da situação jurídica contratual, quando dirigida à tutela dos interesses duma generalidade de pessoas que se achem ou possam vir a achar ligadas por uma certa relação jurídica, não se deixará de aplicar às situações anteriormente constituídas.
O estatuto do contrato é determinado em face da lei vigente ao tempo da conclusão do contrato, mas quando as cláusulas de um contrato ou a sua regulação ao abrigo da lei antiga brigue com as disposições prevalecentes da lei nova, enquanto ordenadoras do estatuto legal das pessoas e dos bens ou a princípios estruturadores da ordem social ou económica, as disposições da lei nova prevalecem sobre as da lei antiga.6
Ora, parece, ainda aqui, não haver dúvidas, que a instituição ou afastamento de tal instituto, concretiza um instrumento de intervenção e regulação da economia que se há-de sobrepor a um qualquer estatuto contratual inter partes.
(…) Por todas estas razões acima desenvolvidas, seja por via da apreensão do que seja um direito de preferência e determinação do momento da sua constituição, seja mesmo por via da sua natureza, adopte-se o critério da realidade ou da pessoalidade, qualquer que ela seja, e seu exercício, seja por via da aplicação do regime da sucessão de leis no tempo, somos a considerar pela inexistência do direito de preferência para o A., ora recorrente, em relação à alienação ocorrida em 2008”.
Como se vê pelo aresto citado, o qual, com a devida vénia, parcialmente reproduzimos, a questão colocada ali, tal como nestes autos sucede, é resolvida pela lei do momento da venda, altura em que, só então, se discute a eventual existência do direito de preferência e o modo do seu exercício.
Sendo assim, e porque o Código Civil de 1999 não contempla a pretendida preferência legal, sendo certo que a convencional também não foi acordada, somos a concluir, ainda que por fundamentos não totalmente coincidentes, que a sentença não merece reparo quanto ao decidido.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em negar provimento ao recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas pelo recorrente.
TSI, 14 / 04 / 2011.
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 Embora o Cod. Civ. de 1966 não tenha chegado a entrar em vigor em Macau na parte referente ao regime do arrendamento urbano, mantendo-se regulado no Decreto n. 43525. Neste sentido, ver anotação 7ª a pagina 672 do Código Civil, versão portuguesa, edição 1999 da Imprensa Oficial de Macau.
2 Vai no mesmo exacto sentido o art. 21º, n.2 desse diploma, com a diferença de que ali o que se estabelece é que o arrendamento será reconhecido em juízo.
3 No texto transcrito, esta nota tem o número 12, com o seguinte teor: Ac. RP, de 28/6/2004, proc. 0355846.
4 No texto transcrito, esta nota tem o número 13, com o seguinte teor: Ac. STJ, de 19/3/80, anotado por A. Varela na RLJ n.º 3682
5 No texto transcrito, esta nota tem o número 14, com o seguinte teor: Ac. STJ, proc. 084864, de 5/5/94
6 No texto transcrito, esta nota tem o número 15, com o seguinte teor: Introdução ao Direito e ao Discurso Legitimador, Almedina, 1995, 241 e 242.
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