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Processo nº 1017/2010 Data: 17.03.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Crime de “fuga à responsabilidade”.
Elementos do crime.
Absolvição.
Rejeição do recurso.



SUMÁRIO

1. Provado não estando que o arguido se apercebeu do embate que causou a queda de um motociclo e que abandonou o local agindo livre e conscientemente, com intenção de se furtar à responsabilidade daí resultante, inexistente é o elemento subjectivo do crime de “fuga à responsabilidade” pelo qual deve assim o arguido ser absolvido.

2. É de rejeitar o recurso no qual o assistente pugna pela condenação do arguido invocando tão só como fundamento para tal factos que não resultaram provados e que não merecem censura.


O relator,

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José Maria Dias Azedo





















Processo nº 1017/2010
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, assistente com os sinais dos autos, vem recorrer da sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. que absolveu a arguida B da prática de um crime de “fuga à responsabilidade” p. e p. pelo art. 64° do Código da Estrada.

*

Na sua motivação oferece a recorrente as conclusões seguintes:
–– “O Tribunal recorrido errou várias vezes ao reconhecer que todos os moradores conheciam a arguida por esta morar no Edf. Vang Lei, ou seja, local do incidente, e, por isso, ela não iria deixar o local do acidente depois da ocorrência. Este reconhecimento é aparentemente contrário às regras da experiência comum, sendo uma lógica absolutamente ridícula.
Pelo qual a sentença recorrida padece do vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada.
–– Conforme os n°s 5 a 50, o Tribunal recorrido errou na apreciação da prova.
–– Conforme os n°s 17, 18, 20 a 36 e 40 a 50, comprovou-se que a arguida sabia da colisão, apenas deixou tudo nas mãos da sorte e/ou deixou as coisas seguirem o seu curso.
–– Em particular, os n°s 41, 45 a 47 comprovaram que a arguida sabia a colisão.
–– O agente estava bem ciente do seu acto e dos danos necessariamente ou eventualmente causados e actuou intencionalmente para o resultado danoso - dolo directo (vide pg. 54 de Estudos De Direito Penal De Macau, por Zhao Guoqiang e publicado pela Fundação Macau).
–– O agente sabia que o seu comportamento ia ter como resultado necessário, inevitável, o ilícito, mas, a fim de realizar o seu objectivo, aceitou a sua ocorrência, i.e., ele é indiferente e tolerável ao resultado danoso, não fazendo nada para o evitar - dolo necessário (vide pg. 54 de Estudos De Direito Penal De Macau, por Zhao Guoqiang e publicado pela Fundação Macau).
Dos n°s 63 e 64, concluiu-se que a arguida agiu com dolo.
–– Segundo os n°s 41 a 43 e 45, 2° parágrafo, a sentença recorrida proferiu uma decisão judicial errada no verso da fl. 182 e fl. 183 que absolveu a arguida, padecendo assim do vício indicado no artigo 400°, n°1 do CPP.
–– Segundo os n°s 52 a 58, a recorrente acredita no Direito e Tribunais de Macau que são justos e imparciais, pelo que os direitos e bens jurídicos dos residentes de Macau são garantidos. De facto, a recorrente nunca odeia a arguida, apenas fornecendo informações à polícia em cumprimentos dos deveres dos residentes. Acredita que o fim do Direito de Macau é a justiça”;(cfr., fls. 192 a 207 e 245 a 271).

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Respondendo, afirmam respectivamente o Exmo. Magistrado Ministério Público e a arguida que o recurso deve ser julgado improcedente e rejeitado; (cfr., fls. 213 a 215 e 216 a 233).

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Admitido o recurso, e remetidos os autos a este T.S.I. em sede de vista juntou o Exmo Representante do Ministério Público o seguinte douto Parecer:

“Fundou-se a absolvição registada no domínio do presente processo na ocorrência de dúvida razoável e inultrapassável relativa ao registo do elemento subjectivo da infracção imputada, decorrente da circunstância de se ter dado como não provado que
- A arguida quando parou, olhou para trás;
- A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que embateu noutro veículo, mesmo assim, abandonou o local do incidente, com intenção de furtar-se à responsabilidade civil ou criminal que poderá ocorrer;
- A arguida bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei ".
E, se alguma coisa flui, com proficiência e clareza da douta sentença em escrutínio, é a explanação concreta e específica da valoração da prova produzida e dos motivos por que no espírito do julgador "a quo" se estabeleceu a dúvida, em concreto, sobre a plausibilidade de a arguida se ter ausentado por não se ter apercebido do acidente, não se divisando que no raciocínio a esse propósito empreendido ocorra qualquer lacuna no apuramento da matéria de facto que impedisse a decisão, perfilando-se todos os factos pertinentes à dúvida estabelecida, não se vislumbrando também que tenham sido dados como provados factos incompatíveis entre si ou se tenham retirado dos mesmos conclusões logicamente inaceitáveis, não competindo a este Tribunal censurar o julgador por ter estabelecido a sua dúvida neste ou naquele sentido, quando na decisão recorrida, confirmado pelo senso comum, nada contraria as conclusões alcançadas, vendo-se bem que com a sua alegação, conjecturas e especulações nela contidas, pretende a assistente manifestar a sua discordância com a matéria de facto dada assente pelo tribunal, melhor dizendo, da interpretação que este faz dessa matéria no que tange à responsabilidade da arguida, limitando-se, em boa verdade, tão só a expressar a sua opinião 'pessoalíssima" àcerca da apreciação e valoração da prova, quando, manifestamente, não se vê que do teor do texto da decisão em crise, por si só, ou conjugada com as regras da experiência comum, resulte patente, evidente, ostensivo que o julgador "a quo" errou ao apreciar como apreciou.
Analisada, a decisão recorrida na sua globalidade, constata-se, pois ser a mesma lógica e coerente, não tendo o Tribunal decidido em contrário ao que ficou provado ou não provado, contra as regras da experiência ou em desrespeito dos ditames sobre o valor da prova vinculada ou das "legis artis", não passando a invocação do erro notório da apreciação da prova de uma mera manifestação de discordância no quadro do julgamento da matéria de facto, questão do âmbito do princípio da livre apreciação da prova, insindicável em reexame de direito.
Razões por que se nos afigura não merecer reparo o decidido”; (cfr., fls. 297 a 299).

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Passa-se a apreciar.

Fundamentação

Dos factos

2. Está provada a seguinte factualidade:

–– “Em 23 de Julho de 2006, cerca das 21H55, a assistente A conduzia o motociclo pesado de matrícula MD-97-XX na Rua de Francisco Pereira Xavier em direcção à Rua da Barca para a Avenida de horta e Costa.
–– A assistente pretendia ir à farmácia, e estacionou o seu motociclo junto da saída do parque de estacionamento do Edificio Wang Kei ao lado da farmácia.
–– Naquela altura, a assistente estacionou o seu motociclo na beira do parque de estacionamento, com a parte dianteira do motociclo virada na direcção da Avenida de Horta e Costa. Seguidamente, a assistente, saiu do motociclo para ir à farmácia.
–– Nesse momento, a arguida B conduzia o veículo ligeiro de matrícula MI-52¬XX, saindo do parque de estacionamento do Edificio Wang Kei na Rua de Francisco Xavier Pereira, local onde vive.
–– Brevemente, na farmácia a assistente ouviu veículos a buzinar no exterior, pelo que saiu da farmácia para observar, e descobriu que o seu motociclo impedia a passagem do veículo de matrícula MI-52-XX que estava a sair do parque de estacionamento do Edifício Wang Kei. A assistente empurrou para frente o seu motociclo e fê-lo parar, vo 1 tando outra vez para a farmácia.
–– Posteriormente, a assistente ouviu gritos e o buzinar dos veículos na rua, pelo que saiu para observar, e constatou que a parte lateral esquerda do veículo da arguida tinha tocado o seu motociclo, fazendo com que o motociclo caísse no chão, e, as frutas colocadas pela assistente na parte dianteira da caixa de depósito do motociclo, ficassem espalhadas no chão.
–– A assistente dirigiu-se à rua, e viu a arguida a conduzir o seu veículo e a parar um pouco à frente na parte dianteira do seu motociclo durante uns segundos e face a zebra que se lhe deparava. Depois abandonou o local do incidente.
–– A assistente confirmou que matrícula do referido veículo era MI-52-XX.
–– Esse embate, provocou risca na parte dianteira direita e a parte direita da carroçaria do motociclo MD-97 –XX conduzida pela assistente.
–– À hora do acidente, havia boa visibilidade, o estado do tempo era bom, o chão estava seco e o trânsito estava normal.
–– Dá-se por reproduzido o teor do CRC para os legais e devidos efeitos”.

E, como “factos não provados” elencou o Mmo Juiz a quo os seguintes:
–– “A arguida, quando parou, olhou para trás.
–– A arguida agiu de forma livre e consciente, bem sabendo que embateu noutro veículo, mesmo assim, abandonou o local do acidente, com intenção de furtar-se à responsabilidade civil ou criminal que poderá ocorrer.
–– A arguida bem sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei”; (cfr., fls. 180-v a 181).

Do direito

3. Vem a assistente A recorrer da sentença que absolveu a arguida B da prática de um crime de “fuga à responsabilidade” p. e p. pelo art. 64° do Código da Estrada.
Tanto quanto se alcança da motivação e conclusões do seu recurso, assaca a recorrente à decisão recorrida o vício de “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, “erro notório na apreciação da prova” e “erro de direito”.

Porém, como em sede de exame preliminar se deixou consignado, afigura-se-nos ser o presente recurso manifestamente improcedente, sendo assim de rejeitar; (cfr., art. 409°, n.° 2, al. a) e 410°, n.° 1 do C.P.P.M.).

Vejamos, começando pelos “vícios da matéria de facto”.

–– Quanto à alegada “insuficiência da matéria de facto provada para a decisão”, e, independentemente do demais, patente é que inexiste tal vício.

De facto, tem este T.S.I. entendido, e assim se considera de continuar a entender, que o vício em questão apenas ocorre quando o Tribunal omite pronúncia sobre “matéria objecto” do processo; (cfr., v.g., o Acórdão de 10.03.2011, Processo n.°563/2009).
E como facilmente se constata de uma mera leitura à sentença recorrida, no caso, não deixou o Mmo Juiz à quo de se pronunciar sobre toda a matéria objecto do processo, elencando a que resultou provada e não provada, e fundamentando, adequadamente, esta sua decisão.

–– No que toca ao alegado “erro notório na apreciação da prova”, também repetidamente tem este T.S.I. afirmado que o mesmo apenas existe “quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”

De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 27.01.2011, Proc. n° 470/2010, do ora relator).

Na situação dos autos, não se vislumbra “onde” ou “em que termos” tenha o Tribunal a quo violado as regras sobre o valor da prova tarifada, as regras de experiência ou legis artis, evidente sendo que limita-se a recorrente a tentar impor a sua versão dos factos, o que, como é óbvio, não colhe.

Com efeito, no caso, e vale a pena recordar assim fundamentou o Tribunal a quo a sua decisão da matéria de facto:

–– “A convicção do Tribunal para a decisão que tomou sobre a matéria de facto assentou na análise e ponderação conjuntas e críticas da prova produzida, em concreto relevando, e quanto aos factos provados e referentes ao tipo objectivo do crime em causa, as declarações da arguida e as declarações da ofendida/assistente, ambas coincidentes, grosso modo, na forma como se concretizou o acidente e no facto daquela ter, após ele, metros à frente, parado e, pouco segundos depois ausentando-se. Note-se que a arguida apesar de referir que não se apercebeu do toque, admitiu o mesmo como provável.
–– Releva-se, no entanto, quanto à paragem referida, que tal ocorreu face à zebra que se lhe deparava à distância de cerca de 20 m do local do acidente, como referiu a arguida, aspecto este confirmado pela assistente embora referindo que a zebra se situa bastante mais longe e que a arguida quando parou fê-lo bastante antes dela e para olhar para trás.
–– A dúvida criada pela diversidade das declarações referidas e quanto a isto, resolveu-se a favor da arguida, ponderando-se no caso a inconsistência das declarações da assistente quando refere que tal zebra estaria à distância de cerca de 7 carros do local do sinistro.
–– Na verdade, neste apontado aspecto a arguida, falando na distância de 4 carros, viu reforçada a credibilidade do que disse quando a 3° testemunha ouvida, guarda 1439XX, confirmou, e por ao local se ter deslocado para tirar as medidas, que tal zebra fica a 20 m do sítio do sinistro. Em face disso, na dúvida, e porque o tribunal não viu consistência bastante nas declarações da assistente quando refere que a arguida voltou o pescoço para trás, assim confirmando o acidente, e pelos dados que à frente se referirá, o tribunal assentou que a arguida parou depois do acidente mas por via da zebra que se lhe deparava.
–– Relativamente aos elementos de natureza subjectiva do crime em causa, para além do que parcamente já se referiu, ancorou-se o tribunal a sua decisão no "sacro santo" princípio do in dúbio pro reo.
–– Como é consabido, a vontade na prática de factos diz respeito a aspectos de natureza psicológica que, se não foram directamente admitidos por quem os pratica, têm de ser alcançados com recurso às regras da experiência na análise dos factos praticados.
–– No caso em concreto, face à negação da arguida de que pretendia, ao ausentar-se, e pouco depois de ter parado imediatamente após o acidente em face da zebra que se lhe deparava, fugir a qualquer responsabilidade, o tribunal teve de se socorrer de outros elementos e com vista a descortinar a efectiva vontade da arguida.
–– Debalde o tentou uma vez que não ultrapassou a dúvida que se instalou no seu espírito.
–– Concorreu para o não dissipar dessa dúvida o seguinte:
- a arguida tinha seguro de responsabilidade civil de 5 milhões de patacas, conforme garantido por ela e pela C, sua amiga e agente de seguros, por conseguinte nada justificando qualquer fuga por nenhuma responsabilidade de natureza patrimonial se lhe poder assacar;
- a arguida vive no local, como se assentou e resulta até da identificação da mesma, por conseguinte a sua fuga seria sempre efémera porque facilmente identificável;
- a arguida, e o tribunal acredita em face das regras da vida e o local onde se vive, tinha o ar condicionado ligado e, consequentemente, os vidros fechados quando o toque ocorreu, por conseguinte, reduzindo-se a possibilidade de percepção de um qualquer toque de dimensão desprezível. Acresce que, também por ela referido, tinha a música ligada, o que também é normal; (cfr., fls. 181 a 182-v).
- o movimento da manobra, conforme a dinâmica relatada é, por natureza, susceptível de concentrar a atenção da condutora para o que se lhe depara no horizonte e uma vez que estava a entrar numa rua que apresentava trânsito à sua direita, para onde teria obrigatoriamente de olhar. Em face disso, por essência das coisas, visto que o toque foi muito ligeiro, como se referirá, é normal não se ter apercebido do sinistro que aconteceu na parte lateral esquerda final do seu veículo;
- o toque, como se referiu, vistas as fotografias e as declarações da 2ª testemunha ouvida, guarda 2339XX, foi muito superficial.
–– Ora, com todas estes elementos, em boa consciência, ninguém poderia asseverar com a certeza moral exigida nesta sede que a arguida pretendeu fugir ao ausentar do local do acidente.
–– Ficou pois a dúvida, em concreto mantendo-se dado plausível que a arguida se ausentou por não se ter apercebido do acidente.
–– Em face disso, os aspectos reportáveis ao dolo genérico e específico do crime em causa, tinham, necessariamente, de ser remetidos para os não provados.
–– Atendeu-se, por fim, o CRC da arguida”; (cfr., fls. 181 a 182-v).

E, perante tão clara, lógica e pormenorizada “exposição de motivos”, cristalina é a decisão proferida, bem se vendo que inexiste o “erro” em questão.
Ociosas sendo outras considerações sobre o ponto em questão, continuemos.

–– Do assacado “erro de direito”.

Também aqui, e sem necessidade de extensas considerações, sem esforço se conclui que nenhuma razão tem a ora recorrente.

Na verdade, face a matéria de facto que resultou “não provada” (e que atrás se deixou retratada, nomeadamente, quanto ao elemento subjectivo do tipo de crime imputado), só restava a absolvição da arguida, mal se compreendendo o que alega a recorrente para justificar o seu inconformismo, pois que, no fundo, limita-se a insistir em (tentar) responsabilizar a arguida invocando matéria de facto que não se provou, e que, por isso, não pode levar à pretendida condenação.

Dest’arte, e necessários não nos parecendo outras considerações, resta decidir.


Decisão

4. Nos termos que se deixam expostos, e em conferência, acordam rejeitar o recurso.

Pagará a recorrente a taxa de justiça de 6 UCs e, pela rejeição, o equivalente a 4 UCs; (cfr., art. 410°, n.°4 do C.P.P.M.).


Macau, aos 17 de Março de 2011
José Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

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