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Processo n.º 128/2011
(Recurso Cível)

Data: 12/Maio/2011

   ASSUNTOS:
  
  - Escusa de patrocínio
  - Deontologia no exercício da advocacia


SUMÁRIO:
    
    1. Se é certo que não se pode facilitar uma atitude de falta de interesse por banda do advogado, não sendo de sufragar uma qualquer atitude que corresponda a um menor empenho ou a um facilitismo, não é menos certo que a intervenção de um advogado desmotivado e, mais, incompatibilizado ou incompreendido pelo seu patrocinado será de evitar, até pelo desprestígio da actividade forense em particular e da Justiça em geral.
    2. Se se exige lealdade, isenção e zelo ao advogado no tratamento dos negócios do seu cliente, não é menos verdade que uma condição mínima do mandato, mutatis, mutandis, do patrocínio oficioso, é uma relação de confiança que se deve exigir do cliente para o seu patrono.

   3. O advogado tem de possuir um distanciamento e até ascendente sobre a parte que patrocina e não obstante a parcialidade inerente ao seu estatuto de patrocinador de uma das partes em litígio, a ele lhe compete aperceber-se do grau de cabimento jurídico das pretensões que lhe são apresentadas e estabelecer a estratégia técnica que lhe pareça adequada à prossecução dos fins que elegeu como merecedores de tutela.
                 
  O Relator,
  João A. G. Gil de Oliveira

Processo n.º 128/2011
(Recurso Civil e Laboral)
Data: 12/Maio/2011
Recorrente: A (Advogada Estagiária)
Objecto do Recurso: Despacho que indeferiu o pedido de escusa

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A, advogada estagiária, patrona oficiosa de B, 2ª Ré nos autos acima identificados, requereu, ao abrigo do art. 27° do DL 41/94/M, lhe fosse concedida escusa do patrocínio para que foi nomeada, o que fez nos termos e com os seguintes fundamentos:
    1. Na sequência da sua nomeação como patrona oficiosa da 2ª Ré, a ora Requerente contestou a presente acção declarativa de condenação com processo ordinário e acompanhou todos os restantes termos do processo.
    2. No dia 14 de Outubro de 2010, a ora Requerente foi notificada da sentença proferida pelo Tribunal, que condenou o 1° R. C a pagar à A. a quantia de HKD$220,500.00, acrescida de juros de mora à taxa legal contabilizados a partir da sua citação até integral e efectivo pagamentos; a 2ª B a pagar à A., subsidiariamente como fiadora do 1° R., as quantias atrás referidas, e que decidiu pela improcedência da reconvenção deduzida pela 2ª R.
    3. Não se conformando com tal decisão, a 2ª Ré transmitiu à ora Requerente a sua intenção de recorrer da mencionada decisão.
    4. Sucede porém, que, após análise de todos os elementos dos autos e, bem assim, da fundamentação da sentença, entende a ora Requente que o recurso em causa não é viável, entendimento este que transmitiu à sua patrocinada em reunião de 20 de Outubro de 2010, mas que não merece a concordância desta.
    5. Com efeito, a 2ª Ré foi peremptória em expressar que discorda em absoluto da opinião da ora Requerente e que pretende mesmo que a sua patrocinada recorra com vista à sua absolvição ou à procedência da sua reconvenção, o que, na opinião da Requerente, se afigura absolutamente inviável.
    6. Entretanto, na mesma reunião, a patrocinada voltou a questionar a ora Requerente quanto à junção de um documento, o que já havia sido recusado anteriormente pela Requerente em virtude de não tem qualquer relação com os factos em causa nos presentes autos.
    7. Atendendo as atitudes da sua patrocinada, explanadas supra, verificou-se assim, a quebra de confiança que necessariamente tem que existir na relação que se estabelece entre o advogado nomeado e o patrocinado no âmbito de um qualquer patrocínio oficioso.
    8. Face ao exposto, e, atendendo a que a escusa que ora se requer assenta no pressuposto de inviabilidade da acção que a patrocinada pretende recorrer, deverá o apoio judiciário a esta concedida ser revogado, nos termos da al. a) do art. 28° do mesmo DL n.º 41/94/M.
    9. Caso assim não se entenda, requer-se a V. Exa. se digne, ao abrigo do art. 27º do DL n.º 41/94/M, conceder à ora Requerente escusa do patrocínio para que foi nomeada.
    
    Este pedido veio a ser indeferido e vem interposto recurso desse despacho, pela Exma Estagiária, alegando, em síntese:
    I. No dia 15 de Outubro de 2010, a ora Recorrente foi notificada da sentença proferida pelo Tribunal, que condenou o 1º R. C a pagar à A. a quantia de HKD$220,500.00, acrescida de juros de mora à taxa legal contabilizados a partir da sua citação até integral e efectivo pagamento, e a 2ª R. B a pagar à A., subsidiariamente como fiadora do 1° R., as quantias acima referidas, e que decidiu pela improcedência da reconvenção deduzida pela 2ª R.
    II. Não conformada com tal decisão, a 2ª Ré transmitiu à ora Recorrente, sua patrona oficiosa nomeada pelo Tribunal, a sua intenção de recorrer da mencionada decisão.
    III. Sucede porém, que, após análise de todos os elementos dos autos e, bem assim, da fundamentação da sentença, entende a ora Recorrente que o recurso em causa não é viável, entendimento este que transmitiu à sua patrocinada em reunião de 20 de Outubro de 2010, mas que não merece a concordância desta.
    IV. Com efeito, a 2ª Ré foi peremptória em expressar que discorda em absoluto da opinião da ora Recorrente e que pretende mesmo que a sua patrona recorra com vista à sua absolvição e/ ou à procedência da sua reconvenção, o que, na opinião da Requerente, se afigura absolutamente inviável.
    V. Entretanto, na mesma reunião, a patrocinada voltou a questionar a ora Recorrente quanto à junção de um documento, o que já havia sido recusado anteriormente pela Recorrente em virtude de não ter qualquer relação com os factos em causa nos presentes autos.
    VI. Atendendo às atitudes da sua patrocinada, explanadas supra, verificou-se assim, a quebra de confiança que necessariamente tem que existir na relação que se estabelece entre o advogado nomeado e o patrocinado no âmbito de um qualquer patrocínio oficioso.
    VII. Pelas razões supra expostos, em 25 de Outubro de 2010, a ora Recorrente requereu escusa do patrocínio para que foi nomeada nos termos do art. 27º do Decreto-Lei n.º 41/94/M, o qual foi indeferido, por despacho do Mmo. Juíz a quo, nos termos do "artigo 27º, n.° 1 do DL n.° 41/94/M, a contrario".
    VIII. É este o despacho recorrido, com o qual a Recorrente não se conforma, uma vez que entende que o seu pedido de escusa é totalmente justificado, porquanto:
    a. Face aos factos provados na presente acção, a 2ª Ré é fiadora no contrato de mútuo celebrado entre a A. e o 1º R., pelo que a responsabilidade da 2ª Ré, apesar de subsidiária, apenas se extingue com a extinção da obrigação principal, ou seja, da obrigação do 1º R (artigos 623°, 630º e 647º do Código Civil).
    b. Sendo fiadora e tendo assinado o documento particular junto com a p.i. com o n.º 2, conforme resultou também provado, não assiste qualquer fundamento ou razão para que a sua patrocinada, ou seja, a 2ª R., seja absolvida, uma vez que apenas goza do benefício de excussão prévia (art. 634° do Código Civil), situação já reflectida e acautelada na sentença que a condenou subsidiariamente como fiadora.
    c. Por outro lado, face à inexistência de prova suficiente, quer documental quer testemunhal, para provar os factos vertidos na reconvenção (dos quais não ficou provado nenhum) afigura-se impossível que a dita reconvenção seja procedente.
    d. A dedução, por parte da ora Recorrente, de pretensão ou oposição que careça de fundamento e, assim, a interposição de recurso que considera totalmente inviável e que só servirá para protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão, constitui litigância de má fé, nos termos do art. 385° do Código Processo Civil, e viola o dever deontológico previsto no art. 12°, n.° 2 do Código Deontológico dos advogados, designadamente o de "não advogar contra lei expressa, não usar de meios ou expedientes ilegais, nem promover diligências reconhecidamente dilatórias, inúteis ou prejudiciais para a correcta aplicação da lei".
    e. Além disso, a patrocinada pôs em dúvida os conhecimentos profissionais da Recorrente, insistindo pela interposição de recurso totalmente inviável com vista à sua absolvição total e pela junção de um documento que já havia sido recusada anteriormente pela ora Recorrente em virtude de não ter qualquer relação com os factos em causa nos presentes autos, o que quebrou completamente a confiança estabelecida desde os primeiros contactos com a mesma.
    f. Destarte, dada a insistência manifestada pela 2ª Ré em que a ora Recorrente apresente um recurso que considere totalmente inviável, e, bem assim, a quebra de confiança entre a 2ª Ré e a ora Recorrente, esta, por forma a não prejudicar os interesses da sua patrocinada, viu-se obrigada a pedir escusa do patrocínio para que foi nomeada.
    IX. Face ao exposto, atendendo a que a escusa que se requereu se fundamenta na inviabilidade do recurso que a patrocinada pretende interpor, e bem assim, na quebra de confiança que necessariamente tem que existir na relação que se estabelece entre o advogado nomeado e o patrocinado, o despacho recorrido, ao indeferir esse pedido de escusa, violou as disposições dos artigos 27° e 28° do Decreto-Lei n.° 41/94/M e, bem assim, dos artigos 385° do Código de Processo Civil e 12°, n.° 2 do Código Deontológico do Advogado.
    X. Assim, deve ser dado provimento ao presente recurso e, consequentemente, o despacho ora recorrido ser anulado ou revogado e ser deferido o pedido de escusa da ora Recorrente.
    Nestes termos, conclui, deverá ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, deverá ser deferido o pedido de escusa da ora Recorrente.
    Foram colhidos os vistos legais
    
    II - FACTOS
    D (A.) intentou acção ordinária contra C (1° R.) e B (2ª R.), alegando, em síntese, que tinha concedido um empréstimo ao 1° R. tendo a sua irmã ora 2ª R. assumido como fiadora e principal garante do referido empréstimo, entretanto, até à presente data o 1° R. apenas procedeu à liquidação parcial de sete prestações mensais no montante de MOP$24.500,00, deixando de fazer o pagamento do remanescente do empréstimo no valor de MOP$220.500, 00, não obstante as diversas diligências efectuadas junto dos RR.
    Concluindo, pediu, a final, que fosse a acção julgada procedente, e se declarasse resolvido o contrato, fossem condenados os RR. a pagar solidariamente à A. a quantia de MOP$220.500,00, relativa às prestações vincendas, acrescida dos juros de mora à taxa legal desde 1 de Julho de 2007 até efectivo e integral pagamento, tudo conforme a petição inicial de fls. 2 e seguintes.
    Citados os RR., apenas veio contestar a 2ª R., tendo impugnado os factos articulados pela A., pedindo a improcedência da acção com a consequente absolvição dos RR. dos pedidos, bem assim deduzido pedido reconvencional, tudo melhor nos termos de fls. 56 e seguintes.
    Saneado o processo e seleccionada a matéria de facto pertinente para a decisão da causa, realizou-se a audiência de discussão e julgamento com observância das formalidades legais.
    No dia 15 de Outubro de 2010, a ora Recorrente foi notificada da sentença proferida pelo Tribunal, que condenou o 1º R. C a pagar à A. a quantia de HKD$220,500.00, acrescida de juros de mora à taxa legal contabilizados a partir da sua citação até integral e efectivo pagamento, e a 2ª R. B a pagar à A., subsidiariamente como fiadora do 1° R., as quantias acima referidas, e que decidiu pela improcedência da reconvenção deduzida pela 2ª R.
    Não conformada com tal decisão, a 2ª Ré transmitiu à ora Recorrente, sua patrona oficiosa nomeada pelo Tribunal, a sua intenção de recorrer da mencionada decisão.
    Esta concluiu pela inviabiliadde do recurso, o que comunicou á sua patrocinada, posição não aceite por esta, razão pela qual a Exma Advogada Estagiária veio pedir a sua escusa pelas razões acima explanada, escusa essa não aceite pelo Mmo Juiz nos seguintes termos:
    “Fls 198 e 199: Indefiro o pedido de escusa (artigo 27º, n.º 1 do DL n.º 41/94/M, a contrario)”.
    
    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa pela análise das razões que presidiram à prolação do despacho de fls. 201, despacho esse que mui singelamente se limitou a indeferir o pedido de escusa, citando ao mesmo tempo o artigo 27º, n.º 1 do DL n.º 41/94/M, a contrario.
    A questão será tratada sem grandes desenvolvimentos, limitando-nos a constatar que não conseguimos vislumbrar as razões que levaram o Mmo Juiz a indeferir o pedido de escusa.
    2. Se é certo que não se pode facilitar uma atitude de falta de interesse por banda do advogado, não sendo de sufragar uma qualquer atitude que corresponda a um menor empenho ou a um facilitismo, - estando aí aberta a porta a que qualquer advogado, fosse pelo trabalho, fosse pela complexidade, fosse pelas dificuldades viesse pedir a dispensa do seu ofício de patrocínio - não é menos certo que a intervenção de um advogado desmotivado e, mais, incompatibilizado ou incompreendido pelo seu patrocinado será de evitar, até pelo desprestígio da actividade forense em particular e da Justiça em geral.
    No caso vertente é de crer, pela citação da referida norma, que o Mmo Juiz entendeu que não havia motivo justificado para a escusa.
    Mas estamos bem em crer que essa justificação se verifica no caso.
    3. Não está somente em causa uma discordância quanto à viabilidade do recurso - e aí procuramos não entrar profundamente, não sem que se diga não se afigurarem destituídos de todo os argumentos da Senhora Advogada Estagiária -, como, o que é mais grave é que, conforme vem alegado, aquela causídica alega uma incompatibilidade e ruptura de confiança com a parte no processo o que mina irremediavelmente a continuação do seu patrocínio.
    Mal andariam as coisas quando um advogado incompatibilizado com o seu cliente o continuasse a patrocinar.
    Isto mesmo flui dos costumes e regras deontológicas e se se exige lealdade, isenção e zelo ao advogado no tratamento dos negócios do seu cliente, não é menos verdade que uma condição mínima do mandato, mutatis, mutandis, do patrocínio oficioso, é uma relação de confiança que se deve exigir do cliente para o seu patrono.
    Este dever mais não é do que o reverso da obrigação do advogado plasmada no artigo 16º e se houver quebra de confiança passará a haver motivo para o abandono de patrocínio previsto no artigo 21º do Código Deontológico - homologado por Despacho n.º 121/GM/92, de 31/Dez.
     Se porventura se pusesse em causa a alegada quebra da confiança, então sempre devia a parte ter sido ouvida para se pronunciar, o que não se verificou.
    O advogado, como anota Abel Laureano,1 tem de possuir um distanciamento e até ascendente sobre a parte que patrocina e não obstante a parcialidade inerente ao seu estatuto de patrocinador de uma das partes em litígio, a ele lhe compete aperceber-se do grau de cabimento jurídico das pretensões que lhe são apresentadas e estabelecer a estratégia técnica que lhe pareça adequada à prossecução dos fins que elegeu como merecedores de tutela. A necessidade de distanciamento e de independência do advogado perante o seu cliente não se cinge apenas ao momento inicial de contacto, mas prolonga-se por toda a intervenção e tramitação processual.
    Em face disto, sem necessidade de mais desenvolvimentos, porque não se afiguram destituídas as razões da inviabilidade avançadas quanto ao fundo da causa, por um lado, mas acima de tudo, pelas apontadas razões deontológicas, o recurso não se deixará de julgar procedente, entendendo-se que, no caso não há mais condições para que a advogada nomeada possa continuar a patrocinar o presente caso.
    
    IV - DECISÃO
    Pelas apontadas razões, acordam em conceder provimento ao recurso, e, revogando a decisão recorrida, acordam em aceitar o pedido de escusa, devendo os autos prosseguir os seus termos com nomeação de novo patrono.
    Sem custas por não serem devidas.
Macau, 12 de Maio de 2011,
João A. G. Gil de Oliveira (Relator)
Ho Wai Neng
José Cândido de Pinho
1 - O cliente e a Independência do advogado, Quid juris, 2003, 49 e 50
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