Processo nº755/2007
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 02 / 06 / 2011
Descritores: Sucessão de leis no tempo
Direito de retenção
Contrato-promessa
SUMÁRIO
I- A lei nova aplica-se aos contratos-promessa celebrados no domínio da lei antiga se a sua violação se deu já sob a sua égide.
II- Em caso de incumprimento definitivo do contrato-promessa por parte do promitente-vendedor que, posteriormente vendeu a fracção imobiliária a terceira pessoa, o promitente-comprador – a quem foi feita a tradição da coisa, que sempre a usou ao longo dos anos, como coisa sua, à vista de toda a gente - goza do direito de retenção sobre ela para satisfação do seu crédito indemnizatório, que neste caso é o valor em dobro do sinal pago.
III- Este direito de retenção, como um poder de sequela, é oponível mesmo à pessoa que tiver adquirido a coisa.
Processo nº 755/2007
Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I- Relatório
A e mulher B intentaram no TJB uma acção de condenação com processo ordinário contra “Sociedade de Investimentos em Propriedades C, Limitada” e “Companhia Geral de Material e Comércio D do Município de Nan Hai”, pedindo a declaração de nulidade, por simulação, de um contrato de compra e venda de um lugar de estacionamento celebrado entre as rés, ou, subsidiariamente, a procedência da impugnação pauliana dessa venda, ou a execução específica de um contrato de promessa que diziam ter celebrado com a 1ª ré, ou a resolução desse contrato e a devolução em dobro do sinal pago.
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A seu tempo, foi proferida sentença que, julgou procedente o último pedido e improcedentes os restantes, em consequência do que condenou a 1ª ré a pagar-lhes a quantia de Mop$ 722.400,00, correspondente ao dobro do preço pago pelos autores.
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É dessa sentença que ora vem interposto o presente recurso jurisdicional, em cujas alegações foram apresentadas as seguintes conclusões:
“1-A douta sentença de que ora se recorre é NULA porque viola a Lei.
2-Viola a Lei por considerar que se pode concluir pela simulação do negócio jurídico praticado ente a lª e a 2a RR e, não obstante, não considerar esse negócio simulado e declará-lo, em consequência, NULO, nos termos do disposto no artº 232º nº 2 do Código Civil.
3-A prova da simulação faz-se, na maioria dos casos, por meio de indícios ou de presunções, mais ou menos frisantes, de onde transpareça e se deixe inferir a existência da simulação,
4-O que se verifica nos presentes autos, designadamente na matéria considerada provada e nos documentos juntos a estes pelos recorrentes, os quais, são mais do que suficientes, para criar no julgador a convicção de que o negócio celebrado entre a 1ª e a 2ª RR. corresponde a declarações de vontade contratuais desconformes com a verdade, simulatórias de um negócio que não se quiz, e que apenas se destinaram a provocar prejuízo nos recorrentes e a afastá-los da aquisição do lugar de estacionamento.
5-Dado o relevo dos acima mencionados factos, e sendo certo que o Meritíssimo Juiz a quo não os apreciou em sede de fundamentação, estamos perante uma omissão de pronúncia que, nos termos do disposto no nº 1, alínea d) do artº 571º do C.P.C. constitui nulidade da sentença.
6-Nulidades essas que expressamente se invocam e que deverão ser reconhecidas por esse douto Tribunal de Segunda Instância.
7-Tratando-se de nulidade, é matéria que o Tribunal a quo e o Venerando Tribunal de Segunda Instância podem dela tomar conhecimento oficioso.
8-Por outro lado, a sentença recorrida ao não aceitar o direito de retenção dos ora recorrentes relativamente ao lugar de estacionamento olvidou um conceito fundamental de direito, ou seja o de que o direi to de retenção é um direito oponível “erga omnes”.
9-Não o aceitando a sentença violou, claramente, os artigos 744º, e 745º alínea f) e 749º do Código Civil.
10-O direito de retenção constitui um direito de sequela conferindo ao seu titular - o promitente-comprador - a faculdade de não abrir mão da coisa, enquanto se não extinguir o seu crédito, isto é, à celebração do contrato prometido ou, até ao cumprimento da obrigação de restituição do sinal em dobro.
11-Esta matéria é pacífica na doutrina e jurisprudência e não se compreende a sua violação pelo Tribunal a quo, uma vez que se trata de um dos institutos nucleares de protecção do promitente não faltoso, sempre que beneficie da tradição da coisa, como é o caso, e foi reconhecido em sede de Base Instrutória, ao dar-se como provados os quesitos 6 e 7.
12-Pelo que deverá a sentença proferida pelo Tribunal a quo ser substituída por douto acórdão desse douto Tribunal que reconheça o Direi to de Retenção por parte dos recorrentes.
Termos em que, nos melhores de Direito e sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Exas., deve a sentença recorrida ser declarada nula seguindo-se os ulteriores termos até final”.
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A 2ª ré apresentou contra-alegações, cujo teor aqui se dá por reproduzido.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
A sentença deu por assente a seguinte factualidade:
Da Matéria de Facto Assente:
- Em 1 de Junho de 2001, a 1ª Ré celebrou com a 2ª Ré uma escritura pública pela qual declarou vender a favor desta, que, por seu temo declarou comprar, pelo preço global de MOP$13,000,000.00 (treze milhões de patacas), onze fracções autónomas e dez respectivos lugares de estacionamento do prédio “XX Garden” com os números XX e XX d Praçd Lobo de Ávila, descrito na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o nº 9739 a fls. 265 do Livro B-26, inscrito na matriz predial urbana sob o nº 72006 (alínea A) da Especificação).
- Entre estas onze fracções autónomas e lugares de estacionamento está incluída a quota da fracção “AR/C” a que corresponde o parque de estacionamento “C36” (alínea B) da Especificação).
- Nenhum representante ou funcionário da 2ª Ré foi ao local inspeccionar o estado dos imóveis que ia comprar (alínea C) da Especificação).
Da Base Instrutória
- Os Autores, através de contrato escrito cuja cópia consta dos autos a fls. 15 e 16, prometeram comprar à 1ª Ré “Sociedade de Investimentos em Propriedades C, Limitada”, o lugar para parque de estacionamento nº “C36”, sito no prédio identificado em A) (Resposta ao quesito 1º).
- E a 1ª Ré prometeu vender aos Autores esse lugar de estacionamento (Resposta ao quesito 2º).
- O preço acordado para a venda foi de MOP$361,200.00 (Resposta ao quesito 3º).
- A 1ª Ré já recebeu dos Autores a totalidade do preço (Resposta ao quesito 4º).
- O qual foi pago no tempo previsto no ponto II do acordo escrito celebrado entre Autores e a 1ª Ré (cfr. fls. 15) (Resposta ao quesito 5º).
- A partir de 16 de Setembro de 1993 os Autores passaram a estacionar no local de estacionamento em causa a sua viatura, a limpar o local, e a proceder ao pagamento das despesas periódica de condomínio (Resposta ao quesito 6º).
- De forma exclusiva, sem oposição de ninguém (Resposta ao quesito 7º).
- Agindo sempre na convicção de exercerem, sobre o referido parque de estacionamento, o direito de propriedade como um verdadeiro direito próprio (Resposta ao quesito 8º).
- Nenhum representante da 2ª Ré tentou tomar posse do lugar de estacionamento em causa (Resposta ao quesito 17º).
- A 1ª Ré vendeu, entre outras, a fracção em causa para, através do preço pela liquidar uma dívida que tinha perante a 2ª Ré (Resposta ao quesito 28º).
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III- O Direito
1- Da nulidade da sentença
Redesenhando o retrato factual, para se facilitar a compreensão de eventual ilicitude por parte das rés, atentemos no que se passou:
No dia 16/09/1993, os autores (aqui recorrentes) prometeram comprar à 1ª Ré “Sociedade de Investimentos em Propriedades C, Limitada”, proprietária, que lho prometeu vender, um lugar de aparcamento automóvel “C36” no prédio referido na alínea a) da especificação. O preço acordado foi de Mop$ 361,200,00, já pago na totalidade à proprietária. Os promitentes-compradores entraram na posse do referido lugar de garagem, tendo-o utilizado desde então.
Em 1/06/2001, porém, a mesma “Sociedade de Investimentos C”, acabou por vender a referida fracção a um terceiro - a 2ª ré “Companhia Geral de Material e Comércio D do Município de Nan Hai” - através da celebração da respectiva escritura pública. Esta venda destinou-se a, através do preço, pagar uma dívida que a 1ª ré tinha para com a segunda. A compradora registou a aquisição.
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Ora, como se disse no relatório, a 1ª pretensão dos autores na acção era declarativa, visando a obtenção de uma sentença que julgasse nula a venda feita do lugar de garagem pela 1ª à 2ª ré. Estava subjacente a este pedido uma causa de pedir que dava corpo a uma simulação negocial. Isto é, para os autores este contrato de compra e venda entre as rés não passaria de um negócio simulado com o objectivo de criar um obstáculo à satisfação dos direitos dos impetrantes resultantes do contrato-promessa.
A sentença, porém, não acolheu esta tese, circunstância que animou os autores a virem defender no recurso para este TSI uma posição discordante.
E o primeiro fundamento do recurso cifra-se desde logo no ataque que é desferido à sua validade. Para os recorrentes a sentença é nula por duas ordens de razões: primeiro, porque os fundamentos estão em oposição com a decisão (estaria assim preenchida a previsão do art. 571º, nº1, al. c), do CPC); segundo, por haver omissão de pronúncia relativamente a factos relevantes para a decisão da causa (o que seria motivo para a subsunção ao disposto no art. 571º, nº1, al. d), do CPC).
Apreciemo-las.
A sentença, efectivamente, disse a certa altura:
“ Ora, no caso, perante os factos assentes acima alinhados, parece que pode concluir-se pela simulação do negócio entre a 1ª Ré e a 2ª R., nós dizemos que “parece”, porque há factos demonstrativos de tal possibilidade, só que tais factos não são convincentes, visto que a 1ª R. transmitiu a propriedade de algumas fracções (repare-se. Não só a do A., mas também de outras, aliás, todas as que a 1ª R titulava na altura) para a 2ª R., não por motivo de “doação” ou oferta, mas é para cumprir uma obrigação já judicialmente reconhecida, ou seja, confirmada pela sentença proferida por um tribunal da R.P.C (fls. 184 a 190), que condenou a 1ª r. a devolver as quantias emprestadas pela 2ª R. por nulidade do contrato de mútuo entre elas celebrado, pelo que, na transacção referida nestes autos, não há entrega de “preço” porque a transmissão da propriedade visava compensar as dívidas que a 1ª R. tinha para com a 2ª R., já que aquela não tinha “cash” para cumprir a obrigação, e não para fugir às dívidas! Muito menos para enganar credores!”.
E disse mais:
“Mas independentemente destas considerações, é de realçar que, face aos termos pelos quais foi proposta esta acção e aos pedidos formulados, esta questão acaba por ser uma “questão falsa” ou, pelo menos, “uma questão inútil”, porque o imóvel já entrou definitivamente no domínio de uma terceira pessoa”.
Ora bem. Em que é que estas afirmações contradizem a decisão?
Para os recorrentes, desde logo, porque não há “terceiro adquirente”, pois “…a 2ª Ré não voltou a alienar o lugar de estacionamento em causa a terceiros”.
No entanto, não existe nenhuma contradição na afirmação do senhor juiz “ a quo”. Com efeito, quando ele utiliza o termo “terceiros” fá-lo em sentido próprio de um quadro de relativismo (pessoal e jurídico). Isto é, se o contrato de promessa foi celebrado entre AA e 1ª Ré, entre quem os efeitos do negócio deviam unicamente produzir-se, o aparecimento da 2ª ré a intrometer-se nos efeitos daquela relação jurídica através da criação de uma nova, e a favor de quem a propriedade viria efectivamente a transmitir-se, é patente que esta ré se apresenta como “terceiro” relativamente aos AA. É terceiro porque estranho às pessoas outorgantes do contrato-promessa e terceiro, ainda, porque elemento de uma nova relação jurídica estranha à primeira. A 2ª ré seria nesta perspectiva “terceira pessoa”, como é dito na sentença.
Querer, como defendem – ou parece defenderem - os recorrentes, que “terceiro” apenas se situa num plano meta-relacional, isto é, para além destas duas relações é, isso sim, transfigurar o clima que esteve na base da fundamentação decisória. Quer dizer, “terceiro” não tem que ser o adquirente do lugar de aparcamento após entrar na titularidade da 2ª Ré, como pretendem. Isso não foi dito na sentença, e por isso não estavam os recorrentes legitimados a interpretar do vocábulo nesse plano.
Diferente se nos apresenta, já, o alinhamento que a norma tem por subentendida na definição da simulação. Com efeito, o art. 232º do Código Civil diz que a simulação se verifica se, por acordo entre declarante e declaratário (1ª e 2ª rés) e no intuito de enganar terceiros, houver divergência entre a declaração negocial e a vontade real do declarante. É claro que neste sentido, a sentença até pode não ter sido precisa se tiver colocado a posição jurídica de “terceiro” num alvo pessoal errado. Isto é, a 2ª ré, no quadro da relação estabelecida entre AA e 1ª Ré, é “terceiro”. Isso parece-nos insofismável. Mas, para efeito da simulação, o desvio da trajectória do raciocínio pode não corresponder à exigência da norma. Expliquemo-nos.
Realmente, para efeito da simulação, “terceiros” seriam os sujeitos prejudicados pelo negócio entre as Rés. Logo, neste caso, os AA, na sua perspectiva. E quando a sentença faz a alusão à “terceira pessoa” que teria adquirido definitivamente o imóvel, estaria a desviar-se do conceito incluído no preceito citado.
Todavia, uma leitura atenta da sentença permite-nos compreender que esta alusão é acidental ou acessória e não configura o eixo da fundamentação que erigiu em torno da simulação. Esse eixo situa-se num longo parágrafo (o 2º de fls. 49 da sentença) e dele podemos colher que o senhor juiz quis dizer que não há prova que revele a evidência de que o negócio entre as RR fosse feito em prejuízo dos AA. Podia ter acontecido dessa maneira (e daí a referência “…parece que pode concluir-se pela simulação…”) se o contrato de compra e venda entre as RR não tivesse uma causa justificativa (a sentença decretada num tribunal da RPC para resolver um litígio entre elas). Mas ao encontrar uma causa justificativa para esse negócio (e ela encontra-se na resposta ao quesito 22º), o senhor juiz eliminou a possibilidade de subsumir a questão ao art. 232º do CC. Razão pela qual ele se apressou a desfazer eventual equívoco com a expressão “ …dizemos “parece” porque há factos demonstrativos de tal possibilidade”), para depois ser ainda mais expressivo e conclusivo “…só que tais factos não são convincentes…”. Ora, se isto assim concluiu, patente se torna que o julgador quis colocar o vocábulo “terceiros” como elemento destinatário eventual da acção enganosa das RR. Ou seja, colocou os AA como potenciais vítimas da acção enganosa das Rés, mas do estudo efectuado chegou à conclusão de que essa intenção não esteve escondida por detrás da declaração contida no contrato celebrado entre elas. Por isso se percebe a preocupação do juiz em afastar a má fé de qualquer das duas rés (uma vendedora, outra compradora). Daí que seja compreensível e muito claro que o juiz “a quo” tenha terminado a discussão com a afirmação de não existência da simulação, sem que nisso haja o menor sinal de contradição entre fundamentação e decisão.
Por conseguinte, não existe a invocada nulidade.
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Mas os recorrentes também consideram que a nulidade tem uma segunda fonte, a qual consistiria em concreto na omissão de pronúncia relativamente a factos relevantes para a decisão da causa (o que seria motivo para a subsunção ao disposto no art. 571º, nº1, al. d), do CPC).
Para eles, haveria que fazer uso dos elementos indiciários que costumam andar associados à simulação. E, dizem, da prova dos autos resulta evidente a má fé, o comportamento doloso e conluiado entre rés com o intuito de prejudicá-los. Ora, acontece que os dados de facto adquiridos nos autos (assentes e provados) não levam a tal conclusão. Dizer que a 1ª Ré não recebeu qualquer preço pela venda das fracções titulada pela escritura de 1/06/2001 não pode ter o efeito que os recorrentes lhe atribuem, se o que está provado é que essa escritura serviu como modo de pagar uma “dívida” da 1ª à 2ª Ré. Esta matéria vazada na contestação de modo nenhum expressa a conclusão de que a 2ª ré nada pagou à 1ªRé pela compra das fracções. Nós dizemos, não pagou, por ser credora da 1ª ré e por ter sido operada uma espécie de compensação, ou uma dação em cumprimento: a celebração da compra e venda teria, portanto, essa finalidade de, através do valor dos bens (sem efectivo pagamento em dinheiro), se fazer pagar da dívida. Nada mais é possível extrapolar a partir desta realidade.
De igual modo não se pode retirar a conclusão de que a celebração da escritura de compra e venda entre as RR antes da publicação da lei que reduziria para metade a taxa do imposto de sisa devida pela transmissão é significativa de uma urgência simulatória. Também esse é um facto que nem sequer é instrumental para o caso em apreço, por não ser esclarecedor, a se, do conhecimento inequívoco de que as partes e seus advogados soubessem desse abaixamento do imposto para muito proximamente e, por conseguinte, da vontade simulatória. Aliás, não vale a pena esgrimir agora razões que abalem a bondade da sentença se os factos provados (especialmente o que emerge da resposta ao quesito 28º) são decisivos no sentido de que havia razão para aquele negócio entre as Rés.
A ser assim, não vemos como possa ser sustentada a tese dos recorrentes acerca da omissão de pronúncia a que se refere o art. 571º, nº1, al. d), do CPC. A omissão de que fala a disposição legal só tem força invalidante se qualquer questão omitida pudesse ser essencial ao desfecho decisório, o que não acontece quando tais questões estão prejudicadas pela solução dada a outras. E isso foi o que, precisamente, aconteceu em virtude da decisão tomada com base no facto contido na resposta ao quesito 28º. De resto, essa nem era uma “questão“ a considerar para efeito da disposição citada, por não ser mais do que mero elemento indiciário invocado como simples argumento em abono da razão jurídica de que os AA se arrogam. E isso, como também se sabe, não faz parte do âmbito de previsão da citada norma.
Improcede, pois, a invocada nulidade.
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2- Do mérito da sentença
Insurgem-se depois os AA contra a sentença da 1ª instância considerando-a errada num ponto da sua substância, elegendo-o expressamente no recurso como alvo da sua crítica: o não reconhecimento do direito de retenção sobre a coisa possuída. Motivo, por conseguinte, para a acometer de violação dos arts. 744º, 745º, al.f) e 749º do Cod. Civil.
Vejamos.
Antes de mais nada, e atendendo a que o contrato-promessa foi celebrado em 1993 e o incumprimento definitivo por parte do promitente vendedor se situa em 2001, importa previamente apurar qual a lei aplicável: se o Código Civil de 1966 (vigente em Macau à data da promessa), se o Código Civil de 1999 (aqui vigente à data da venda).
Esta questão, coloca-se com pertinência, face ao art. 11º do CC, na medida em que os efeitos do contrato se prolongaram no tempo, acabando por ser tocados por leis sucessivas. E equaciona-se, na medida em que há posições que defendem que o Código primitivo não previa a retenção1.
Todavia, a boa solução é aquela que extrai do art. 11º citado a possibilidade de fazer incidir a nova norma ao caso, uma vez que ela versa directamente sobre o conteúdo da relação anterior, independentemente dos factos que lhe deram origem. Assim pensa, por exemplo, PIRES DE LIMA e ANTUNES VARELA 2. É verdade que no tocante às relações contratuais, não falta quem defenda, em termos gerais, a aplicação da lei antiga, em homenagem ao princípio da autonomia da vontade3. Todavia, casos há em que se justifica a aplicação da lei nova, por exemplo, como modo de protecção da parte socialmente mais fraca de uma relação contratual4 ou quando a nova lei traz novos dispositivos de carácter imperativo ou proibitivo respeitantes à violação de um contrato, ou quando em causa está, v.g., a violação de um contrato promessa ocorrida sob a égide da lei nova5.
Por conseguinte, a nova lei aplica-se ao caso em apreço.
E assim, busquemos nela as disposições pertinentes:
“O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados”. Tal é o que textua o art. 744º do C.C.
Um dos casos especiais previstos na lei vem descrito na lei civil do seguinte modo: “Gozam ainda do direito de retenção…o beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do artigo 436º”. É o que diz o art. 745º, nº1, al.f), do C.C.
Finalmente, dispõe o art. 749º do mesmo Código:
“1. Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respectivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor.
2. O direito de retenção sobre coisa imóvel prevalece sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente, a não ser na hipótese figurada na alínea f) do n.º 1 do artigo 745.º, caso em que prevalece o direito que mais cedo se houver constituído”.
3. Até à entrega da coisa são aplicáveis, quanto aos direitos e obrigações do titular da retenção, as regras do penhor, com as necessárias adaptações.
A sentença disse, e disse bem, que o direito de retenção é um direito real de garantia6. Afirmou ainda, uma vez mais correctamente, que o direito de retenção pressupõe a licitude da detenção da coisa, reciprocidade de créditos e conexão substancial entre a coisa retida e o crédito do autor da retenção, para logo concluir que os autores detinham licitamente o “parque” por lhe ter sido entregue pela promitente-vendedora antes da definitiva consumação do contrato de compra e venda. Nada disto está em causa.
Mas o juiz “a quo”, citando um aresto do STJ de 22.06.89, embora reconhecendo que o direito de retenção constitui o promitente-comprador na posse legítima da coisa transmitida, funcionando como uma espécie de penhora legal, e que, como garantia real, não estaria sujeita a registo, valendo pois “erga omnes”, acabou por reconhecer que os autores não tinham direito de crédito sobre os terceiros que adquiriram e registaram a fracção, mas somente sobre a primeira ré, promitente-vendedora. Ou seja, sobrelevou não tanto o valor da propriedade, mas mais o papel da titulação dessa propriedade. Neste caso, o binómio da relação contratual entre AA e 1ª Ré deixaria de relevar em qualquer dos seus efeitos, porque a propriedade da coisa teria já passado para terceira pessoa, titular também de um direito erga omnes, o qual assim prevaleceria sobre o direito de retenção.
Ora, como é sabido, a referida alínea f) do art. 745º do CC reconhece ao beneficiário de um contrato-promessa o direito de retenção sobre uma coisa, desde que tenha obtido a sua tradição pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos termos do art. 436º. Isto é, o crédito que o promitente-comprador pode opor ao promitente-vendedor incumpridor é o valor em dobro da quantia paga a título de sinal7. É portanto um crédito indemnizatório8.
Ponto é saber se o direito indemnizatório legitima a retenção a partir do momento em que a coisa deixe de estar na esfera de disponibilidade do promitente vendedor, ou seja, por outras palavras, se a retenção acompanha a coisa como um poder de sequela. A esta questão a doutrina e jurisprudência vêm dando resposta de uma maneira praticamente pacífica.
Assim, por exemplo, Henrique Mesquita, quando escreve:
"A circunstância, porém, de o credor não poder proceder directa e autonomamente à alienação do objecto de garantia não impede a conceituação do seu direito como um verdadeiro "jus in re". A finalidade precípua de tal direito (a soberania que confere) é a realização, pelo titular, de certo valor pecuniário à custa da coisa sobre que incide". (…)
"Pelo facto de se constituir um direito real limitado, o proprietário da coisa não fica impedido de o alienar; mas o titular daquele direito poderá fazê-lo valer contra o subadquirente. Ele tem sobre a coisa o chamado poder de sequela.
"O poder de sequela (ou de seguimento) existe em todos os direitos reais.
"O titular de qualquer jus in re, sempre que a coisa que constitui o respectivo objecto se encontra sob o domínio de um terceiro, pode actuar sobre ela - pode segui-la - na medida necessária ao exercício do seu direito; como destinar-se a possibilitar o exercício do direito em caso de transmissão, pela titular do jus disponendi, da coisa sobre que o direito incide... o direito real do credor hipotecário ou do proprietário dominante segue a coisa, isto é, pode ser exercido em face do novo proprietário”9
No mesmo sentido, Antunes Varela, para quem:
“Quer isto significar que, em atenção à finalidade precípua da concessão do direito de retenção, o promitente-comprador que seja credor da indemnização prevista no artigo 442 do Código Civil, goza (contra quem quer que seja) da faculdade de não abrir mão da coisa enquanto se não extinguir o seu crédito"10.
Veja-se, por exemplo, no direito comparado, o que disse a Relação de Évora em Portugal:
“A posse do promitente-comprador sobre o prédio objecto do prometido contrato, que lhe foi entregue pelo promitente vendedor, é uma posse titulada e em nome próprio. Tal posse cessa quando ocorre o incumprimento definitivo do contrato-promessa, designadamente pela venda do prédio a terceiro. Nesse caso, o promitente-comprador goza do direito de retenção sobre o prédio, oponível a quem o adquiriu, enquanto não for pago do crédito que resulte do incumprimento do contrato-promessa”11.
E no mesmo sentido, ver a jurisprudência recente do TSI nos Acs. de 17/02/2011, Proc. nº 574/2009-I, de 22/05/2008, Proc. nº 729/200712.
Portanto, o facto de a coisa ter transitado para terceiro adquirente não impede o accionamento da garantia sobre ela, em especial neste caso em que houve a tradição, em que os AA pagaram a totalidade do preço (resposta ao quesito 4º), passaram a estacionar a viatura no lugar de garagem, a limpar o local, a proceder ao pagamento das respectivas despesas de condomínio, de forma exclusiva, sem oposição de ninguém e sempre na convicção de exercerem sobre ela o seu direito de propriedade (respostas aos quesitos 6º a 8º).
Logo, e sem mais delongas, somos a concluir: uma vez que decretada está pela sentença a resolução do contrato-promessa em virtude do incumprimento definitivo da promitente-vendedora e, por via disso, condenada esta (1ª ré) a pagar aos AA o dobro do sinal, acrescido dos juros legais, para estes nasceu um crédito contra aquela, e cuja satisfação lhes é garantida pelo direito de retenção. Direito de retenção que é oponível, não só contra o promitente vendedor incumpridor (transmitente da coisa a terceiros), como contra o próprio terceiro adquirente (ver ainda art. 749º do CC).
Por esta razão, a sentença não pode manter-se nesta parte (mantendo-se, porém, na parte não impugnada).
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando a sentença na parte impugnada e, em consequência, julgar procedente o respectivo pedido formulado na petição e, por via disso, reconhecer aos AA o direito de retenção perante as rés sobre a fracção correspondente ao parque de estacionamento “C36” identificado nos autos.
Custas do recurso pelas recorridas.
TSI, Macau, 02 / 06 / 2011.
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 Neste sentido, o Acórdão do TUI, de 1 de Dezembro de 2004, no Processo n.º 42/2004. Contra, porém, Ac. do TSI, de 11/11/2010, Proc. nº 583/2009.
2 In Código Civil anotado, vol. I, 4.ª ed., p. 61.
3 J. BAPTISTA MACHADO, Sobre a Aplicação no Tempo do Novo Código Civil, Casos de Aplicação Imediata, Critérios Fundamentais, Coimbra, Livraria Almedina, 1968, p. 103 e segs.
4 FERNANDO JOSÉ BRONZE, Lições de Introdução ao Direito, Coimbra, Coimbra Editora, 2002, pag. 778, nota 61.
5 ANTUNES VARELA, anotação em Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 128.º, p. 142 e 143; também ano 120º, pag. 151. Neste sentido, ver acórdão do TUI, de 5/12/2008, Proc. nº 41/2008.
6 V.g, STA, de 23/03/2004, in BMJ nº 435/588; Ac. R. Ev., de 28/05/2008, in BMJ nº 477/588; STJ, de 24/02/1999, Sumários, nº 28/32; STJ de 13/01/2000, in BMJ nº 493/362; STJ de 4/12/2007, Proc. nº 07ª4060, dgsi.net, entre outros.
7 Ac. R.), 18/09/1995, BMJ nº 449/438; STJ, 13/09/2007, Proc. nº 07B2256,dgsi.Net; STJ, de 27/11/2007, Proc. nº 07A3680.dgsi.Net; STJ de 29/04/2008, Proc. nº 08ª745.dgsi.Net.
8 Ac. RE de 22/01/2004, CJ, 1º, pag. 242.
9 Obrigações Reais e Ónus Reais, pag. 77 a 80.
10 In R.L.J., ano 124º, pag. 351. No sentido de que a retenção tem eficácia “erga omnes” ver VAZ SERRA, B.M.J. n. 65, página 177; MENEZES CORDEIRO, Direitos Reais, volume II, 1979, página 1100; CARVALHO FERNANDES, Lições de Direitos Reais, 1996, página 134; Conselheiro ELISEU FERRE IRA, Contrato Promessa de Compra e Venda, in Colectânea - Acórdãos do S.T.J. - ano V (1997), tomo II, página 6.
11 R.E. de 9/03/1993, in CJ 1993, 2º, pag. 187.
12 EM Portugal, ver ainda, com interesse o Ac. do STJ de 13/01/2000, Proc. 99A1078, in BMJ nº 493/362.
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