Processo n.º 57/2011. Recurso jurisdicional em matéria cível.
Recorrente: A
Recorridos: B e C.
Assunto: Procedimento cautelar. Periculum in mora. Matéria de facto. Matéria de direito. Tribunal de Última Instância. Poder de cognição.
Data da Sessão: 14 de Dezembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator), Sam Hou Fai e Lai Kin Hong.
SUMÁRIO:
I – No n.º 1 do art. 326.º do Código de Processo Civil, saber se existe fundado receio de lesão do direito integra um juízo conclusivo de facto ou um juízo de direito, dependendo do caso concreto.
II - Lesão significa dano. É um conceito jurídico, embora de pouca abstracção.
III - Quanto à gravidade da lesão, pretende-se saber se o dano é apreciável. Pode consistir num juízo de facto ou numa questão de direito, dependendo das circunstâncias, designadamente da natureza do dano.
IV - Saber se a lesão ou o dano no direito é dificilmente reparável, pode consistir num juízo de facto ou numa questão de direito, dependendo das circunstâncias, do juízo concreto emitido.
O Relator,
Viriato Manuel Pinheiro de Lima
ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
A requereu procedimento cautelar comum contra B e C, pedindo se ordene os requeridos a absterem-se de praticar quaisquer actos em relação ao prédio sito em Macau, actualmente como o n.º de polícia 8 do [Endereço (1)], nomeadamente aqueles que sejam susceptíveis de perturbar a posse da requerente em relação ao mesmo.
A Ex. ma Juíza do Tribunal Cível indeferiu o requerido por ter considerado não existir fundado receio de lesão grave e de difícil reparação ao direito da requerente, apesar de considerar verificado o requisito da existência provável da posse da requerente sobre o prédio (o direito invocado) e de ter dado como provados os actos de turbação da posse, por parte dos requeridos.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI) negou provimento ao recurso interposto pela requerente.
Inconformada, ainda, recorre a requerente, formulando as seguintes conclusões úteis:
- Ao contrário do que resulta da fundamentação do ora Acórdão ora recorrido a Recorrente efectivamente logrou fazer prova do periculum in mora;
- O presente procedimento cautelar visa a defesa da posse que esta vem exercendo em relação ao prédio, posse que tem como contraponto o direito de propriedade da Recorrente em relação a este imóvel;
- A necessidade de tal defesa resulta premente em face não só dos diversos actos de turbação e violação praticados pelos Recorridos contra a posse da Recorrente, mas também das diversas ameaças que aqueles têm vindo a efectuar e que, a concretizarem-se, levarão a que a Recorrente seja esbulhada com violência do prédio e causarão, com grande probabilidade, a destruição de parte substancial da prova do respectivo direito de propriedade da Recorrente;
- Ora, para além dos actos de perturbação e de esbulho que os Recorridos levaram a cabo contra a posse que a Recorrente vem mantendo há longas décadas sobre o prédio dos factos dados como assentes destacam-se ainda as ameaças que aqueles dirigiram contra esta posse e o respectivo prédio e de demolição do muro que separa este imóvel do prédio com o nº. 10 do [Endereço (1)];
- Estas ameaças, a concretizarem-se, privarão a Recorrente de exercer a retenção ou fruição do prédio ou a possibilidade de continuar tal fruição como o vem fazendo há mais de 75 anos, ou seja impedirão que esta possa sequer exercer o direito que pretende defender com o presente procedimento;
- Concluindo, ao ter negado a providência cautelar requerida pela ora Recorrente, o Acórdão recorrido fez uma errada interpretação dos factos dados como assentes, violando assim o disposto nos artigos 326.°, 332.° e 340.° do Código de Processo Civil.
II – Os factos
Consideraram-se provados os seguintes factos:
A Associação Requerente é uma associação de piedade e de beneficência, sem fins lucrativos, sob a égide do Pagode “X”, sito em Macau, no [Endereço (2)] (antigo [Endereço (2A)]).
Os seus estatutos foram publicados pela primeira vez no Boletim Oficial de (B.O.M.) no ano de 1930, tendo a última alteração ocorrido em 2007 com a respectiva publicação no B.O.M. n.º 2, II Série, de 9 de Janeiro de 2008.
A Requerente encontra-se registada na Direcção dos Serviços de Identificação como pessoa colectiva de utilidade pública administrativa sob o n.º XXX, estatuto que lhe foi atribuído por Portaria n.º 93/74 de 6 de Julho, publicada no B.O.M. n.º 27 de 6 de Julho de 1974.
O prédio sito actualmente com o n.º 8 do [Endereço (1)] tem uma área aproximada de 90 m2, sendo que nas suas traseiras está situado o Pagode.
O referido prédio tem as seguintes confrontações:
- o prédio com o n.º 10 do [Endereço (1)];
- o [Endereço (1)], via pública onde o prédio situa; e
- o prédio com o n.º 6 desta mesma via.
O valor do prédio, no mínimo, deverá cifrar-se em aproximadamente MOP$5.000.000,00.
Os prédios com o n.º 8 e 10 do [Endereço (1)] encontra-se descrito na Conservatória do Registo Predial sob o n.º XXXX.
O prédio com o nº. 6 da [Endereço (1)] encontra-se descrito sob o n.º XXX, de fls. 188v do Livro B4 e inscrito sob o n.º XXXXX o domínio útil a favor da requerente na Conservatória do Registo Predial.
A Requerente submeteu em 1934 à provação da então Direcção das Obras Públicas um projecto de obras que previa a construção, na área total dos prédios com o actual n.º 8 e o n.º 6 do [Endereço (1)], de um edifício único, composto por duas entradas autónomas, correspondendo a cada parte um rés-do-chão, 1.° e 2.º andares.
O projecto em apreço foi aprovado pela Direcção das Obras Públicas que, para o efeito, emitiu a licença para obras n.º 96 de 15 de Março de 1934.
A Requerente construiu a suas expensas o edifício com as características arquitectónicas que constam dos docs. n.º 16 a 18 e que ocupava a totalidade da área que corresponde em conjunto ao prédio com o n.º 8 e ao prédio a que corresponde a descrição predial n.º XXX.
Após a conclusão em 1934 da construção do edifício, a requerente sempre o manteve na sua posse, fruindo-o como sua legítima dona que o é.
Sendo reconhecida como tal pelas pessoas que residiam nas cercanias deste imóvel e também pelas pessoas que frequentam o Pagode sito nas suas traseiras.
A Requerente sempre procedeu, ao longo de todos estes anos, a sua expensas e por sua iniciativa e até à respectiva demolição, à manutenção do edifício aí implantado.
Nomeadamente procedeu, quando necessário, à pintura da fachada exterior e à reparação e substituição de portas e janelas.
A Requerente instalou no respectivo edifício uma escola que funcionava sob a sua direcção.
Deu-o também de arrendamento, recebendo as respectivas rendas dos inquilinos.
O último inquilino do edifício implantado no prédio foi um antiquário chinês que aí se manteve como arrendatário, pagando as respectivas rendas à Requerente, até à demolição desta construção ocorrida em 2005.
O avançado estado de degradação do edifício nele implantado exigia uma intervenção estrutural e de fundo, a Requerente optou não realizar em face dos seus elevados custos.
Por força do elevado estado de degradação que, após efectuar uma vistoria ao prédio e se ter reunido com a Requerente para discutir este assunto, a Direcção dos Serviços de Solos, Obras Públicas e Transportes (DSSOPT) intimou a Requerente, na sua qualidade de proprietária do prédio, a proceder à demolição do edifício nele implantado.
Todos os trâmites legais e administrativos tendentes à mencionada demolição foram tratados pela DSSOPT directamente com os responsáveis da Requerente.
No auto de vistoria com vista à sua demolição do edifício realizada pela DSSOPT, refere-se que se está perante uma mesma construção, em virtude do terraço e da estrutura do n.º 6 e do n.º 8 serem comuns.
O edifício implantado no terreno com o n.º 6 e 8 foi demolido no ano 2005, apenas mantendo parte da respectiva fachada e das paredes laterais e traseiras.
Após a demolição do edifício, a Requerente passou a utilizar o referido espaço para guardar materiais diversos a si pertencentes.
Tendo instalado no prédio com o n.º 8 um portão de metal, destinado a vedar o acesso ao mesmo por parte de estranhos, do qual era a única a dispor das respectivas chaves.
A requerente, através dos seus responsáveis ou funcionários, desloca-se periodicamente ao referido prédio a fim de o inspeccionar e de se assegurar do seu estado.
A Requerente é reconhecida em geral como dono deste imóvel pelas pessoas que vivem nesta zona ou que conhecem a Requerente, sejam seus associados ou não.
Agindo sempre, com a exclusão de outrem, com a intenção e a convicção de se tratar da sua proprietária.
De forma ininterrupta.
Com a consciência de não estarem a lesar o direito de outrem.
E sem violência nem oposição de ninguém.
Nos inícios do mês de Outubro do corrente dois indivíduos, que afirmaram estar a agir a mando do 1.º Requerido, na sua qualidade de dono do prédio deslocaram-se às cercanias do prédio, tendo exigido ao funcionário da Requerente que zela pela sua, manutenção a remoção de todos os materiais existentes no interior do prédio e que este lhes fosse entregue de imediato.
Ainda foi fornecido ao funcionário da Requerente o contacto telefónico do 1° Requerido a fim de este pessoalmente confirmar as indicações transmitidas pelos ditos, indivíduos.
Após reportar este acontecimento aos responsáveis da Requerente, o aludido funcionário, devidamente mandatado por aqueles, contactou telefonicamente o 1.° Requerido, esclarecendo-o da falta de fundamento das suas pretensões, uma vez que o prédio é pertença da Requerente há várias décadas, nada tendo a ver com o prédio n.º 10 do [Endereço (1)].
No dia 25 de Outubro do 2010, foi publicado um anúncio publicado no jornal Macau Daily News no qual a 2ª Requerida, arrogando-se na qualidade de procuradora do titular do prédio descrito sob o n.º XXXX, exigia também a desocupação e a remoção dos materiais existentes no prédio sob a pena de recorrer a outros meios ao seu alcance.
No dia 4 de Novembro do 2010, dois indivíduos alegando estar a agir a mando do 1.º Requerido mas também da 2.ª Requerida, deslocaram-se ao prédio.
Nesta vez, exibindo uma busca predial relativa à descrição n.º XXXX e invocando os números policiais ali constantes, exigiram uma vez mais ao funcionário da requerente que lhes fosse entregue a chave do portão metálico que dá acesso exclusivo ao prédio.
O funcionário da Requerente voltou a explicar aos ditos indivíduos que o prédio é de propriedade da Requerente há pelo menos mais de 75 anos pelo que lhes negou o acesso ao mesmo.
Os referidos indivíduos responderam em tom duro e ameaçador dizendo que iriam arrombar o portão metálico que dá acesso ao prédio e proceder à demolição do muro que separa este imóvel do prédio com o n.º 10 do [Endereço (1)].
Esta ameaça foi de imediato participada à Polícia de Segurança Pública (PSP) pela Requerente.
No dia 13.11.2010, numa das suas vistas de rotina ao prédio, a Requerente foi surpreendida com a circunstância de a fechadura que havia instalado no portão deste imóvel ter sido arrombada e substituída por outra.
Também este acontecimento foi participado à PSP pela Requerente.
A requerente voltou a proceder à substituição da fechadura do portão metálico que lhe dá acesso, recuperando o acesso ao mesmo.
A Requerente, em 16 de Novembro de 2010, fez publicar um comunicado explicando a situação do imóvel em apreço, nomeadamente que o mesmo lhe pertence, e advertindo a todos os interessados, mormente a 2.ª Requerida, para se absterem de violar os direitos da Requerente enquanto proprietária deste imóvel sob pena de recorrer a todos os meios legais ao seu alcance para proteger esses direitos.
O edifício erigido no prédio com o n.° 10 do [Endereço (1)] foi demolido no ano de 2000.
Cerca do início do ano de 2006, o 1.º requerido adquiriu, mediante a apresentação do intermediário na compra e venda de imóveis, um terreno, sito em Macau, no [Endereço (1)] n.ºs 8-10, encontra-se descrito sob o n.º XXXX, com a finalidade de investimento.
Na dada altura, o domínio útil do aludido terreno foi inscrito a favor de D e E na Conservatória do Registo Predial de Macau sob o n.º XXXXXG.
No momento em que o 1.º requerido adquiriu o referido terreno, não se encontrava nele nenhum edifício, mas existiam aí muros arruinados e ervas em todo o lado.
Em 4 de Abril de 2006, o 1.º requerido e os proprietários daquele terreno, D e E, celebraram a escritura pública de compra e venda do dito terreno.
Em 7 de Abril de 2006, quanto à aquisição do terreno, o requerido requereu junto da Conservatória do Registo Predial de Macau o processamento do registo predial.
No início do ano de 2010, através do intermediário na compra e venda de imóveis, o 1º requerido tomou conhecimento de que alguns compradores no mercado estavam interessados em adquirir o terreno em apreço.
Em 22 de Junho de 2010, o 1.° requerido e a C (ora 2.a requerida) celebraram o contrato-promessa de compra e venda do referido terreno.
No dia da celebração do dito contrato, o 1.° requerido já tinha recebido o sinal pago pela 2.a requerida, no montante de HKD2.500.000,00; e a quantia em falta, no valor de HKD5.000.000,00, seria integralmente paga quando o 1° requerido entregasse a escritura de propriedade ou passasse uma procuração com poder de disposição do bem à 2a requerida, no prazo de 60 dias, contado a partir da celebração do contrato-promessa.
Em 23 de Agosto de 2010, em resposta à solicitação da 2.a requerida, o 1.° requerido concordou com que a transacção do referido terreno fosse realizada, em conformidade com o contrato-promessa de compra e venda do terreno, sob forma de procuração com poder de disposição do bem.
Na emissão da procuração, a 2.a requerida pagou ao 1.° requerido a quantia em falta do preço de compra e venda do terreno em causa.
Em 27 de Fevereiro de 2006, a DSSOPT notificou D e E, que na altura eram proprietários do n.º 8 do [Endereço (1)], da cobrança de despesas resultantes da demolição do edifício arruinado, implantado no n.º 8 do [Endereço (1)].
Os proprietários, D e E, paragem, cada um, as despesas da obra de demolição, no valor de MOP25.750,00.
III – O Direito
1. As questões a resolver
Trata-se de saber se o Acórdão recorrido violou o disposto nos artigos 326.º, n.º 1, 332.º, n.º 1 e 340.º do Código de Processo Civil, ao decidir que não haver fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da recorrente (a posse do direito de propriedade do prédio n.º 8 do [Endereço (1)]), por via dos actos imputados aos recorridos.
2. Providências cautelares. Requisitos. Lesão grave e dificilmente reparável
Como é sabido, as providências cautelares são medidas provisórias destinadas a assegurar a efectividade do direito ameaçado durante o tempo que demorar a causa principal, de que o procedimento cautelar é dependência (artigos 326.º, n.º 1 e 328.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Por isso, o procedimento cautelar tem natureza urgente (artigo 327.º do Código de Processo Civil).
Para tal, o requerente da providência tem de demonstrar dois requisitos (artigo 332.º, n.º 1, do Código de Processo Civil):
- A probabilidade séria da existência do direito ameaçado;
- Ser suficientemente fundado o receio da lesão do direito.
Não é, porém, qualquer lesão do direito que justifica a tomada da providência, apenas quando a lesão seja grave e dificilmente reparável (artigo 326.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
No caso dos autos, é incontrovertido o primeiro requisito, ou seja, o direito da requerente/recorrente, que é a posse do direito de propriedade do prédio n.º 8 do [Endereço (1)], em Macau.
Resta saber se há ou não receio de lesão grave e dificilmente reparável na mencionada posse da requerente.
Ora, no nosso Acórdão de 23 de Julho de 2008, no Processo n.º 23/2008, depois de recordarmos que em 2.º grau de recurso (3.º grau de jurisdição), em matéria cível, o TUI não dispõe, em regra, de poder de cognição em matéria de facto (arts. 47.º, n.º 2, da Lei de Bases da Organização Judiciária e 649.º do Código de Processo Civil), acrescentámos que parece indiscutível que saber se um ou mais factos constituem fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito, o chamado periculum in mora (n.º 1 do art. 326.º do Código de Processo Civil) integra uma conclusão de matéria de facto e citámos dois processualistas nesse sentido1.
Apesar da aparente extensão da regra então formulada, nesse caso apreciado pelo Acórdão de 23 de Julho de 2008, acabámos por conhecer da questão suscitada, por termos entendido que o Acórdão ali recorrido para chegar a tal conclusão (inexistência de receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente) não se limitou a fazer a avaliação de saber se os factos constituíam receio de lesão grave e dificilmente reparável ao direito da requerente, mas estendeu a sua apreciação a outros domínios, que integram questões de direito e relativamente às quais o TUI pode e deve conhecer.
Assim, visto que aquela pronúncia – no sentido de que concluir, se os factos em causa, integram o receio de lesão grave e dificilmente reparável do direito, é uma questão de facto e não de direito – não foi determinante para a decisão do caso concreto em apreciação no Acórdão de 23 de Julho de 2008, isto é, constituiu mero obiter dictum dessa decisão, afigura-se-nos impor-se voltar ao tema.
3. Matéria de facto e matéria de direito
Em Direito Processual o intérprete, frequentemente, tem necessidade de operar a distinção entre questões de facto e questões de direito.
Fundamentalmente, porque o processo visa a obtenção de sentença que aprecie, com força de caso julgado, uma pretensão deduzida em juízo (artigo 1.º, n.º 1, do Código de Processo Civil).
Ora, a sentença consiste na interpretação e aplicação de normas jurídicas aos factos considerados provados, concluindo pela decisão final (artigo 562.º, n.º 2, do Código de Processo Civil). É o mesmo que dizer que a sentença aplica o direito aos factos provados.
Assim, a distinção entre facto e direito é crucial em vários actos processuais, além do mais porque, em princípio, a adução de factos para o processo constitui ónus das partes (artigo 5.º do Código de Processo Civil), enquanto que o conhecimento do direito é oficioso pelo tribunal (artigo 567.º do Código de Processo Civil), sem prejuízo do contributo das partes para a sua correcta aplicação, tanto nos articulados, como nas alegações.
A mencionada distinção reflecte-se, como se disse, em vários actos processuais, mas avultando no que se refere à matéria de facto, a fase dos articulados, destinada fundamentalmente a expor os factos que servem de fundamento à acção e à defesa e a fase do saneamento, no que se refere, primeiro ao convite ao aperfeiçoamento dos articulados, visando corrigir insuficiências e imprecisões na exposição da matéria de facto alegada (artigo 427.º, n.º 3, do Código de Processo Civil) e depois seleccionar os factos relevantes, assentes e contravertidos, estes com vista à sua prova (artigo 430.º do Código de Processo Civil) e julgamento de facto (artigo 556.º do Código de Processo Civil) por um tribunal que pode ser diverso do que sentencia a final.
No que se refere à fase de recurso a distinção entre matéria de facto e de direito é relevante sobretudo para fixar o âmbito do conhecimento do TUI, que ao contrário do TSI, que conhece das duas matérias, só pode conhecer de matéria de direito (artigo 649.º do Código de Processo Civil).
Antes de procurarmos fixar a distinção entre matéria de facto e de direito, convém prevenir que, como em tantas outras questões do direito processual – como, por exemplo, no que respeita ao conceito de causa de pedir - não é forçoso que os conceitos de facto e de direito que operem nos vários actos processuais tenham necessariamente de coincidir. Isto é, pode perfeitamente acontecer que o que é questão de facto para efeitos da elaboração da base instrutória (artigo 430.º do Código de Processo Civil) e produção de prova, não o seja para efeitos do poder de cognição do TUI, em recurso de decisão do TSI.
Foi isto que foi salientado por A. CASTANHEIRA NEVES2 quando, referindo-se ao recurso de revista – o recurso para o Supremo Tribunal de Justiça português, com fundamento em violação de lei substantiva – salientava:
“Num dos seus momentos metódicos é, desde logo, actualmente unânime a doutrina. A delimitação do objecto daquele recurso não pode mais pensar-se a partir do postulado da coincidência entre ele e uma discriminação directamente inferida da apriorística distinção entre «o facto» e «o direito»; antes o fundamento daquela delimitação ter-se-à de encontrar imediatamente, e apenas, no fim e na função institucional ou jurídico-processual do recurso, e o seu critério unicamente também nos termos jurídico-positivos e processuais em que esse fim e função foram instituídos”.
É isso também que ensinam ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA 3:
“Nenhuma razão impõe que o perímetro abrangente ou delimitativo da matéria de facto, na elaboração do questionário, coincida ponto por ponto com a delimitação da matéria de facto referida ou pressuposta por outras normas, a propósito de problemas diferentes, como sejam, v.g., a fixação do âmbito do recurso de revista – artigo 721.º, 2 - ou a distinção, hoje superada aliás, entre o erro de facto e o erro de direito ...
A imposição de um conceito unitário (de matéria de facto e, consequentemente, da matéria de direito) que abjurasse por completo da diversidade substancial de circunstâncias e de valores em que a distinção é feita, dentro das várias normas que formalmente a invocam, só poderia basear-se numa pura atitude de conceitualismo lógico-formal, também hoje definitivamente ultrapassada”.
Por outro lado, e com alguma conexão com o que se acaba de expor, importa ainda atentar que, como explica ANSELMO DE CASTRO,4 citando ROSENBERG, “a linha divisória entre facto e direito não tem carácter fixo, dependendo em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa; o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”.
Pois bem, o recurso para o TUI, tendo apenas por fundamento a violação ou a errada aplicação da lei substantiva ou da lei de processo (já que a nulidade do acórdão recorrido também consiste numa violação da lei de processo), nos termos do artigo 639.º do Código de Processo Civil, explica-se “pela função de harmonização jurisprudencial sobre a interpretação e aplicação da lei que é característica e própria dos supremos tribunais”5.
A questão de facto é a questão do caso concreto, enquanto que as questões de direito são aquelas que na sentença tenham natureza juridicamente geral ou fundamental.6
Compreende-se, assim, que não deva o TUI conhecer de questões casuísticas, insusceptíveis de se reproduzir noutros casos e noutros contextos, que são característica da matéria de facto.
4. Conceitos de matéria de facto e matéria de direito
O facto é um acontecimento ou circunstância do mundo exterior ou da vida íntima do homem, pertencente ao passado ou ao presente, concretamente definido no tempo e no espaço, apresentando-se no processo com as características de objecto.7
A doutrina também não tem dúvidas de que além dos factos externos e reais, também se inclui no âmbito da matéria de facto, os factos respeitantes à vida psíquica e sensorial da pessoa e os factos hipotéticos, pertinentes a ocorrências virtuais.8
É questão de direito tudo o que respeita à interpretação e aplicação da lei.
Segundo a opinião de PAULO CUNHA9 “Há matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate unicamente de fixar a interpretação duma simples palavra de lei; há matéria de facto quando o apuramento das realidades se faz todo à margem da aplicação directa da lei, isto é, quando se trata de averiguar factos cuja existência ou não existência não depende da interpretação a dar a nenhuma norma jurídica”.
No que concerne às máximas de experiência, ALBERTO DOS REIS10 distinguia: se se trata de regras de experiência que o tribunal utilizou na apreciação de provas, é matéria de facto; se estamos perante regras de experiência que o tribunal se serviu para interpretar a lei ou para as aplicar aos factos, é matéria de direito, sujeitas à apreciação do tribunal de revista.
ANTUNES VARELA parece não subscrever a opinião, um pouco simplista, de que há matéria de direito sempre que, para se chegar a uma solução, se torna necessário recorrer a uma disposição legal, ainda que se trate unicamente de fixar a interpretação duma simples palavra de lei.
O referido Professor estudou a questão dos conceitos indeterminados e, tomando por base a função concreta da distinção entre facto e direito, atrás aludida, pondera a sua utilização na elaboração da especificação e questionário (que corresponde actualmente ao despacho do artigo 430.º, dos factos assentes e base instrutória), para dizer que seria impensável quesitar – a fim de ser respondido pelo tribunal no julgamento da matéria de facto - se a falta de interesse do credor no cumprimento parcial é justificada (artigo 782.º do Código Civil) ou, a propósito dos pressupostos do divórcio litigioso (artigo 1635.º do Código Civil) se a violação do dever conjugal pelo réu é grave e reiterada, de tal modo que comprometa a possibilidade de vida em comum11. Isto porque a noção de factos para o mencionado fim é a produção de prova.
O mesmo Professor examina a utilização dos mencionados juízos de valor ou conceitos indeterminados, tendo em vista a distinção entre matéria de facto e de direito, agora para efeitos do recurso para o tribunal supremo12.
«São três as hipóteses analisadas por Antunes Varela. Uma primeira situação é aquela que se verifica “se, por detrás da formulação do juízo de valor, existe qualquer regra de direito, explícita ou implícita, a limitar o prudente arbítrio de julgador” (12 col. esq.). Nesta eventualidade (de que é exemplo o critério da primazia da impressão do declaratário que consta do art.º 236.º, n.º 1, CC13), cabe recurso de revista com fundamento em erro na aplicação do critério legal (12 col. esq.). Diferente é, contudo, a solução para as duas outras hipóteses.
Uma destas refere-se aos “casos em que, não havendo nenhuma regra de direito no sopé do juízo de valor, a lei confia a sua aplicação ao prudente critério do julgador” (13 col. Esq.), como acontece, por exemplo, na apreciação de uma cláusula penal como manifestamente excessiva. “Nos casos deste tipo, em que a lei apela para o bom senso ou o sentido de equidade do julgador, não tanto como perito de leis, mas como homem prudente, como pessoa de critério ou como indivíduo de rectos sentimentos, [...] não tem cabimento o recurso de revista” (13 col. esq.). São duas as justificações apresentadas para esta exclusão: - uma é a equiparação desses juízos à resoluções proferidas nos processos de jurisdição voluntária e a respectiva inadmissibilidade de recurso para o Supremo (art.º 1411.º, n.º 214); - a outra é que “na estrita aplicação destes juízos de valor, de substância emocional, sentimental ou retórica, pode haver dureza, complacência, incoerência, falta de razoabilidade ou de sensibilidade, mas não propriamente erro de interpretação ou de aplicação de qualquer regra do mundo lógico ou racional; e só o vício lógico desta espécie pode fundamentar o recurso de revista” (13 col. esq.).
Finalmente, Antunes Varela analisa o problema da admissibilidade da revista quanto aos “juízos de valor radicados no próprio terreno do direito, como o da conduta dolosa, a actuação negligente, a causa do dano, a causa adequada de certo prejuízo, a ofensa da boa fé, a dívida contraída em proveito comum do casal e tantos outros” (13 col. dir.). Também quanto a estes juízos Antunes Varela nega a admissibilidade da revista, por ser esta “a solução que melhor corresponde ao espírito do sistema vigente” e porque “o artigo 721.º, n.º 215 [...] coloca ao lado do erro de interpretação ou de determinação da norma substantiva aplicável, o erro da aplicação da lei – não a deficiente, a incorrecta, a injusta ou a desacertada aplicação da norma” (13 col. dir.)».
Se quanto ao primeiro grupo de casos nada temos a objectar quanto aos resultados a que o ilustre Professor chegou, já quanto aos 2.º e 3.º grupos não podemos subscrever as suas conclusões, pelo menos nalgumas situações, como por exemplo, apurar, a partir dos factos provados, se a conduta é dolosa ou a actuação negligente, se houve ofensa da boa fé, se a dívida foi contraída em proveito comum do casal. Trata-se de questões de direito.
É que a deficiente, a incorrecta, ou a desacertada aplicação da norma são, para todos os efeitos, errada interpretação da lei (artigo 639.º do Código de Processo Civil), como tal podendo ser objecto de recurso para o TUI.
5. Fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável no direito
A expressão legal relativamente à qual importa concluir se se trata de matéria de facto ou de direito, para efeitos do conhecimento, em recurso cível, pelo TUI, é o fundado receio de lesão grave e dificilmente reparável no direito que se pretende acautelar no procedimento cautelar.
Temos os seguintes elementos a considerar:
-Fundado receio de lesão;
- lesão;
- gravidade da lesão;
- difícil reparação da lesão.
Lesão significa dano. Este pode consistir numa ofensa à integridade física ou moral de uma pessoa, numa demolição de um imóvel, na subtracção de um bem, na ocupação de um imóvel, etc. É um conceito jurídico, embora de pouca abstracção. A menos que se trate de lesão jurídica, em que há apenas uma tarefa pura e simples de interpretação e aplicação do direito.
Por fundado receio está em causa saber se é justificada a previsão de lesão no direito.
Afigura-se-nos poder ser um juízo conclusivo de facto ou um juízo de direito, dependendo do caso concreto.
Quanto à gravidade da lesão, pretende-se saber se o dano é apreciável. Pode consistir num juízo de facto ou numa questão de direito, dependendo das circunstâncias, designadamente da natureza do dano.
No que toca a saber se a lesão ou o dano no direito é dificilmente reparável, também valem aqui as considerações anteriores, pode consistir num juízo de facto ou numa questão de direito, dependendo das circunstâncias, do juízo concreto emitido.
Aproximemo-nos do caso dos autos.
6. O caso dos autos
Como dissemos, a possuidora provou abundantemente actos de perturbação da sua posse e actos de tentativa de esbulho, isto é de apossamento do prédio, por parte do 1.º requerido e de pessoas a seu mando.
Na verdade, provou-se que:
- Nos inícios do mês de Outubro de 2010 dois indivíduos, que afirmaram estar a agir a mando do 1º Requerido, na sua qualidade de dono do prédio deslocaram-se às cercanias do prédio, tendo exigido ao funcionário da Requerente que zela pela sua, manutenção a remoção de todos os materiais existentes no interior do prédio e que este lhes fosse entregue de imediato.
- No dia 25 de Outubro do 2010, foi publicado um anúncio publicado no jornal Macau Daily News no qual a 2ª Requerida, arrogando-se na qualidade de procuradora do titular do prédio descrito sob o n.º XXXX, exigia também a desocupação e a remoção dos materiais existentes no prédio sob a pena de recorrer a outros meios ao seu alcance.
- No dia 4 de Novembro do 2010, dois indivíduos alegando estar a agir a mando do 1º Requerido mas também da 2ª Requerida, deslocaram-se ao prédio.
- Nesta vez, exibindo uma busca predial relativa à descrição n.º XXXX e invocando os números policiais ali constantes, exigiram uma vez mais ao funcionário da requerente que lhes fosse entregue a chave do portão metálico que dá acesso exclusivo ao prédio.
- O funcionário da Requerente voltou a explicar aos ditos indivíduos que o prédio é de propriedade da Requerente há pelo menos mais de 75 anos pelo que lhes negou o acesso ao mesmo.
- Os referidos indivíduos responderam em tom duro e ameaçador dizendo que iriam arrombar o portão metálico que dá acesso ao prédio e proceder à demolição do muro que separa este imóvel do prédio com o n.º 10 do [Endereço (1)].
- Esta ameaça foi de imediato participada à Polícia de Segurança Pública (PSP) pela Requerente.
- No dia 13.11.2010, numa das suas vistas de rotina ao prédio, a Requerente foi surpreendida com a circunstância de a fechadura que havia instalado no portão deste imóvel ter sido arrombada e substituída por outra.
Face a estes factos, há ou não receio de lesão grave e dificilmente reparável na posse da requerente?
É manifesto que há. Se as duas requeridas tentaram apossar-se do prédio, não há razão nenhuma para pensar que não voltarão a tentar os seus intentos, se não forem intimados judicialmente para não o fazerem.
E a lesão é dificilmente reparável, porque depois de ocorrida não é possível fazer desaparecer os actos de lesão. É certo, que no futuro, após eventual decisão favorável à possuidora na acção principal, provavelmente, a lesão cessará. Mas a providência cautelar não visa esse futuro longínquo, mas o futuro próximo, enquanto não se decide a acção principal. Ora, os actos de esbulho ou perturbação da posse que poderão ocorrer se não for tomada a providência, lesionam o direito da recorrente de maneira grave porque a impedem de exercer a posse e são dificilmente reparáveis porque já não se podem suprimir.
Nem se diga que não há perigo de lesão porque a recorrente voltou a colocar uma fechadura, no portão.
E quem nos garante que, na ausência de intimação judicial, os requeridos /recorridos não voltam a arrombar o portão?
É, pois, procedente o recurso.
IV – Decisão
Face ao expendido, concedem provimento ao recurso e à providência solicitada, intimando os requeridos de se absterem de praticar quaisquer actos em relação ao prédio n.º 8 do [Endereço (1)], nomeadamente aqueles que sejam susceptíveis de perturbar a posse da requerente em relação ao mesmo.
Custas pelos recorridos nas três instâncias.
Macau, 14 de Dezembro de 2011.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Sam Hou Fai –
Lai Kin Hong
1 J. ALBERTO DOS REIS, Código de Processo Civil Anotado, volume I, Coimbra Editora, 1948, p. 678 e J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2001, p. 37.
2A. CASTANHEIRA NEVES, Questão-de-Facto-Questão-De-Direito ou O Problema Metodológico da Juridicidade (Ensaio de Uma Reposição Crítica), I A Crise, Coimbra, Almedina, 1967, p. 32 e 33, nota(15).
3 ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA e SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, Coimbra, Coimbra Editora, 1985, 2.ª ed., p. 415
4 A. ANSELMO DE CASTRO, Direito Processual Civil Declaratório, Coimbra, Almedina, 1981, Volume III, p. 270.
5 M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos sobre o Novo Processo Civil, Lisboa, Lex, 2.ª edição, 1997, p. 421 e 422.
6 A. CASTANHEIRA NEVES, Questão-de-Facto-Questão-De-Direito ..., p. 22, nota (11).
7 LEBRE DE FREITAS, A Confissão no Direito Probatório, Coimbra, Coimbra Editora, 1991, p. 44.
8 FERNANDO AMÂNCIO FERREIRA, Manual dos Recursos em Processo Civil, Coimbra, Almedina, Coimbra, 9.ª edição, 2009, p. 265.
9 PAULO CUNHA, Processo Comum de Declaração, Braga, 1940, 2.º vol., p. 35 e nota.
10 J. ALBERTO DOS REIS, Breve Estudo Sobre a Reforma do Processo Civil e Comercial, Coimbra Editora, 1933, 2.ª edição, p. 594.
11 ANTUNES VARELA, Os Juízos de Valor da Lei Substantiva, o Apuramento dos Factos na Acção e o Recurso de Revista, Colectânea de Jurisprudência, ano XX, 1995, tomo IV, p. 12.
12 Por facilidade utilizamos a condensação do estudo mencionado na nota anterior feita por M. TEIXEIRA DE SOUSA, Estudos..., p. 435.
13 Refere-se ao Código de 1966.
14 Refere-se ao Código de 1961.
15 Refere-se ao Código de 1961.
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Processo n.º 57/2011
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Processo n.º 57/2011