Processo nº 998/2009
Data do Acórdão: 26MAIO2011
Assuntos:
Acção executiva
Credores reclamantes
Impulso processual
SUMÁRIO
Há situações em que, por razões da ordem muito variada, o exequente perde o interesse ou não está estimulado a promover activamente a execução
Assim, na circunstância da inércia por parte do exequente, há que reconhecer a necessidade de acautelar os interesses dos credores reclamantes, especialmente quando estiveram em jogo credores cujo crédito já seja exigível (apesar de não ser necessária a exigibilidade do crédito para ser admitido credor à execução – artº 754º/3) e credores que tendo instaurado separadamente acção executiva mas sustada nos termos do disposto no artº 764º do CPC.
Estando em regra legalmente permitidos e em perfeitas condições para assumir autonomamente o papel do exequente “principal” numa acção já instaurada ou numa execução autónoma a intentar conforme a melhor forma da satisfação dos seus interesses, estes credores, uma vez citados para reclamar os seus créditos numa execução “alheia”, não devem ser colocados numa posição processual intoleravelmente subalternizada.
Intoleráveis são as situações em que o exequente, usando ou abusando do princípio do dispositivo, deixa estagnada a instância no seu exclusivo interesse.
Assim, tendo em conta as razões subjacente ao instituto de reclamação de créditos no âmbito da execução, deve ser atribuída a credores reclamantes certa faculdade de impulsionar o andamento do processo, quando o exequente “principal” deixar de o fazer.
O relator
Lai Kin Hong
Processo nº 998/2009
Acordam na Secção Cível e Administrativa do Tribunal de Segunda Instância da RAEM
I
Nos autos de reclamação de créditos que correm por apenso aos autos principais de acção executiva nº CV2-07-0046-CEO que correm os seus termos no 2º Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base, o credor reclamante A BANK (HONG KONG) LIMITED veio requerer, ao abrigo do disposto nos artºs 780º e 784º do CPC, que seja ordenada a venda judicial.
Por despacho datado de 30ABR2009 proferido pelo Exmº Juiz titular do processo a fls. 644 dos autos principais, o requerimento deduzido pelo credor A foi indeferido nos seguintes termos:
Fls. 641: indefere-se o requerimento de prosseguimento da execução a impulso do credor reclamante por a execução a impulso do exequente não se mostrar ainda extinta (art. 814º, nº 2 do Código de Processo Civil).
Não se conformando com essa decisão que lhe negou a requerida venda judicial, veio recorrer da mesma decisão para esta instância concluindo e pedindo:
1. O presente recurso tem por objecto o despacho de fls. 644 dos autos que indeferiu o requerimento de prosseguimento da execução a impulso do ora Recorrente e Credor Reclamante alegadamente pelo facto de “a execução a impulso do exequente não se mostrar ainda extinta (art. 814º, nº 2 do Código de Processo Civil)”;
2. É pois desta decisão que vem interposto o presente recurso, isto por, no modesto entendimento do ora Recorrente, aí se ter incorrido em erro de julgamento e se ter violado diversas normas legais, o que acarreta a ilegalidade da dita decisão;
3. Através do despacho ora recorrido, o Tribunal a quo entendeu que o ora Recorrente e Credor Reclamante, apesar de ter o seu crédito admitido na presente execução, e não obstante a inércia do Credor Exequente em promover a venda dos bens penhorados por sua nomeação, sobre os quais o ora Recorrente e Credor Reclamante tem hipoteca, não pode prosseguir a presente execução, por a mesma não se mostrar ainda extinta;
4. Tal significa que, por um lado, o ora Recorrente e Credor Reclamante não pode, nos termos do artigo 764.º n.º 1 do CPC, promover a venda desses bens em execução própria e, por outro, não poderia promovê-la no presente processo até que a presente execução se mostrasse extinta;
5. Porém, no modesto entendimento do ora Recorrente, o despacho ora recorrido atenta contra o princípio da economia processual e a estrutura dinâmica em que assenta o processo executivo, bem como contra o direito do ora Recorrente e Credor reclamante de, em prazo razoável, obter a realização coerciva do seu direito;
6. Na verdade, com a reclamação de créditos, além do exequente, passa a haver outros interessados na execução, que possuem interesses semelhantes aos do exequente, não podendo tais interesses deixar de estar protegidos pela lei;
7. Os poderes processuais que assistem ao credor reclamante encontram-se expressamente previstos na lei, outros porém, são aplicáveis por analogia;
8. Tem-se entendido na doutrina e jurisprudência portuguesas, que não é justo nem exigível ao exequente que vê sustada a sua execução por penhora anterior e se vê obrigado a reclamar noutra execução, ter que suportar, sem nada poder fazer, até à extinção da execução, a inércia, desinteresse ou desistência deste exequente, devendo aplicar-se por analogia, o regime de protecção ao credor reclamante previsto nos artigos 885.º e 920.º do CPC de Portugal, correspondentes aos artigos 778.º e 814.º do CPC de Macau;
9. Com efeito, o credor reclamante tem o direito de promover o andamento dos termos da acção executiva em que apresentou a sua reclamação;
10. Pois, de outra forma, no caso em apreço, o ora Recorrente e Credor Reclamante, não obstante ter hipoteca sobre os bens penhorados, ficaria impedido de diligenciar pela cobrança do seu crédito, pelo menos com a celeridade devida, na medida em que, por um lado, a sua própria execução está sustada, não a podendo impulsionar, por outro, teria que aguardar a extinção da instância da execução onde reclamou o seu crédito e em que a penhora é anterior para a poder renovar nos termos do artigo 814.º do CPC, solução que atentaria, além do mais, contra o princípio da economia processual e contra o direito de o ora Recorrente e Credor Reclamante, em prazo razoável, obter a realização coerciva do seu direito.
TERMOS EM QUE deverá ser dado provimento ao presente recurso, revogando-se o despacho ora recorrido e substituindo-se por outro a deferir o requerimento de prossecução dos autos, apresentado a fls. 641 pelo ora Recorrente e Credor Reclamante.
Para efeitos do disposto no artigo 615.º do CPC, requer-se ainda a V. Exa. que seja extraída certidão de fls. 641, 644, 651, 652 e 654 dos autos para instruir o presente recurso.
Admitido o recurso e devidamente tramitadas as alegações, foi proferido pelo Exmº Juiz autor da decisão recorrida o seguinte despacho de sustentação:
Por se continuar a entender que1 a execução só pode ser impulsionada pelo credor reclamante depois de proferida a sentença de extinção da execução a impulso do exequente e antes do trânsito em julgado de tal sentença, mantém-se a decisão recorrida.
Acresce que, mesmo que se entenda que o art. 814º, nº 2 do Código de Processo Civil confere ao credor reclamante a possibilidade de impulsionar a execução em momento anterior, tal possibilidade depende de o crédito ser exigível. Porém, do requerimento de reclamação, designadamente do art. 3º, resulta que o crédito do recorrente ainda não será exigível.
A norma que depois da sentença permite a recuperação do poder jurisdicional extinto terá natureza excepcional, o que inviabilizará a aplicação analógica (art. 10º do Código Civil).
Entendendo-se que o credor não é co-exequente, uma vez que tem interesses opostos aos do exequente, pois que ambos se pretendem pagar pelo preço da venda dos mesmos bens, dirse-á que a alteração subjectiva da instância2, por imposição das regras da parte geral do Código de Processo Civil, maxime do art. 212º, é excepcional, e, por isso, também não permite a aplicação analógica.
Só o credor que não ficou na inércia merece beneficiar da energia processual e das despesas do exequente3. Mas não pode prejudicar o exequente diligente, pelo que o credor que tem garantia com preferência sobre a penhora não pode pretender vender em momento desfavorável do mercado se o exequente, legitimamente, pretende aguardar tempo razoável e com fundamento em favorável evolução do mercado, ganhado o executado, o exequente e os credores com a obtenção de melhor preço. Se, por exemplo, hoje o bem a vender vale 10 e o crédito reclamado e graduado para ser pago em primeiro lugar é de 10, o credor não se interessa em obter melhor preço, uma vez que com a venda satisfaz o seu crédito. Por que razão esperar pelo exequente que, tendo expectativa de vender por 12 e, assim, receber o seu crédito exequendo, pretende vender, com razoabilidade e com respeito pelas regras da instância que só ele moveu, mais tarde (ele que já requereu a execução, fez despesas, suportou incómodos, sujeitou-se a contingências desfavoráveis, enfrentou riscos ...4)?
Fica ressalvado o caso do conluio entre exequente e executado, que a lei acautelou no caso da suspensão da execução para pagamento a prestações (art. 778º do C.P.C.) e, em temos gerais, no art. 568º do mesmo código5, pelo que não colhe qualquer argumento ad terrorem de que o credor fica nas mãos do exequente.
Se o credor reclamante pudesse impulsionar a execução a qualquer momento, em honra do princípio da economia processual, faria sentido, a um legislador que sabe exprimir o seu pensamento em termos adequados (art. 8º, nº 3 do Código Civil) o que disse nos arts. arts. 810º a 813º e o “mecanismo” que assim estabeleceu sem dar a palavra aos credores reclamantes, excepto após a liquidação no caso de já haver bens vendidos ou adjudicados e dizendo que, antes disso, a execução prossegue somente para graduação e verificação dos créditos e só depois se fará a liquidação?
II
Foram colhidos os vistos, cumpre conhecer.
Ora, a única questão levantada pelo recorrente é a questão de saber se o credor reclamante pode promover o andamento da execução, enquanto se não verificarem os pressupostos prescritos no artº 814º/2 do CPC, especialmente a extinção da execução.
Então vejamos.
Reza o artº 814º/2 do CPC que “também o credor reclamante, cujo crédito seja exigível e tenha sido liminarmente admitido para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, até ao trânsito em julgado da sentença que declare extinta a execução, o seu prosseguimento para efectiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito”.
Ora, em regra, uma acção executiva, tal como sucede com qualquer outra acção, a sua função visa servir o exclusivo benefício de quem a propôs.
Todavia, na matéria de acção executiva, existe uma particularidade que justifica a intervenção daqueles cujos interesses possam ser afectados numa acção executiva não por eles intentada.
É justamente o que sucede com os credores munidos da garantia real sobre os bens que entretanto foram objecto da penhora numa acção executiva intentada por outrem.
É o instituto de reclamação de créditos consagrado nos artºs 755º e seguintes do CPC.
Mais concretamente falando, a lei manda que, feita a penhora e junta a certidão dos direitos, ónus ou encargos inscritos sobre os bens penhorados, quando necessária, sejam citados, entre outros, os credores com garantia real sobre alguns dos bens penhorados (artº 755º/1-b) do CPC).
Os credores, assim citados, se vierem a reclamar os seus créditos, poderão vir a beneficiar dos esforços e actividades levadas a cabo pelo exequente, que suportou despesas, incómodos, dificuldades e riscos a qualquer acção judicial inerentes, de modo a que possam vir a pagar-se através do produto dos bens onerados.
Então qual é a ratio desse instituto de reclamação de créditos no âmbito de uma acção executiva.
A este propósito, o Prof. Alberto dos Reis ensina doutamente que:
“......
Por mais extravagante e insólito que o caso pareça, a verdade é que se justifica perfeitamente em face dos princípios jurídicos.
A preterição do exequente pelos credores privilegiados e preferentes colocados antes deles é uma exigência das regras de direito substancial. O que seria inadmissível é que o exequente obtivesse pagamento à custa da venda de bens sobre os quais outros credores têm, segundo a lei civil, privilégio ou preferência, enquanto estes não estiverem pagos.
Pelo que respeita à utilização, por parte dos credores concorrentes, da actividade processual exercida pelo exequente, o facto está longe de ser chocante. O princípio da economia processual explica satisfatoriamente o evento.
Para que obrigar cada um dos credores a promover contra o executado numa acção executiva separada e autónoma, se nenhum obstáculo sério se levanta contra a possibilidade de fazerem sua a acção executiva promovida pelo exequente?
O que sucede aqui, sucede igualmente em muitos outros casos. A ordem jurídica não sofre violação pelo facto de um titular de direito paralelo ao de pessoa que está em juízo intervir no processo, a fim de se aproveitar da actividade que esta tem desenvolvido e se propõe desenvolver. O incidente da intervenção principal (artº ....) assenta exactamente no postulado que acabamos de enunciar.”. – cf. Alberto dos Reis, in Processo de Execução, Volume 2º, pág. 262 e s.s..
É verdade que não são o credor que tiver assumido a iniciativa de accionar o devedor, mas nem por isso os credores reclamantes só podem ficar a esperar passivamente que os seus créditos, as vezes já exigíveis e com garantia real (como sucede in casu com o recorrente), venham a ser bem acautelados só pela actividade processual exercida pelo exequente, que embora seja exequente, não é mais do que um credor que pretende ver judicialmente satisfeito o seu crédito sobre o devedor.
Há situações em que, por razões da ordem muito variada, o exequente perde o interesse ou não está estimulado a promover activamente a execução
Assim, na circunstância da inércia por parte do exequente, há que reconhecer a necessidade de acautelar os interesses dos credores reclamantes, especialmente quando estiveram em jogo credores cujo crédito já seja exigível (apesar de não ser necessária a exigibilidade do crédito para ser admitido credor à execução – artº 754º/3) e credores que tendo instaurado separadamente acção executiva mas sustada nos termos do disposto no artº 764º do CPC.
Estando em regra legalmente permitidos e em perfeitas condições para assumir autonomamente o papel do exequente “principal” numa acção já instaurada ou numa execução autónoma a intentar conforme a melhor forma da satisfação dos seus interesses, estes credores, uma vez citados para reclamar os seus créditos numa execução “alheia”, não devem ser colocados numa posição processual intoleravelmente subalternizada.
Intoleráveis são as situações em que o exequente, usando ou abusando do princípio do dispositivo, deixa estagnada a instância no seu exclusivo interesse.
Assim, tendo em conta as razões subjacente ao instituto de reclamação de créditos no âmbito da execução, deve ser atribuída a credores reclamantes certa faculdade de impulsionar o andamento do processo, quando o exequente “principal” deixar de o fazer.
Reconhecemos que cada caso é um caso.
In casu, os elementos existentes apontam que o credor reclamante A se encontra nessas situações em que a justiça reclama a atribuição de faculdade de impulsionar o andamento do processo.
É com fundamento no artº 814º/2 do CPC que o Mmº Juiz a quo indeferiu o requerimento da venda judicial, isto é, na sua óptica, não se defere o prosseguimento da execução a impulso do credor reclamante por a execução se não mostrar ainda extinta.
Reza a mesma norma que “também o credor reclamante, cujo crédito seja exigível e tenha sido liminarmente admitido para ser pago pelo produto de bens penhorados que não chegaram entretanto a ser vendidos nem adjudicados, pode requerer, até ao trânsito em julgado da sentença que declare extinta a execução, o seu prosseguimento para efectiva verificação, graduação e pagamento do seu crédito”.
Trata-se de uma norma permissiva que autoriza o “renascimento” de uma execução já declarada extinta (embora não transitada em julgado).
Compreende-se a razão de ser dessa norma, pois se os seus créditos reclamados não vierem a ser pagos por os bens sobre os quais têm garantia real não chegarem a ser vendidos, os credores reclamantes, cujos créditos já sejam exigíveis, podem naturalmente instaurar imediatamente a sua “própria” execução, logo que tenha sido julgada extinta a acção executiva “alheia”.
Se a nossa lei não permitisse a renovação da execução extinta nos termos prescritos no artº 814º do CPC e portanto os credores reclamantes tivessem de intentar novas execuções contra o mesmo executado sobre os mesmos bens, tudo o que tiver sido processado antes da extinção da execução, nomeadamente a citação do executado e dos credores, a reclamação de créditos, a verificação de alguns créditos reclamados, teriam de ser repetidos na nova execução.
Obviamente o princípio da economia processual aconselha a que se proveite o processado anteriormente à extinção da execução.
Assim sendo, ao contrário do que entende o Exmº Juiz a quo, não nos parece que o artº 814º/2 deva ser interpretado, algo a contrário senso, no sentido de que enquanto não julgada extinta a execução, os credores, cujos créditos seja embora já exigíveis, não podem promover o andamento do processo executivo, mesmo que fique parado por inércia do exequente.
Pois o artº 814º, como vimos, visa à economia processual que se traduz no aproveitamento do processado, não tendo em vista fixar pressupostos ou restringir a oportunidade em que os credores reclamantes devem ser autorizados a tomar a iniciativa de impulsionar o andamento da execução.
Assim, por razões que ficaram expostas supra, por um lado é de reconhecer a credores reclamantes certa faculdade de impulsionar o andamento da execução, e por outro, a razão de ser do artº 814º, em que se fundou a decisão recorrida, é de revogar essa decisão.
Todavia, este Tribunal ad quem não está habilitado a substituir-se ao Tribunal a quo, por força da regra da substituição consagrada no artº 630º do CPC, uma vez que a decisão só se limitou a negar ao credor A a “legitimidade” para requerer a venda judicial e não chegou a decidir a venda judicial, não nos restando outras alternativas que não sejam a de reconhecer ao credor A a legitimidade de requerer a venda judicial e a de remeter os presentes autos ao Tribunal a quo, a fim de ali, decidir o requerimento da venda judicial.
Tudo visto resta decidir.
III
Nos termos e fundamentos acima expostos, acordam em conferência em revogar a decisão recorrida, reconhecendo ao credor A, ora recorrente, a legitimidade de requerer a venda judicial e remetendo os presentes autos ao Tribunal a quo, a fim de ali decidir o requerimento da venda judicial.
Custas a final.
Notifique.
RAEM, 26MAIO2011
Lai Kin Hong (Relator)
Choi Mou Pan
João A. G. Gil de Oliveira
1 Nos casos como o dos autos em que não houve suspensão da execução com desistência da penhora (art. 778º do C.P.C.) nem houve suspensão de outra execução que o recorrente tivesse iniciado e onde fosse efectuada penhora posterior (caso em que não se poderia censurar a sua inércia).
2 É a própria lei que o diz no caso do art. 814º, nº 3
3 O princípio da economia processual explica satisfatoriamente (Prof. Alberto dos Reis, Processo de Execução, Vol. 2º, p. 264.
4 Prof. Alberto dos Reis, Op cit., p. 263.
5 De insofismável aplicação analógical, ou directa ex vi art. 375º, nº 1 do mesmo código.
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