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Processo nº 177/2011 Data: 12.05.2011
(Autos de recurso penal)

Assuntos : Cooperação Judiciária em material penal.
Segredo de justiça.
Conflito de jurisdição.
Dupla incriminação.



SUMÁRIO

1. A inexistência de acordo ou convenção não obsta a que as autoridades judiciárias da R.A.E.M. cooperem com as da R.A.E.H.K., satisfazendo um pedido destas na recolha de material probatório.

2. O princípio ou a regra do segredo de justiça significa que há uma fase do expediente processual em que o processe se mantém secreto.
O fundamento da consagração do segredo de justiça assenta numa tríplice ordem de razões:
- por um lado, visa facilitar os objectivos da perseguição e repressão criminais, evitando-se assim transportar para o público todo o trabalho de procura e valoração da prova;
- por outro, intenta salvaguardar a dignidade da magistratura, que se quer objectiva livre das pressões da opinião pública;
- e por fim pretende preservar a vida privada do arguido, (que se presume inocente até haver condenação transitada), de agressões desnecessárias, que poderiam afrontar a sua dignidade pessoal.

O relator,

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José Maria Dias Azedo









Processo nº 177/2011
(Autos de recurso penal)






ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:





Relatório

1. A, com os restantes sinais dos autos, vem recorrer do despacho proferido pelo Mmo Juiz do T.J.B. que não acolheu uma pretensão pelo mesmo apresentada no sentido de se indeferir um pedido de cooperação judiciária deduzido pelas autoridades judiciais da R.A.E.H.K..

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Alega em síntese o que segue:

“1. O recorrente A não se conformou com a decisão (fls. 1058) do tribunal a quo, pelo que, intentou recurso ao Tribunal de Segunda Instância.
2. Em Hong Kong, o recorrente A foi acusado que no dia de 12 de Novembro de 2005, em Hong Kong o mesmo transferiu uma quantia no valor de HKD$ 20.300.000,00 para a conta de B Property Ltd. controlada por C.
3. Para o facto supracitado, os processos de investigação do caso do recorrente A já foram instruídos no Processo de inquérito n.° 4607/2007 pelo MP de Macau .
4. O tribunal não pode fornecer os documentos que eram considerados segredos de justiça para outras regiões no caso de não assegurar que Hong Kong consegue prosseguir o cumprimento dos segredos de justiça.
5. O segredo de justiça visa o segredo das provas dos autos. O tribunal sabia bem que o destinatário investigado já foi sujeito ao inquérito pelo MP do Território, deve recusar o cumprimento do presente pedido judiciário para evitar a comunicação pública das provas.
6. A entrega dos respectivos documentos para Hong Kong conduzia possivelmente a que o seu conteúdo fica aberto ao público completamente, prejudicando gravemente o regime jurídico de Macau e violando o princípio básico do Regime do Processo Penal.
7. O tribunal a quo deve recusar, nos termos do art.° 216.° n.° 1 al) c) do Código de Processo Penal, o cumprimento de rogatória, em contrário, o tribunal a quo não fez assim, violando manifestamente este art.°.
8. O recorrente entende que a RAEM e RAEHK não assinaram nenhum acordo da produção de provas na cooperação judiciária penal, pelo que, falta de fundamentos jurídicos no presente pedido.
9. Uns estudiosos entendem que a circunstância entre RAEM e RAEHK é aplicável à geral prevista no art.° 213.° do Código de Processo Penal.
10. O tribunal a quo entende que antes estabelecido o acordo entre as duas Regiões, pode prestar assistência de forma de caso particular, isso falta manifestamente os fundamentos jurídicos.
11. A cooperação judiciária de forma de caso particular falta manifestamente o princípio da equidade, o MP e os juízes decidem propriamente o grau das assistências prestadas por não existir as disposições jurídicas, o que resulta a injustiça para cada caso.
12. Sendo assim, falta manifestamente o fundamento jurídico de que o tribuna a quo cumpre o pedido judiciário da RAEHK, deve recusar o pedido.
13. O recorrente entende que o presente pedido judiciário viola os princípios gerais da cooperação judiciária, nomeadamente, o conflito no âmbito da jurisdição penal e o princípio da dupla incriminação.
14. O art.° 19.° da Lei n.° 6/2006 dispõe o princípio do conflito da jurisdição penal. Mesmo que esta disposição seja apenas aplicável aos países ou regiões salvo a RAEM e a RPC, pode tomar isso como referência.
15. In casu, após ponderadas as várias condições, os órgãos judiciais de Macau têm jurisdição sobre os factos acusados em Hong Kong contra o recorrente, tendo maior vantagem do que Hong Kong ao executar concretamente.
16. A jurisdição em matéria penal é um meio da protecção de residentes locais. Se preste assistência judiciária, Macau desistirá da jurisdição penal dos respectivos casos relativos a C e do meio importante para a protecção dos direitos dos residentes locais do Território.
17. Pelos expostos, pede os MM.°s Juízes do Tribunal de Segunda Instância a condenar que o tribunal a quo violou o princípio do conflito da jurisdição penal, revogar a decisão e recusar o presente pedido.
18. O princípio da dupla incriminação visa os actos do autor na cooperação judiciária penal, quando ambas as leis do país requerente e do país requerido julgam a constituir crime na cooperação judiciária penal, pode prestar cooperação judiciária. Se as leis do país requerido não julgam a constituir crime, não prestará assistência.”
19. De acordo com a decisão única do mesmo tipo de casos do Tribunal de Segunda Instância, o recorrente do mesmo tipo foi absolvido do crime de branqueamento de capitais. (cfr. Processo do Tribunal de Segunda Instância n.°: 572/2008)
20. Pelo que, conforme exemplos condenatórios judiciários actualmente, A deve ser considerado absolvido na RAEM.
21. Pelos expostos, pede os MM.°s juízes do Tribunal de Segunda Instância que recusem a cumprir o presente pedido judiciário com razão da violação do princípio da dupla incriminação”; (cfr., fls. 1526 a 1534 e 1567 a 1583, que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).

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Em resposta, pugna o Exmo, Magistrado do Ministério Público que o recurso deve ser julgado improcedente, afirmando essencialmente que:

“1- O objecto do segredo da justiça é o processo penal na fase de inquérito ou instrução, enquanto os presentes autos limitam-se a recolher provas directamente a determinadas entidades;
2- Não havendo revelação do conteúdo do alegado processo penal, não há qualquer violação do segredo da justiça;
3- O art. 213° do CPM prevê que na falta de convenção internacional ou acordo de cooperação judiciária a aplicação das normas constantes daquele Livro e Título do CPPM;
4- Pelo que não é verdade que não há fundamento legal para o cumprimento do pedido de cooperação judiciária;
5- O conflito de jurisdição pressupõe a coincidência da matéria de facto, que nessa fase não é possível apurar devido ao segredo da justiça;
6- A absolvição de um caso relacionado ou semelhante nunca afasta a prática do crime por outro agente e muito menos tem a ver com o princípio de dupla incriminação;
7- A essência do princípio de dupla incriminação consiste na não extradição do reclamado, caso os factos criminosos em causa não sejam punidos no Estado requerido. Considerando que a extradição é um acto de soberania, sentido não se faz caso o Estado exerce o tal poder para entrega de pessoa com o fim punitivo por condutas não puníveis no próprio Estado”; (cfr., fls. 1537 a 1540).

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Admitido o recurso e remetidos os autos a este T.S.I. em sede de vista afirma também o Ilustre Procurador Adjunto no sentido de improcedência do recurso; (cfr., fls. 1586).

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Cumpre apreciar e decidir.

Fundamentação

2. Vem A recorrer do despacho proferido pelo Mmo Juiz do T.J.B. que não acolheu uma pretensão que apresentou no sentido de se indeferir um pedido de cooperação judiciária deduzido pelas autoridades judiciais da R.A.E.H.K..

Entende que a decisão em crise desrespeita o “segredo de justiça”, padecendo de “falta de fundamento legal” e violando ainda os “princípios gerais da cooperação judiciária, nomeadamente, o conflito no âmbito da jurisdição penal e o princípio da dupla incriminação”.

Cremos que ao ora recorrente não assiste razão.

Vejamos.

–– Do alegado “segredo de justiça”.

Alega o recorrente que se encontra autuado no Ministério Público da R.A.E.M. um processo de inquérito sobre a sua eventual prática de “branqueamento de capitais”, e que o cumprimento do pedido de cooperação judiciária deduzido pelas autoridades judiciais da R.A.E.H.K. viola o princípio do segredo de justiça, o que constitui um fundamento de recusa do cumprimento de rogatórias nos termos do art. 216°, no. 1, al. c) do C.P.P.M..

Incorre, porém, o recorrente, em equívoco.

Como afirmam Leal Henriques e Simas Santos:

“O princípio ou a regra do segredo de justiça significa que há uma fase do expediente processual em que o processe se mantém secreto.
Manter-se secreto ou em segredo de justiça é conservar fora do conhecimento alheio, ou seja, é manter afastado da apreensão de terceiros tudo quanto conste do processo (actos e diligências)..

O fundamento da consagração do segredo de justiça nas fases do inquérito e da instrução assenta numa tríplice ordem de razões:
- por um lado, visa facilitar os objectivos da perseguição e repressão criminais, evitando-se assim transportar para o público todo o trabalho de procura e valoração da prova;
- por outro, intenta salvaguardar a dignidade da magistratura, que se quer objectiva livre das pressões da opinião pública;
- e por fim pretende preservar a vida privada do arguido, (que se presume inocente até haver condenação transitada), de agressões desnecessárias, que poderiam afrontar a sua dignidade pessoal (repare-se que mesmo um arquivamento dos autos não evitaria uma repercussão negativa na sua esfera pessoal).

O segredo de justiça acarreta proibições de diferente tipo:
- proibição de assistir à prática de acto (quando se não tem o direito ou o dever de a ele estar presente);
- proibição de tomar conhecimento do conteúdo do acto (quando igualmente se não tem o direito ou o dever de a ele assistir);
- proibição de divulgar a ocorrência de acto processual ou dos seus termos, seja qual for o motivo que esteja subjacente a essa divulgação”; (cfr., “C.P.P.M. Anot.”, página 198 a 199).

Porém, no caso, (e independentemente do demais, em especial, do facto de as autoridades judiciárias da R.A.E.H.K. também estarem vinculadas ao “segredo de justiça”), há que ter em conta que em causa está apenas um pedido de recolha de provas, nomeadamente, a tomada de declarações junto de particulares ou entidades locais, e fora do âmbito do referido inquérito.

Assim, claro nos parece que inexiste qualquer violação ao aludido segredo de justiça, pois que não se está a revelar matéria de um processo (ou extraída de um processo) que se encontra em segredo de justiça.

–– Da alegada “falta de fundamento legal”.

Diz o recorrente que inexiste acordo de cooperação judiciária em matéria penal pelo que não há fundamento legal para o cumprimento do pedido, devendo assim ser o mesmo recusado.

É verdade.

Porém, há que atentar que, a lei processual penal não proíbe a “cooperação judiciária”.

De facto, prescreve o art. 213° do C.P.P.M. que:

“As rogatórias, a entrega de infractores em fuga, os efeitos das sentenças penais proferidas fora de Macau e as restantes relações com as autoridades não pertencentes a RAEM relativa à administração da justiça penal são reguladas pelas convenções internacionais aplicáveis em Macau ou pelos acordos no domínio de cooperação judiciária e, na sua falta, pelas disposições deste Livro.”

Ora, as rogatórias são actos de mútua assistência judiciária, consistindo num pedido formulado pela autoridade judiciária da R.A.E.M. à autoridade judiciária de fora, ou vice-versa, solicitando-lhe a realização de determinados actos processuais, como por exemplo, a inquirição de testemunhas; (cfr., v.g., L. Henriques e S. Santos, in, ob. cit. página 495).

Nesta conformidade, e não se verificando nenhuma das situações de recusa do cumprimento de rogatórias previstas no art. 216° do C.P.P.M., conclui-se que também aqui improcede o recurso.

Admite-se ainda que o pedido em questão das autoridades da R.A.E.H.K. possa não constituir uma “carta rogatória” no seu sentido estrito, porém, e ainda que não exista convenção ou acordo, nada obsta que a R.A.E.M. coopere com as autoridades da R.A.E.H.K..

–– Do alegado “conflito de jurisdição” e da “dupla incriminação”.
Também aqui não se mostra de considerar que tenha o recorrente razão.

E o motivo é simples.

É que não se vislumbra nenhum “conflito” (de jurisdição) ou qualquer “dupla incriminação”.

Com efeito como falar-se de “dupla incriminação” se o próprio arguido não especifica quais as incriminações em questão.

É verdade que diz que foi absolvido pelos Tribunais da R.A.E.M., mas onde está a “outra incriminação”?

Por sua vez, como falar-se em “conflito de jurisdição” sem previamente se saber o que é que em causa está no pedido pelas autoridades da R.A.E.H.K. dirigido à R.A.E.M.?

Ociosas nos parecendo outras considerações, resta decidir.

Decisão

3. Nos termos e fundamentos expostos, em conferência, acordam negar provimento ao recurso.

Pagará o recorrente a taxa de justiça que se fixa em 5 UCs.

Macau, aos 12 de Maio de 2011
José Maria Dias Azedo (Relator)
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa

Proc. 177/2011 Pág. 16

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