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Processo n.º 467/2010 Data do acórdão: 2011-6-2
(Autos de recurso penal)
  Assuntos:
  – acidente de viação
– repartição da culpa pela produção do acidente
– erro notório na apreciação da prova
– fixação de indemnização de danos não patrimoniais
– contagem de juros
– acórdão uniformizador de jurisprudência
S U M Á R I O
1. A questão de repartição da culpa entre o arguido e a demandante cível pela produção do acidente de viação dos autos não tem nada a ver com o vício de “erro notório na apreciação da prova” referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal de Macau.
2. Mesmo que a lesada ora demandante tenha estado a fazer uma manobra ilegal de ultrapassagem, e enquanto o ciclomotor da demandante estava, na altura, a 35 centímetros de distância do veículo do arguido, deve ser realmente imputada muito grande parte de responsabilidade ao arguido pela produção do acidente, por ter aberto a porta lateral do seu veículo para sair do mesmo, sem que se tenha certificado antes se o podia fazer sem causar perigo ou embaraço para os outros utentes da avenida em questão.
3. Não há fórmula sacramental para a matéria de fixação de quantia para reparação de danos não patrimoniais nos termos do disposto no art.° 487.°, ex vi do art.° 489.°, ambos do Código Civil de Macau, por cada caso ser um caso, cuja solução depende naturalmente dos ingredientes em concreto apurados.
4. Devido ao princípio do dispositivo, e por isso não obstante a posição jurídica obrigatória firmada no recente douto Acórdão uniformizador de jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, do Processo n.o 69/2010, não se pode alterar agora o termo inicial de contagem de juros legais das quantias indemnizatórias de danos patrimoniais e danos morais da lesada, visto que a decisão da Primeira Instância nesta matéria concreta (que mandou contar todos os juros somente a partir do trânsito em julgado da decisão) não chegou a ser impugnada por essa demandante.
O relator,
Chan Kuong Seng

Processo n.º 467/2010
(Autos de recurso penal)
  Recorrentes: Companhia de Seguros de Macau, S.A.
   A
  Recorridas: As mesmas
Tribunal a quo: 3.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base




ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 377 a 383v dos autos de processo comum colectivo n.o CR3-06-0278-PCC do 3.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, com pedido de indemnização cível enxertado, ficou o arguido B, aí já melhor identificado, condenado, como autor de um crime consumado de ofensa grave à integridade física por negligência, p. e p. pelo art.o 142.o, n.os 1 e 3, do Código Penal de Macau, na pena de um ano e quatro meses de prisão, suspensa na sua execução por dezoito meses, e, como autor de uma infracção ao art.o 49.o, n.o 2, da Lei Rodoviária (Lei n.o 3/2007, de 7 de Maio) (aplicada como sendo a lei concretamente mais favorável), na multa de MOP$300,00 (trezentas patacas), com interdição da condução por nove meses, medida essa com execução suspensa por dezoito meses, bem como ficou a civilmente demandada Companhia de Seguros de Macau, S.A., condenada a pagar MOP$282.996,00 (duzentas e oitenta e duas mil, novecentas e noventa e seis patacas) de indemnização de danos patrimoniais e morais (com juros legais contados desde o trânsito em julgado da decisão até integral e efectivo pagamento) à demandante A, vítima do acidente de viação dos autos, por cuja produção tinham, segundo o juízo desse Tribunal, o arguido 80% de culpa e a demandante lesada 20%.
Inconformada, recorreu a demandada seguradora, para opinar que a percentagem da culpa do arguido pela produção do acidente não deveria ser superior a 30%, e que o montante então achado pelo Tribunal Colectivo a quo para reparação dos danos morais da demandante, antes de descontado em função da percentagem da culpa concorrente desta, não deveria ser superior a MOP80.000,00 (oitenta mil patacas) (cfr. o teor da motivação do recurso a fls. 408 a 423 dos presentes autos correspondentes).
Ao recurso, respondeu a demandante no sentido de improcedência do mesmo (cfr. a resposta de fls. 435 a 442).
Outrossim, interpôs a mesma demandante recurso subordinado, rogando que fosse o arguido considerado como o responsável exclusivo pela produção do acidente, e que a quantia de MOP250.000,00 (duzentas e cinquenta mil patacas) inicialmente fixada pelo Tribunal a quo para reparação dos seus danos morais fosse aumentada para MOP600.000,00 (seiscentas mil patacas), tal como tinha sido peticionada (cfr. o teor da motivação do recurso subordinado, a fls. 458 a 468).
Subidos os autos, entendeu o Digno Procurador-Adjunto, em sede de vista feita a fl. 469v, que não havia lugar à emissão de parecer, por estar em causa apenas a parte cível.
Feito o exame preliminar, e corridos os vistos legais, realizou-se a audiência em julgamento.
Cumpre agora decidir.
II – FACTOS
De acordo com a fundamentação fáctica do acórdão ora recorrido, o Tribunal Colectivo a quo considerou materialmente provados os seguintes factos, com pertinência à decisão do pedido cível de indemnização:
– No dia 24 de Junho de 2004, cerca das 10:35, o arguido estacionou o automóvel ligeiro que conduzia, com a matricula n.º MI-59-XX, no interior da zona de paragem de autocarro sito na Avenida de Venceslau de Morais, perto do poste de iluminação n.º 076C11. Quando o arguido, sentado no lugar de condutor, abriu a porta dianteira direita do veículo para sair, tal porta embateu no corpo de A (a lesada), que no mesmo momento e na mesma via, conduzia o ciclomotor com a matrícula n.º CM-398XX, da Avenida do Nordeste em direcção à Rua dos Pescadores.
– Por esse motivo, a lesada perdeu o controlo e foi lançada ao chão, tendo sido posteriormente transportada ao Hospital Kiang Wu para tratamento. Após exame, o referido acidente causou luxação do quadril lombar direito, prolapso dos discos intervertebrais 4 e 5 e abrasões do tecido mole em diversas partes do corpo, tendo sido necessários 90 dias para convalescença.
– O referido acidente foi causado em virtude do incumprimento por parte do arguido do Código da Estrada, de que devia ter pleno conhecimento, abrindo a porta do carro sem ter a absoluta certeza das condições de segurança, tendo o seu acto causado directamente graves danos à integridade física da lesada.
– Na altura do acidente, o tempo estava bom, a densidade do tráfego e a situação da via estavam normais.
– Para tratamento dos ferimentos causados pelo acidente de viação, a lesada A despendeu pelo menos MOP$103.745,00, para hospitalização, tratamento médico e aquisição de medicamentos.
– Após o acidente, em virtude dos ferimentos, a lesada sofreu dores físicas e mentais, para além de ansiedade, tornando-se irritada, não podendo frequentemente controlar as emoções.
– A lesada sente frequentemente dores e falta de força nas costas, não podendo desempenhar trabalhos que requeiram utilização da força das costas para levantamento de objectos pesados.
– Na altura do acidente, tinha 41 anos de idade, e sofria, na altura, ligeira hipertrofia óssea da coluna lombar.
– Através da apólice de seguro n.º 41-111568, B transferiu a responsabilidade de indemnização civil do seu automóvel com a matrícula n.º MI-59-XX para a Companhia de Seguros de Macau, S.A.
– Na altura do acidente, o automóvel ligeiro estava estacionado no lado esquerdo da faixa de rodagem, estando uma camioneta de carga a entrar no edifício industrial, pelo que os veículos em fila na via estavam a circular-se lentamente. Nesse momento, o ciclomotor conduzido pela lesada “furou” por entre o lado esquerdo da referida fila de veículos e o lado direito da viatura do arguido.
– O ciclomotor da lesada estava, na altura, numa distância de aproximadamente 35 centímetros do carro do arguido.
Por outra banda, o Tribunal Colectivo a quo não considerou provados os seguintes factos:
– Antes de abrir a porta do veículo, o arguido certificou-se de que não havia veículo por detrás.
– Para tratar das lesões provocadas pelo acidente de viação, a demandante precisou de comprar máquina de massagem.
– A demandante estava a conduzir o ciclomotor a 30 quilómetros de velocidade por hora.
III – DIREITO
De antemão, cumpre notar que este Tribunal de Segunda Instância (TSI), como tribunal ad quem, só tem obrigação de decidir das questões material e concretamente postas pela parte recorrente na motivação do recurso e devidamente delimitadas nas respectivas conclusões, e já não decidir, da justeza, ou não, de todos os argumentos invocados pela parte recorrente para sustentar a procedência da sua pretensão (neste sentido, cfr., nomeadamente, os arestos deste TSI nos seguintes processos: de 4/3/2004 no processo n.° 44/2004, de 12/2/2004 no processo n.º 300/2003, de 20/11/2003 no processo n.º 225/2003, de 6/11/2003 no processo n.° 215/2003, de 30/10/2003 no processo n.° 226/2003, de 23/10/2003 no processo n.° 201/2003, de 25/9/2003 no processo n.º 186/2003, de 18/7/2002 no processo n.º 125/2002, de 20/6/2002 no processo n.º 242/2001, de 30/5/2002 no processo n.º 84/2002, de 17/5/2001 no processo n.º 63/2001, e de 7/12/2000 no processo n.º 130/2000).
Nesses parâmetros, e tal como já se deixou escrito no relatório do presente acórdão, quer a demandada seguradora quer a demandante (embora esta o faça a título de recurso subordinado) pretendem, ao fim e ao cabo, insurgir contra o decidido pelo Tribunal a quo no tocante à repartição, entre o arguido e a própria demandante, da culpa pela produção do acidente de viação dos autos, e à fixação da quantia indemnizatória dos danos morais sofridos pela demandante, sendo, assim, certo que, ao contrário do que alega a demandante no ponto 21 da sua motivação do recurso subordinado (a fl. 462), a questão de repartição da culpa não tem nada a ver com o vício de “erro notório na apreciação da prova” referido no art.o 400.o, n.o 2, alínea c), do Código de Processo Penal de Macau.
Sendo comuns as questões objecto de ambos os recursos, é de decidir se as percentagens da culpa e a quantia indemnizatória dos danos morais, achadas pelo Tribunal a quo no seu acórdão, precisam de ser alteradas.
Pois bem, atendendo a todas as circunstâncias do acidente de viação em causa já dadas por apuradas na fundamentação fáctica do aresto recorrido, afigura-se a este Tribunal ad quem ser de manter as percentagens de culpa fixadas na decisão recorrida, isto porque mesmo que a demandante tenha estado a fazer uma manobra ilegal de ultrapassagem (hipótese essa que já foi levada concretamente em consideração pelo Tribunal a quo na decisão sobre a repartição da culpa – cfr. o teor das linhas 10 a 13 da pág. 10 do texto desse aresto, a fl. 381v), e enquanto o ciclomotor da demandante estava, na altura, a 35 centímetros de distância do veículo do arguido, deve ser realmente imputada muito grande parte de responsabilidade ao arguido pela produção do acidente, por ter aberto a porta lateral do seu veículo para sair do mesmo, sem que se tenha certificado antes se o podia fazer sem causar perigo ou embaraço para os outros utentes da avenida em questão, mostrando-se, pois, acertadas as percentagens de culpa graduadas no acórdão recorrido.
E agora no respeitante à quantia de duzentas e cinquenta mil patacas achada inicialmente (i.e., sem o devido desconto em função da percentagem da culpa concorrente da própria demandante) pelo Tribunal a quo para reparação dos danos morais, já se vislumbra mais equitativo passar a fixar essa quantia em duzentas mil patacas, atentas todas as circunstâncias fácticas já apuradas no acórdão recorrido (de acordo com as quais, e nomeadamente, a lesada ora demandante, em virtude dos ferimentos, sofreu dores físicas e mentais, para além de ansiedade, tornando-se irritada, não podendo frequentemente controlar as emoções, sentindo frequentemente dores e falta de força nas costas, não podendo desempenhar trabalhos que requeiram utilização da força das costas para levantamento de objectos pesados), à luz do disposto no art.° 487.°, ex vi do art.° 489.°, ambos do Código Civil de Macau, sendo de frisar aqui que não há nenhuma fórmula sacramental para a matéria em causa, por cada caso ser um caso, cuja solução depende naturalmente dos ingredientes em concreto apurados.
Ante o acima concluído, fica a proceder apenas parcialmente o recurso da seguradora, ao passo que é de naufragar in totum o recurso subordinado da demandante, com o que o total indemnizatório por que vinha condenada a demandada seguradora passará a ser reduzido de MOP$282.996,00 para MOP$242.996,00 (calculada pela seguinte maneira: MOP$303.745,00 (como soma de MOP$103.745,00 de danos patrimoniais com MOP$200.000,00 de danos morais) x 80% = MOP$242.996,00).
É, entretanto, de notar que devido ao princípio do dispositivo (e por isso não obstante a posição jurídica obrigatória firmada no recente douto Acórdão uniformizador de jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, do Processo n.o 69/2010), não se pode alterar agora o termo inicial de contagem de juros legais das quantias indemnizatórias de danos patrimoniais e danos morais, visto que a decisão da Primeira Instância nesta matéria concreta (que mandou contar todos os juros somente a partir do trânsito em julgado da decisão) não chegou a ser impugnada pela demandante civil.
Por fim, como no despacho de deferimento do apoio judiciário na modalidade de nomeação de patrono oficioso, a Mm.a Juiz titular do processo em primeira instância já deu por verificada a situação de insuficiência económica da demandante civil, esta merece ver agora deferida também a pretensão, formulada no pedido cível então enxertado e reafirmada depois na motivação do seu recurso, de dispensa total de pagamento de custas.
IV – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em:
– julgar parcialmente procedente o recurso principal da demandada Companhia de Seguros de Macau, S.A., e totalmente não provido o recurso subordinado da demandante A, reduzindo, por conseguinte, a quantia então fixada inicialmente no acórdão recorrido para reparação dos danos morais desta, de MOP$250.000,00 para MOP$200.000,00 (duzentas mil patacas), com o que o total indemnizatório por que vinha condenada a demandada seguradora passa a ser reduzido de MOP$282.996,00 para MOP$242.996,00 (duzentas e quarenta e duas mil, novecentas e noventa e seis patacas);
– e conceder apoio judiciário à demandante, na modalidade de dispensa total de pagamento de custas.
Custas do pedido cível em ambas as Instâncias a cargo da demandante e da demandada seguradora, na proporção dos respectivos decaimentos, sem prejuízo dos efeitos do apoio judiciário ora concedido.
Fixam em três mil patacas os honorários da Exm.a Patrona Oficiosa da demandante civil, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 2 de Junho de 2011.
______________________
Chan Kuong Seng
(Relator)
______________________
Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
______________________
José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)



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