Processo n.º 588/2008 Data do acórdão: 2011-6-2
(Autos de recurso penal)
Assuntos:
– acidente de viação
– pedido cível de indemnização
– art.o 394.o, n.o 1, do Código de Processo Penal
– decaimento recíproco
– recurso subordinado
– julgado penal
– seguradora do veículo do arguido
– alteração da causa de pedir
– art.o 217.o, n.o 1, do Código de Processo Civil
– nova acção cível de indemnização
– fixação de indemnização de danos não patrimoniais
– contagem de juros
– acórdão uniformizador de jurisprudência
S U M Á R I O
1. O art.o 394.o, n.o 1, do Código de Processo Penal de Macau (CPP) tem a sua filosofia fundada na existência de decaimento recíproco entre as duas partes civis – i.e., a activa e a passiva – de um mesmo pedido cível enxertado na acção penal.
2. A civilmente demandada seguradora do veículo conduzido pelo arguido não pode impugnar o julgado penal feito em primeira instância, por ela não ser sujeito processual da causa penal.
3. Tendo a demandante civil ora recorrente fundado o seu pedido de indemnização cível exclusivamente no acto de condução do arguido como unicamente causador do acidente de viação, ela não pode aproveitar a sede de recurso do acórdão final da Primeira Instância para suscitar a “questão nova” de pretendida condenação da seguradora do ciclomotor conduzido pela vítima mortal, já que essa pretensão só agora formulada na sua motivação do recurso representa uma autêntica alteração da causa de pedir, alteração essa que – em face da discordância a resultar tacitamente da posição final (de pretendida manutenção do acórdão recorrido na íntegra) assumida por esta seguradora na resposta a esse recurso – deixa de ser admissível na presente fase de recurso (cfr. o disposto no art.o 217.o, n.o 1, do Código de Processo Civil de Macau).
4. Portanto, o Tribunal de Segunda Instância não pode tomar conhecimento dessa questão nova, sem prejuízo, naturalmente, de a demandante vir a intentar nova acção cível de indemnização contra a dita seguradora do ciclomotor então conduzido pela vítima mortal, que, na altura, transportava a própria demandante.
5. Não há fórmula sacramental para a matéria de fixação de quantia para reparação de danos não patrimoniais nos termos do disposto no art.° 487.°, ex vi do art.° 489.°, ambos do Código Civil de Macau, por cada caso ser um caso, cuja solução depende naturalmente dos ingredientes em concreto apurados.
6. Devido ao princípio do dispositivo, e por isso não obstante a posição jurídica obrigatória firmada no recente douto Acórdão uniformizador de jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, do Processo n.o 69/2010, não se pode alterar agora o termo inicial de contagem de juros legais das quantias indemnizatórias, visto que a decisão da Primeira Instância nesta matéria concreta (que mandou contar todos os juros somente a partir do trânsito em julgado da decisão) não chegou a ser impugnada.
O relator,
Chan Kuong Seng
Processo n.º 588/2008
(Autos de recurso penal)
Recorrentes: A
Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), S.A.
Tribunal a quo: 1.º Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU
I – RELATÓRIO
Por acórdão proferido a fls. 490 a 496v dos autos de processo comum colectivo n.o CR1-05-0156-PCC do 1.o Juízo Criminal do Tribunal Judicial de Base, com dois pedidos de indemnização cível enxertados, ficou o arguido B, aí já melhor identificado, condenado, como autor material de um crime consumado de homicídio por negligência, p. e p. pelo art.o 134.o, n.o 1, do Código Penal de Macau (CP), conjugado com o art.o 66.o, n.o 1, do anterior Código da Estrada (CE) (vigente à data dos factos), na pena de um ano e seis meses de prisão, e, como autor material de um crime consumado de ofensa grave à integridade física por negligência, p. e p. pelos art.os 142.o, n.o 3, e 138.o, alínea d), do CP, conjugados com os art.os 66.o , n.o 1, e 73.o, n.o 1, alínea a), do CE, na pena de um ano e três meses de prisão, e, como autor de uma infracção ao art.o 30.o da Lei Rodoviária (Lei n.o 3/2007, de 7 de Maio) (abreviada como LR, e aplicada como sendo a lei concretamente mais favorável), na multa de MOP$300,00 (trezentas patacas), e, em cúmulo, na pena única de dois anos de prisão (suspensa na sua execução por três anos) e em MOP$300,00 de multa, com interdição da condução por um ano (medida essa com execução suspensa por dois anos nos termos do art.o 109.o, n.o 1, da LR), ficou absolvida da instância civil a demandada Companhia de Seguros Ásia, Limitada, e ficou condenada a demandada então denominada Companhia de Seguros da China (Macau), S.A. (e agora chamada – por conhecimento do presente Tribunal de Segunda Instância no exercício das funções jurisdicionais em processos congéneres anteriores – Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), S.A.), a pagar MOP$163.936,00 (cento e sessenta e três mil, novecentas e trinta e seis patacas) de indemnização de danos patrimoniais e morais (com juros legais contados da data do trânsito em julgado da decisão até integral e efectivo pagamento) à filha herdeira C e ao filho herdeiro D da vítima mortal E do acidente de viação dos autos (para cuja produção concorreram, segundo o decidido nesse acórdão, o arguido com 20% de culpa e essa vítima com 80% de culpa), e a pagar também MOP$62.232,00 (sessenta e duas mil, duzentas e trinta e duas patacas) de indemnização de danos patrimoniais e morais à lesada A, então transportada no ciclomotor conduzido pela vítima mortal.
Inconformada, recorreu a demandante lesada A para este Tribunal de Segunda Instância (TSI), para preconizar (na sua alegação do recurso a fls. 512 a 518 dos presentes autos correspondentes) que o Tribunal Colectivo a quo deveria ter atribuído indemnização dos lucros cessantes dela, inicialmente também reclamados no seu pedido cível, e deveria ter fixado a quantia indemnizatória dos seus danos morais em seiscentas mil patacas como inicialmente peticionada, e não apenas em trezentas mil patacas, por um lado, e, por outro, que esse mesmo Tribunal não deveria ter absolvido a inicialmente também demandada Companhia de Seguros Ásia, Limitada, por esta, sendo seguradora do ciclomotor então conduzido pela vítima mortal, dever ter sido condenada a pagar os restantes 80% do total indemnizatório reclamado no seu pedido cível.
Ao recurso respondeu a Companhia de Seguros Ásia, Limitada (a fls. 526 a 532), pugnando pela manutenção do julgado.
Também respondeu (a fls. 555 a 557) a Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), S.A., no sentido de improcedência desse recurso, sendo certo que o arguido afirmou (a fls. 572 e 588) aderir à posição desta seguradora.
Entretanto, em sede de resposta ao dito recurso, aproveitou a mesma Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), S.A., para interpor recurso subordinado (através da alegação apresentada a fls. 535 a 555), para expor, na sua essência, o seguinte (aqui reordenado pelo relator atenta a sequência lógica das coisas):
– 1) no tocante à decisão de condenação do arguido pelos crimes de homicídio negligente e de ofensa grave à integridade física por negligência, o acórdão recorrido, na sua fundamentação, “apenas indica como elementos de convicção do tribunal o depoimento das testemunhas mas não valora nem aprecia esses mesmos depoimentos, nem justifica nem avalia a sua razão de ciência”, “ao proceder ao enquadramento jurídico-penal da factualidade provada, não fez uma análise dos dois tipos legais imputados ao arguido na acusação”, com omissão da “indicação dos motivos de facto e de direito determinativos da sua condenação com relação a cada um dos dois crimes”, o que infringe o disposto no art.o 355.o, n.o 2, do Código de Processo Penal de Macau (CPP), com a consequente nulidade prevista no art.o 360.o, alínea a), do CPP, conjugado com o art.o 105.o, n.o 1, do mesmo Código;
– 2) o acórdão recorrido “omite por completo a indicação sumária das conclusões contidas na contestação apresentada” pela própria seguradora ora recorrente e pelo arguido, omissão essa que representa o incumprimento do art.o 355.o, n.o 1, alínea d), do CPP, pelo que se deverá proceder à sua correcção nos termos do disposto no art.o 361.o, n.o 1, alínea a), do CPP;
– 3) ao contrário da posição perfilhada no acórdão recorrido, entende a ora recorrente que “efectivamente, ocorreu, no caso sub judice, uma clara e inequívoca violação ao dever objectivo de cuidado, por parte da infeliz vítima dos autos e condutora do ciclomotor, relativamente à qual, o tribunal a quo, pura e simplesmente, se esquivou à atribuição de culpa exclusiva na produção do factídico acidente no momento em que proferiu a decisão ora posta em crise”, decisão essa que se mostra também contraditória consigo mesma no tocante à sua fundamentação fáctica, verificando-se assim “um claro erro notório na apreciação da prova pelo que deverá o Acórdão recorrido ser revogado e, em consequência, ser proferida decisão que determine a culpa exclusiva da condutora do ciclomotor, infeliz vítima dos autos, e a consequente absolvição da Recorrente (bem como do arguido – art. 392o, no 2 al. c) do CPP”, condutora essa que “não respeitou o sinal de estrada com prioridade colocado na via em que seguia e por isso violou o artigo 25o, no 1 do Código da Estrada então em vigor”;
– 4) “a manter-se algum grau de culpa do arguido na produção do acidente, o que só por mero raciocínio se concede, entende a recorrente que no caso em apreço, atenta a conduta do arguido (valorada na mera culpa), e também considerado que a mãe dos recorridos contribuiu com 80% da responsabilidade na produção do acidente de que foi vítima, os montantes a atribuir aos recorridos a título de danos não patrominiais deverão sofrer”, ao abrigo do art.o 487.o do Código Civil de Macau, “uma justa redução”, devendo ser reduzida para não mais de MOP$50.000,00 a indemnização a atribuir a cada um dos filhos da vítima mortal a título de danos não patrimoniais sofridos com a morte da mãe, ser reduzida para MOP$25.000,00 a quantia de reparação de danos morais sofridos pela vítima mortal antes de falecer, e ser reduzido para MOP$300.000,00 o valor indemnizatório da perda do direito à vida; quanto à ofendida A, “também a quantia fixada a título de danos não patrimoniais é manifestamente exagerada e descabida face à matéria de facto dada como provada, pela qual deveria a mesma sofrer uma importante redução”.
Ao recurso subordinado, responderam os dois filhos herdeiros da vítima mortal (mormente a fls. 580 a 582), no sentido de inadmissibilidade legal de interposição de recurso subordinado respeitante ao julgado proferido pela Primeira Instância sobre o pedido cível então enxertado por eles dois na acção penal em questão.
Finalmente, respondeu a demandante A (a fls. 593 a 599) ao recurso subordinado da dita seguradora, defendendo a manutenção do acórdão recorrido na parte criminal e já não na parte cível, por desta parte ela também ter interposto recurso.
Subido o processo, determinou o relator (a fl. 611), em sede de exame preliminar, a notificação daquela seguradora pretendente de recurso subordinado, para se pronunciar sobre a eventualidade de o seu recurso na parte respeitante à vítima mortal do acidente de viação não ser conhecido, por a parte demandante cível em nome desta vítima não ter interposto recurso do acórdão final da Primeira Instância.
A isso veio expor a seguradora recorrente (a fls. 614 a 616) nuclearmente que “não se vislumbram quaisquer obstáculos legais a que o recurso seja apreciado in totum”.
Concluído depois o exame preliminar com relegação para final da questão de determinação do âmbito de conhecimento do objecto do dito recurso subordinado, foram colhidos os vistos legais, após o que se realizou a audiência de julgamento.
Cumpre agora decidir.
II – FUNDAMENTAÇÃO
De antemão, cumpre notar que este Tribunal de Segunda Instância (TSI), como tribunal ad quem, só tem obrigação de decidir das questões material e concretamente postas pela parte recorrente na motivação do recurso e ao mesmo tempo devidamente delimitadas nas respectivas conclusões, e já não decidir, da justeza, ou não, de todos os argumentos invocados pela parte recorrente para sustentar a procedência da sua pretensão (neste sentido, cfr., nomeadamente, os arestos deste TSI nos seguintes processos: de 4/3/2004 no processo n.° 44/2004, de 12/2/2004 no processo n.º 300/2003, de 20/11/2003 no processo n.º 225/2003, de 6/11/2003 no processo n.° 215/2003, de 30/10/2003 no processo n.° 226/2003, de 23/10/2003 no processo n.° 201/2003, de 25/9/2003 no processo n.º 186/2003, de 18/7/2002 no processo n.º 125/2002, de 20/6/2002 no processo n.º 242/2001, de 30/5/2002 no processo n.º 84/2002, de 17/5/2001 no processo n.º 63/2001, e de 7/12/2000 no processo n.º 130/2000).
Nesses parâmetros, é de determinar, desde já, o âmbito de conhecimento do objecto do recurso subordinado.
Ora, não tendo nenhuma das partes activa e passiva envolvidas na causa de pedido cível de indemnização, movida pelos dois filhos herdeiros C e D da vítima mortal E contra o arguido B, a Agência de Viagens e Turismo Chiu Iat, Limitada (como dona do veículo conduzido pelo arguido), e a Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), S.A. (como seguradora do mesmo veículo), chegado a interpor – no prazo de dez dias contado da leitura pública do acórdão final da Primeira Instância – recurso principal da decisão aí tomada pelo Tribunal Colectivo a quo sobre o mesmo pedido cível, não há realmente razão legal para essa seguradora vir interpor recurso subordinado tendente a rogar a alteração, a seu favor, de todo o já decidido nesse acórdão sobre o pedido cível dos referidos dois filhos herdeiros da vítima mortal (cfr. o art.o 394.o, n.o 1, do CPP, cuja filosofia se funda na existência de decaimento recíproco entre as duas partes civis – i.e., a activa e a passiva – de um mesmo pedido cível enxertado na acção penal). E independentemente disso, também não assiste razão legal à mesma seguradora (do veículo então conduzido pelo arguido) para impugnar o julgado penal feita em primeira instância, por ela não ser sujeito processual da causa penal, mas sim somente parte meramente civil na acção penal.
Do assim observado decorre a efectiva não admissibilidade do recurso subordinado pretendido por essa seguradora na parte respeitante à decisão penal emitida pelo Tribunal Colectivo a quo e ao pedido cível dos dois filhos herdeiros da vítima mortal do acidente de viação dos autos, com o que não é de conhecer, desde logo, todas as questões por ela postas a título principal na motivação do seu recurso subordinado, e já referidas acima no relatório do presente acórdão de recurso, com excepção da questão de omissão, no acórdão recorrido, da indicação sumária das conclusões contidas na contestação apresentada pela própria seguradora ora recorrente ao pedido cível da lesada A.
Ora, apesar de se verificar, de facto, que no último parágrafo da página 3 do texto do acórdão ora recorrido (a fl. 491), se disse, no tocante ao pedido cível dessa lesada, que a seguradora recorrente apresentou contestação escrita a fls. 367 a 374, que se dá por integralmente reproduzida no relatório do próprio aresto, afigura-se a este Tribunal ad quem que ao ter afirmado a reproduzução do teor da contestação dessa seguradora, o Tribunal a quo estava a referir-se também às conclusões nela contidas, pelo que não se torna mister proceder à requerida correcção do acórdão recorrido em sede do art.o 361.o, n.o 1, alínea a), e n.o 2, do CPP.
Assim sendo, resta decidir da sorte das questões remanescentemente colocadas, mas já a título subsidiário, no recurso subordinado, traduzidas no assacado exagero, cometido pelo Tribunal Colectivo a quo, na fixação de quantias indemnizatórias 1) dos danos morais sofridos pelos dois filhos herdeiros da vítima mortal, 2) dos danos morais da própria vítima falecida antes da morte, 3) da perda, pela mesma vítima, do direito à vida, e 4) dos danos morais da lesada A.
Pois bem, pela mesmíssima razão já acima aduzida, também não é de conhecer da questão de exagero na fixação dessas primeiras três referidas quantias indemnizatórias.
E no concernente ao imputado excesso na fixação da quantia indemnizatória dos danos morais da lesada A, esta questão irá ser resolvida em seguida em conjunto com a resolução do objecto do recurso principal interposto por essa lesada.
Para este efeito, e sendo intocada a repartição da culpa entre o arguido e a vítima mortal na produção do acidente de viação, por falta de recurso principal a interpor, por quem de direito, da decisão feita pelo Tribunal Colectivo a quo sobre o pedido cível dos dois herdeiros dessa vítima (tal como já se analisou acima), é de remeter aqui – sob aval do art.o 631.o, n.o 6, do Código de Processo Civil de Macau, ex vi do art.o 4.o do CPP – para toda a matéria de facto já dada por provada e materialmente referida na fundamentação fáctica do acórdão recorrido (a fls. 491v a 492v dos autos).
São postas as seguintes três questões no recurso da demandante A:
– 1) a defendida devida atribuição de indemnização dos lucros cessantes dela;
– 2) o devido aumento da quantia indemnizatória dos seus danos morais para seiscentas mil patacas, como inicialmente peticionada;
– e 3) a pretendida condenação da Companhia de Seguros Ásia, Limitada, a pagar os restantes 80% do total indemnizatório reclamado no seu pedido cível.
Começando pela última questão dessa demandante, cumpre observar que tendo a demandante ora recorrente fundado o seu pedido de indemnização cível exclusivamente no acto de condução do arguido como unicamente causador do acidente de viação, ela não pode aproveitar a presente sede de recurso do acórdão final da Primeira Instância para suscitar a “questão nova” de pretendida condenação da Companhia de Seguros Ásia, Limitada, como seguradora do ciclomotor conduzido pela vítima mortal, já que essa pretensão só agora formulada na sua motivação do recurso representa uma autêntica alteração da causa de pedir, alteração essa que – em face da discordância a resultar tacitamente da posição final (de pretendida manutenção do acórdão recorrido na íntegra) assumida por esta seguradora na resposta (de fls. 526 a 532) ao recurso da demandante recorrente – deixa de ser admissível na presente fase de recurso (cfr. o disposto no art.o 217.o, n.o 1, do CPC).
Na verdade:
– embora a Companhia de Seguros Ásia, Limitada, tenha figurado como sendo a 4.a demandada no intróito da petição cível então apresentada a fls. 262 e seguintes, a demandante ora recorrente não chegou a invocar aí (pelo menos subsidiariadamente para acautelar a sua posição processual na eventualidade de o Tribunal vir a repartir alguma percentagem da culpa do arguido na vítima mortal do acidente) quaisquer factos susceptíveis de fazer responsabilizar também civilmente a vítima mortal, mas sim só alegou factos atinentes à responsabilidade exclusiva do arguido pela produção do acidente;
– para constatar isto, basta ver a matéria fáctica alegada nos pontos 3, 10, 33 e 34 da petição cível da ora demandante recorrente, e a conclusão jurídica tecida no ponto 42 dessa petição, e a pretensão materialmente formulada no ponto 44 do mesmo petitório (redigido nos seguintes termos literais a fl. 269: “O veículo pesado causador do acidente à data do acidente encontrava-se registado em nome da 2a requerida “Agência de Viagens e Turismo Chiu Iat”, que por sua vez estava segurado na “COMPANHIA DE SEGUROS CHINA”, ora o veículo conduzido pelo arguido-comissário, para a qual foi transferida a responsabilidade, (apólice noPTV-04-007082-A) pelo que esta deverá responder, solidariamente, pelos danos causados, nos termos do disposto nos art.os 493o, 496o e 500o do Código Civil em vigor”), tendo a própria Companhia de Seguros Ásia, Limitada, na contestação apresentada a fls. 333 a 338, requerido a sua absolvição do pedido, “por falta de causa de pedir relativamente a si”, e, subsidiariamente, a sua absolvição da instância, por ser parte ilegítima, “uma vez que a relação material controvertida não lhe diz respeito”;
– pelo que decidiu bem o Tribunal Colectivo ao absolver essa seguradora da instância do pedido cível, por não ser parte legítima (cfr. o segundo parágrafo da página 13 do acórdão recorrido, a fl. 496).
Razões por que este Tribunal ad quem não pode tomar conhecimento da acima referida questão nova, sem prejuízo, naturalmente, de a ora recorrente vir a intentar nova acção cível de indemnização contra a dita seguradora do ciclomotor então conduzido pela vítima mortal.
E no que à primeira questão diz respeito, tendo o Colectivo a quo dado por provada (conforme o exposto no 3.o parágrafo da página 6 do acórdão recorrido) a matéria alegada no ponto 13 do pedido cível (a fl. 264), no sentido de que “À data do acidente a autora estava desempregada, porque o Centro de Beleza e Tratamento Chun Lam onde a requerente exercia a profissão de massagista dos pés encontrava-se encerrado a partir de Abril de 2004, embora e por isso mesmo a A. andasse a arranjar emprego”, e dado como não provada (segundo o afirmado no penúltimo parágrafo da mesma página 6 do acórdão impugnado) a matéria alegada no ponto 21 do mesmo pedido cível (a fl. 265), formulado pela demandante recorrente nomeadamente nos seguintes termos “Antes do acidente, ... e no âmbito da sua profissão em que se valoriza a experiência profissional, a A. pode trabalhar até aos 60 anos, isto é, mais 7 anos, pelo que aos lucros cessantes previsíveis durante esse período corresponde a MOP$6.000,00 x 96 meses (8 anos x 12) = Mop$576.000,00”, não pode realmente proceder a pretensão de atribuição de indemnização por alegados “lucros cessantes”, por não estarem os respectivos pressupostos legais concretamente provados (cfr. o art.o 558.o do Código Civil de Macau), sendo, pois, de manter a decisão recorrida nesta matéria.
Por fim, em relação à segunda questão posta pela demandante recorrente, que é comum à última questão subsidiariamente levantada (embora em sentido antagónico) no recurso subordinado, entende o presente Colectivo ad quem que atentas todas as circunstâncias fácticas já apuradas no acórdão recorrido, à luz do disposto no art.° 487.°, ex vi do art.° 489.°, ambos do Código Civil de Macau, sendo de frisar aqui que não há nenhuma fórmula sacramental para a matéria em causa, por cada caso ser um caso, cuja solução depende naturalmente dos ingredientes em concreto apurados, é de confiar o juízo de valor já equitativamente formado pelo Tribunal Colectivo a quo no sentido de fixar inicialmente a quantia (i.e., sem o devido desconto em função da percentagem da culpa da vítima mortal) destinada à reparação dos danos morais sofridos pela demandante A em trezentas mil patacas.
Dest’arte, não é de alterar a decisão recorrida, sendo de notar que devido ao princípio do dispositivo (e por isso não obstante a posição jurídica obrigatória firmada no recente douto Acórdão uniformizador de jurisprudência do Venerando Tribunal de Última Instância, de 2 de Março de 2011, do Processo n.o 69/2010), não se pode alterar agora o termo inicial de contagem de juros legais das quantias indemnizatórias de danos patrimoniais e danos morais, visto que a decisão da Primeira Instância nesta matéria concreta (que mandou contar todos os juros somente a partir do trânsito em julgado da decisão) não chegou a ser impugnada pelos dois filhos herdeiros da vítima mortal que então tinham pedido, na parte final do seu petitório civil de fls. 218 a 230, que os juros legais vencessem em momento anterior.
III – DECISÃO
Em sintonia com o exposto, acordam em:
– negar provimento ao recurso principal interposto pela lesada A do acórdão final da Primeira Instância, com custas deste recurso por esta demandante, sem prejuízo dos efeitos do apoio judiciário já concedido (a fl. 327);
– julgar não admissível o recurso subordinado pretendido pela demandada Companhia de Seguros da China Taiping (Macau), S.A. na parte respeitante à decisão penal emitida pelo Tribunal Colectivo a quo e ao pedido cível dos dois filhos herdeiros da vítima mortal do acidente de viação dos autos, e indeferir a requerida correcção do acórdão recorrido, e julgar ainda improcedente o remanescente objecto desse recurso subordinado, com custas deste recurso a cargo da mesma seguradora;
– com o que fica intacta a decisão recorrida.
Fixam em três mil patacas os honorários do Exm.o Patrono Oficioso da demandante recorrente A, a suportar pelo Gabinete do Presidente do Tribunal de Última Instância.
Macau, 2 de Junho de 2011.
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Chan Kuong Seng
(Relator)
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Tam Hio Wa
(Primeira Juíza-Adjunta)
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José Maria Dias Azedo
(Segundo Juiz-Adjunto)
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