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 Recurso Contencioso n. 175/2006
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 19 de Maio de 2011
Descritores: Procedimento disciplinar
Violação de deveres profissionais

SUMÁRIO:

Para se concluir pela violação dos deveres de desobediência e de zelo, não basta que o acto punitivo se funde em meras proposições conclusivas, pois é necessário que sejam claramente aduzidos factos concretos dos quais se possa inferir a conduta infraccional.




(Recurso Contencioso nº 175/2006)


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM


I- Relatório


A, guarda do Corpo de Polícia de Segurança Pública de Macau veio interpor recurso contencioso do despacho do Senhor Secretário para a Segurança de Macau, datado de 13/03/2006 proferido nos autos de processo disciplinar, em sede de recurso hierárquico interposto do despacho de 14/12/2005 do Comandante do Departamento Policial das Ilhas, que lhe reduziu de três para dois os dias de multa por violação dos deveres previstos no artigo 6º, n.2, al.a) e no art. 8º, n.2, al. h), do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau.

Ao acto assacou vícios de erro de direito e vício de forma por falta de fundamentação, nos termos das conclusões da petição inicial que aqui se transcrevem:
1. O Recorrente, após a tiragem de fotocópias de documentos, ao depositá-los no receptáculo situado sobre a secretária da sua colega, pode considerar-se ter-lhe entregue pessoalmente, uma vez que tal, não só corresponde à prática, mas expressamente é indicado pela referida colega.
2. A prática de serviço e as condições de trabalho, no caso vertente, tem uma influência decisiva sobre a conduta do Recorrente, nomeadamente no que respeita ao cumprimento dos seus deveres.
3. A conduta do Recorrente não integra qualquer violação dos deveres de obediência e de zelo como é referido na decisão ora recorrida.
4. Ao fazer esta interpretação da lei, a entidade recorrida violou ela os arts. 6º, 2, a) e 8º da ESFM.
5. O extravio dos talões de multa em nada tem a ver com a conduta “punida” do Recorrente, e os autos não são suficientes na demonstração do nexo de causalidade conducente à sua responsabilização.
6. A entidade recorrida não indica que instruções de serviço o Recorrente não deu devida observância.
7. A indicação destas instruções - se é que existem - é fundamental para o juízo que se deva fazer sobre a conduta do Recorrente, em sede de apreciação sobre o zelo no desempenho das suas funções.
8. Porque isto equivaleria a uma falta de fundamentação do acto, o que o inquina de invalidade.
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Contestou a entidade recorrida, defendendo a validade do acto impugnado.
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O digno Magistrado do M.P. opinou no sentido da procedência do recurso
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Cumpre decidir.
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II- Pressupostos processuais
O tribunal é competente em razão da nacionalidade, matéria e hierarquia.
O processo é o próprio e não há nulidades.
As partes gozam de personalidade e capacidade judiciárias e são legítimas.
Não há outras excepções ou questões prévias que obstem ao conhecimento de mérito.

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III- Os Factos

1- Instaurado contra o ora recorrente um procedimento disciplinar, foi na oportunidade deduzida a acusação, de 8/08/2005, com seguinte teor:

“Acusação -
----- Nos termos do artigo 274.º n.º 2 do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aprovado pelo Decreto-Lei n.º 66/94/M, de 30 de Dezembro, deduzo a seguinte acusação contra o arguido A, guarda n.º XXXXXX, fixando-lhe um prazo de 10 dias para apresentar a defesa escrita ao abrigo do artigo 275.º n.º 1 do mesmo Estatuto.-----------
(1)
----- Em 16 de Fevereiro de 2005, depois de receber a Notificação da Divisão Policial do Aeroporto n.º 26412005 (à qual se anexavam 7 talões de multa de trânsito n.ºs 45000414, 45000415, 45000114 a 45000118), B, guarda que trabalha na Secção de Expediente e Arquivo do Departamento Policial das Ilhas, entregou-os ao arguido A que também trabalha na mesma Secção. Recebidos a notificação e os talões de multa de trânsito anexados, o arguido procedeu à tiragem de fotocópias dos mesmos, e seguidamente, depositou-os no receptáculo de documentos da referida Secção, sem devolvê-los directamente à guarda B. Em 23 de Fevereiro do mesmo ano, foi descoberto que dos 7 talões de multa de trânsito anexados à referida notificação, 6 estavam desaparecidos (n.ºs 45000414, 45000415, 45000115 a 45000118) e só o talão n.º 45000114 encontrava-se anexado à referida notificação. Após buscas, só se conseguiu encontrar no Departamento de Trânsito um dos talões de multa de trânsito desaparecidos, n.º 45000115, e os restantes 5 ainda se encontram extraviados.--------------------------------------------------------------------------
(2)
----- A negligência do arguido causou o extravio dos 5 talões de multa de trânsito emitidos aos transgressores na denúncia que provocou, sem dúvida, a perda do efeito prático da denúncia de transgressão. A conduta do arguido já constitui evidentemente a violação dos dispostos no artigo 6.º (dever de obediência) n.º 2 alínea a) e no artigo 8.º (dever de zelo) n.º 2 alínea h), ambos previstos no Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau.--------------------------------------------------------------
(3)
----- O arguido tem circunstância atenuante prevista no artigo 200.º n.º 2 alínea h) e circunstância agravante consagrada no artigo 201.º n.º 2 alínea f) do mesmo Estatuto.-----------------------------------------------------
(4)
----- Nos termos do artigo 219.º alínea c) e do artigo 235.º do aludido Estatuto, a infracção disciplinar praticada pelo arguido deve ser punida com pena de “multa”.--------------------------------------------------------------
2- O recorrente apresentou, então, a sua defesa, nos termos que seguem:
“Exmo. Senhor Comandante do CPSP,
  Eu, A, guarda n.º XXXXXX, considerando que a acusação deduzida contra mim no processo disciplinar n.º 60/2005 não é justa e os factos daí constantes também não correspondem à verdade, venho expor à V. Exa. a verdade dos factos e as provas do acontecimento em causa:
1. Em 16 de Fevereiro de 2005, depois de proceder à classificação (arquivar ou enviar) de todos os documentos nos quais o Comandante do Departamento Policial das Ilhas já tinha despachado, B, guarda n.º XXXXXX, que desempenha as funções de recepção, distribuição e tiragem de fotocópias dos documentos entrados e saídos na Secção de Expediente e Arquivo do Departamento Policial das Ilhas, colocou à vontade os documentos a ser enviados na prateleira ao lado da máquina de fotografia da Secção, sem proceder à tiragem de fotocópias dos referidos documentos.
2. Posteriormente, como a guarda-ajudante C estava de férias, ninguém ficava responsável pelo seu trabalho para ajudar a Guarda B a tirar fotocópia. Para isso, em cumprimento da instrução da chefia, eu responsabilizava-se temporariamente pelo trabalho de tiragem das fotocópias de relatórios, e depois de proceder à tiragem de fotocópias de todos os relatórios a serem enviados (incluindo a Notificação do Departamento Policial do Aeroporto n.º 264/2005), eu depositava, em frente da Guarda B e com o seu consentimento, os documentos no receptáculo de documentos (esse receptáculo exclusivo para depositar documentos tem sido colocado na secretária da Guarda B ao longo do tempo em que tenho prestado serviço na referida Secção), sendo isso uma forma exigida ao longo do tempo pela Guarda B para passar documentos, todos os documentos por mim entregues à Guarda B para registar e enviar deviam ser depositados no receptáculo de documentos colocado na secretária dela, como maneira para confirmar os documentos já entregues em mão da Guarda B.
3. Segundo os procedimentos de trabalho da Secção de Expediente e Arquivo do Departamento Policial das Ilhas, todos os documentos a serem enviados a outros departamentos só podem ser entregues ao guarda encarregado da expedição de documentos depois de ser registados no livro de registo e ser conferidos.
4. Porém, a Guarda B demorou o envio dos referidos documentos até dia 23 de Fevereiro de 2005. Na manhã daquele dia, o guarda encarregado da expedição de documentos dirigiu-se à minha frente, mostrou-me a notificação do Departamento policial do Aeroporto n.º 264/2005 que deveria ser enviada e disse-me que depois de examinar pormenorizadamente todos os documentos a ser enviados, descobriu que os números concretos dos talões de multa de trânsito não correspondiam aos referidos na notificação. A guarda B não informou este caso à chefia, mas achei que este foi um caso grave que devia ser informado, por isso, foi assim que se descobriu este caso de extravio dos talões de multa de trânsito.
5. Durante o período acima referido, era B que se responsabilizava sozinho diariamente pelo registo de documentos saídos e este facto está registado no livro de registo de correspondências saídas.
6. Após buscas, dos 6 talões desaparecidos, foi encontrado o talão n.º 45000115 no Departamento de Trânsito. Na altura, a referida notificação ainda se encontrava na Secção, mas o talão de multa de trânsito já tinha sido enviado ao Departamento de Trânsito. Isto é uma prova forte para comprovar que B cometeu grave culpa na gestão dos documentos entrados e saídos.
7. Desde o momento em que foi descoberto o extravio dos talões de multa de trânsito até à investigação realizada pela chefia e à apresentação do relatório de investigação ao superior, mesmo antes da instauração do processo disciplinar contra B, a chefia fez várias advertências e interrogações em frente do pessoal da nossa Secção, indicando a gravidade da aludida culpa, contudo, a guarda B não fez nenhum esclarecimento nem negou os factos supra citados.
8. O relatório de investigação com provas de factos elaborado pela chefia já revela expressamente que a guarda B deve assumir a responsabilidade do acontecimento em causa enquanto eu sou uma testemunha importante do acontecimento.
Os factos irrefutáveis supracitados não podem ser deturpados. Tais factos também podem provar que o referido extravio não tem nada a ver com o decurso de a Guarda B receber os documentos por mim entregues. A acusação contra mim é injusta, e ao mesmo tempo, também há provas que comprovam a existência dos factos injustos para comigo durante duas instruções. Desde a instauração do processo disciplinar contra B (guarda n.º XXXXXX), eu tornei-me de uma testemunha importante para um arguido, e posteriormente, acabei por ser acusado no processo disciplinar. Assim, cabe-me perguntar, será que há alguém que negou intencionalmente os factos para exercer represálias sobre mim porque eu informei o caso ao superior e comprovei as culpas da guarda B? Actualmente, sofri enorme ofensa moral. Sendo um guarda policial que defende a dignidade da lei e da disciplina, fico muito magoado porque sofri ameaça à segurança pessoal nas corporações policiais. Nestes termos, venho solicitar ao Exmo. Senhor Comandante que defenda a justiça, no sentido de me absolver da acusação injusta.
Com os melhores cumprimentos”.
3- Em 14/12/2005, foi proferido pelo Comandante do DPI o seguinte despacho:
“Têm-se as seguintes provas:
1. Os arguidos, guarda n.º XXXXXX B e guarda A, são secretários da Secção de Expediente e Arquivo, e o arguido, chefe n.º XXXXX D, é chefe da Secção de Expediente e Arquivo.
2. Em 16 de Fevereiro de 2005, a guarda B recebeu a comunicação n.º 264/2005 da Divisão Policial do Aeroporto (com 7 talões de multa em anexo), e entregou-a ao arguido A. O arguido fez a fotocópia dos referidos documentos, e mais tarde, colocou-os na cesta de documentos em vez de devolvê-los directamente à guarda B. Em 23 de Fevereiro do mesmo ano, descobriu-se que 6 dos talões de multa anexos à supracitada comunicação eram extraviados, e estava anexo à comunicação apenas um talão de multa. Mais tarde, encontrou-se apenas um outro talão de multa no Departamento de Trânsito, e os outros 5 ainda não são achados.
3. Em 24 de Fevereiro, a arguida enviou por engano a comunicação n.º 735/2005 do Comissariado Policial da Taipa junto com outras comunicações ao Departamento de Trânsito. Como resultado, os 80 talões de multa anexos à referida comunicação foram enviados ao Departamento de Trânsito junto com outro documento e com demora. Além disso, ao receber dois ofícios do Ministério Público e do CPSP, a arguida não fez o registo de entrada, nem os entregou de imediato ao superior ou respondeu ao superior.
4. Em 14 de Março de 2005, o superior da arguida, o chefe D, perguntou à arguida sobre o atraso dos supracitados documentos, a falta de registo de entrada, o extravio dos talões de multa e o atraso no envio dos documentos, e a arguida tomou uma atitude não cooperativa e de desrespeito e usou palavras de extremos na sua resposta.
5. Os arguidos B e A prestaram respectivamente as suas defesas no prazo indicado.
 A arguida B violou os deveres previstos no art.º 6.º (dever de obediência), n.º 1 e n.º 2, al. a); no art.º 8.º (dever de zelo), n.º 1 e n.º 2, al.s a), b) e e); e no art.º 11.º (dever de correcção), n.º 1 e n.º 2, al.s c) e d) do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau.
 O arguido A violou os deveres previstos no art.º 6.º (dever de obediência), n.º 2, al. a); no art.º 8.º (dever de zelo), n.º 2, al. h) do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau.
 Com base nisso, de acordo com a competência me concedida pelo art.º 211.º n.º 1 do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, aplico respectivamente à guarda n.º XXXXXX B e ao guarda n.º XXXXX A a multa de 3 dias.
 Não há indícios de que o chefe D defendeu com parcialidade o guarda A, pelo que procedo ao “arquivamento”.
 Já considerei as circunstâncias atenuantes e agravantes previstas no estatuto acima referido ao aplicar as penas.
 Para o visto do Comandante Substituto. Na Taipa, aos 14 dias de Dezembro de 2005
Comandante do DPI
 4- O recorrente apresentou, então, recurso hierárquico, que concluiu da seguinte maneira:
1. O Recorrente, após a tiragem de fotocópias de documentos, ao depositá-los no receptáculo situado sobre a secretária da sua colega, pode considerar-se ter-lhe entregue pessoalmente, uma vez que tal, não só corresponde à prática, mas expressamente é indicado pela referida colega.
2. Tal conduta não integra qualquer violação dos deveres de obediência e de zelo como é referido na decisão ora recorrida.
3. Ao fazer esta interpretação da lei, a entidade recorrida violou ela os arts. 6º, 2, a) e 8º da ESFM.
4. O extravio dos talões de multa em nada tem a ver com a conduta “punida” do Recorrente, e os autos não são suficientes na demonstração do nexo de causalidade conducente à sua responsabilização.
5. Ainda que a entidade recorrida tenha razão, a pena aplicada é excessiva. Pois os actos praticados pelo Recorrente, em caso de serem censuráveis, mereceriam quando muito uma repreensão escrita”.
5- Em 13/03/2006, o Ex.mo Secretário para a Segurança decidiu o recurso nos termos seguintes (fls. 159/161):
“ Vem o recorrente, A, guarda do CPSP n.º XXXXXX, interpor o presente recurso hierárquico por não se conformar com o despacho de 14 de Dezembro de 2005 do Comandante do Departamento Policial das Ilhas (o qual já foi confirmado pelo despacho de 8 de Fevereiro de 2005 do Exmo. Senhor Comandante Substituto do CPSP), no qual, segundo a infracção disciplinar descrita na acusação deduzida a fls. 65 do processo disciplinar, foi-lhe aplicada a pena de multa de 3 (três) dias por violação dos deveres previstos no artigo 6.º n.º 2 alínea a) e no artigo 8.º n.º 2 alínea h) do vigente Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau.
   Compulsados os autos do processo disciplinar, entendemos que as provas constantes dos autos já são suficientes para apurar o decurso do extravio dos 5 talões de multa de trânsito.
   O recorrente do presente recurso hierárquico alegou que depois da tiragem de fotocópias dos referidos documentos, o depósito dos mesmos no receptáculo de documentos considera-se ter os entregue pessoalmente à Guarda B, e que não existe nexo de causalidade suficiente entre o extravio dos documentos em causa e o acto punido.
   Os fundamentos invocados não têm força convincente. Quanto a isso, o Exmo. Senhor Comandante Substituto do CPSP já fez boa análise na sua Informação de 3 de Março de 2006, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para os devidos efeitos. Em síntese, as condutas imputadas ao recorrente A são: o recorrente não cumpriu o referido trabalho como devia ser e faltou a consciência de guardar documentos.
   Assim, é indubitável a imputação ao recorrente da violação dos deveres de obediência e zelo que o recorrente devia cumprir, por isso, a conduta do recorrente pode ser definida como violação dos deveres previstos no artigo 6.º n.º 2 alínea a) e no artigo 8.º n.º 1 (o despacho punitivo aplicou erradamente a circunstância típica consagrada na alínea h), por isso, vamos aqui fazer uma revisão) que só constitui circunstâncias atenuantes previstas no artigo 200.º n.º 2 alíneas b) e h) do aludido Estatuto.
   Pelo acima exposto, não existe nenhum vício da violação da lei neste processo disciplinar mas pode ser reduzida a pena imposta. Nestes termos, ao abrigo das competências que me são conferidas pelo Anexo IV alínea 4) previsto no artigo 4.º n.º 2 do Regulamento Administrativo n.º 6/1999, com a nova redacção dada pelo Regulamento Administrativo n.º 25/2001, e pela Ordem Executiva n.º 13/2000 n.º 1, decido reduzir a pena de multa de 3 (três) dias imposta ao recorrente A, Guarda do CPSP n.º XXXXXX, para a pena de multa de 2 (dois) dias.
   Manda-se o CPSP notificar o recorrente nos termos da lei que se pode interpor recurso contencioso do presente despacho (em conjunto com a Informação acima referida) para o Tribunal de Segunda Instância, no prazo de 30 dias”
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III- O Direito
Como se vê da matéria da acusação e do acto final do procedimento disciplinar instaurado contra o recorrente, que o acto recorrido também não contrariou, em causa estaria uma conduta infraccional que preencheria a violação dos deveres de obediência e de zelo, previstos nos arts. 6º, n.2, al. a) e art. 8º, al.h), ambos do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau. Conduta que teria consistido no facto de, após ter extraído fotocópias de documentos (comunicação 264/2005 e 7 talões de multa) que tinha recebido da colega B (ambos são secretários da Secção de Expediente e Arquivo do Departamento Policial das Ilhas), os ter colocado no receptáculo (cesta) de documentos colocada na secretária daquela, em vez de lhos devolver pessoalmente. Isto ter-se-ia passado em 16 de Fevereiro de 2005. No dia 23 desse mês, ter-se-ia descoberto que 6 talões de multa tinham desaparecido e que só um deles se encontrava anexado à referida notificação. Após buscas, apenas apareceu mais um talão.
Por causa disto, o arguido foi punido, alegadamente por desobediência e falta de zelo.
Acontece que, nem a acusação, nem o despacho final sancionatório, nem mesmo o despacho proferido em sede de recurso hierárquico, dão explicação cabal para o preenchimento dos ilícitos. Assim, não sabemos a que propósito se pode dizer tê-los o recorrente cometido.
Por exemplo, desobediência porquê? É preciso lembrar que a fonte normativa invocada se revela no art. 6º, ns 1 e 2, al. a), do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau, com o seguinte teor:
1. O dever de obediência consiste no estrito cumprimento das leis e regulamentos e no acatamento e cumprimento pronto das ordens e instruções dos seus legítimos superiores, dadas em matéria de serviço e na forma legal.
2. No cumprimento do dever de obediência, o militarizado deve designadamente:
a) Cumprir as leis, regulamentos e instruções relativas ao serviço;
Havia alguma instrução de serviço clara e expressa, oral ou escrita, sobre a forma como devia proceder? Alguém lhe deu ordem inequívoca de que tinha que devolver pessoalmente os documentos recebidos ao colega que lhos entregou para fotocopiar? Havia algum diploma legal ou regulamentar que determinava o modo de agir por parte deste arguido no exercício das suas funções concretas, nomeadamente aquelas que estiveram na base da pretensa infracção?
Desconhecemos. Ora, esse elemento era importante e imprescindível para se fazer a subsunção factual ao direito aplicável. Realmente, só desobedece quem procede de modo diferente daquele que sobre si impende, seja em virtude de ordens e comandos concretos oriundos dos superiores hierárquicos, seja por causa de regras e normas disciplinadoras de determinado tipo de acção.
Também seria preciso atentar na alegação da sua defesa, pois o arguido dizia que sempre colocou os documentos no tal receptáculo ao longo do tempo em que vinha prestando serviço naquela secção. Isto parece querer dizer que os hábitos de trabalho - o modus faciendi - eram precisamente aqueles que o arguido descrevia. E nada surpreende que assim tivesse sucedido, uma vez que, embora a entrega dos documentos não tivesse sido em mão própria, a verdade é que eles foram depositados na cesta existente para o efeito na secretária da referida colega B. E se esse era o modo repetido de proceder, não é despiciendo pensar que aquela era uma forma de fazer a entrega dos documentos ao seu destinatário (não se entregavam pessoalmente à colega Ieng, mas eram colocados na cesta de depósito de documentos que existia na secretária dela).
Dizer, como disse o despacho aqui impugnado, que o recorrente “não cumpriu o referido trabalho como devia ser e faltou a consciência de guardar documentos” é, evidentemente, muito pouco, muito conclusivo e nada concreto. E a informação de 3/03/2006 (fls. 104/106) que antecedeu este despacho recorrido também é pouco ou nada esclarecedora. Limitou-se a contrariar a tese do arguido na sua defesa e no recurso hierárquico dizendo que “isso não quer dizer que esse seja o modo correcto de cumprir as instruções de serviço. Efectivamente, devia ter sido outra a sua conduta”. Estas são proposições demasiado conclusivas e não encerram matéria de facto concreta. Mas, que instruções de serviço? Em que termos precisos e quando foram elas tomadas? E quando foram dadas a conhecer ao arguido? Nada foi dito a este respeito.
Por conseguinte, para se preencher o ilícito, seria necessário algo mais do que o que foi dito na acusação e no acto punitivo. Fica-se sem saber, portanto, se aquela prática era consentida, habitual e tolerada, ou se era desconhecida dos seus superiores ou, até, se era frontalmente contra ordens ou regras imperativas sobre o modo de agir em tais situações.
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Quanto à falta de zelo, não esqueçamos o teor do art. 8º, n1 e 2, al. h), do referido Estatuto, que assim reza:
1. O dever de zelo consiste em conhecer as normas legais e regulamentares e as instruções de serviço dimanadas dos superiores hierárquicos, bem como em adquirir e aperfeiçoar conhecimentos e métodos de trabalho, de modo a exercer as funções com eficiência e empenhamento.
2. No cumprimento do dever de zelo o militarizado deve designadamente:
(…) h) Não destruir, inutilizar ou, por qualquer forma, desviar do seu destino legal artigos pertencentes ao serviço ou a terceiros;
Ora, aqui valem as considerações dubitativas que acabamos de fazer para a pretensa violação do dever de obediência. Na verdade, também quanto a este outro aspecto faltam informações necessárias à compreensão da violação do dever em apreço. Por exemplo, em que consistiria ela: por não ter cumprido instruções de serviço? Por não ter adquirido conhecimentos e hábitos de trabalho de modo a exercer as funções com eficiência e empenhamento? Ou por ter destruído, inutilizado ou desviado do seu destino legal aqueles documentos pertencentes ao serviço? Não sabemos.
Aliás, a respeito do desaparecimento (se alguma vez fosse essa a intenção da entidade punitiva) não foi a digna entidade recorrida capaz de afirmar claramente que ele tivesse sido provocado intencionalmente pelo arguido/recorrente, ou, menos ainda, que o arguido tivesse destruído, inutilizado ou desviado tais documentos, o que supomos se deve ao facto de nada a esse respeito o procedimento ter apurado.
Em suma, nada sabemos porque o acto não o disse e porque os elementos do procedimento não o revelam, sequer, também.
Estamos, pois, como o digno Magistrado do Ministério Público no seu parecer final: não nos encontramos perante matéria bastante que legitime a integração e subsunção operadas no sentido do atropelo dos deveres de zelo e obediência.
E isto tanto serve para concluirmos pela falta de fundamentação, contra o comando do art. 114º, n.1, al. a), do CPA, como para se afirmar que aquela matéria de facto é insuficiente para os integrar e subsumir aos ilícitos apontados, o que traduz o erro sobre os pressupostos de facto e de direito ou, até noutra perspectiva, a própria violação dos artigos invocados: arts. 6º, n.2, al.a) e 8º, n.2, al. h), do Estatuto dos Militarizados das Forças de Segurança de Macau.
Em suma, o recurso merece proceder.

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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em julgar procedente o recurso contencioso e anular o acto recorrido.
Sem custas.


TSI, 19/05/2011
Presente José Cândido de Pinho
Vítor Coelho Lai Kin Hong
Choi Mou Pan