Processo nº 324/2011 Data: 23.06.2011
(Autos de recurso penal)
Assuntos : Transgressão laboral.
Erro notório na apreciação da prova.
Reenvio.
SUMÁRIO
1. O vício de erro notório apenas ocorre quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.
De facto, é na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.
2. Resultando de documento autêntico junto aos autos, que a arguida, como pessoa colectiva que é, foi apenas constituída em 15.01.2007, constata-se erro na apreciação da prova se o Tribunal dá como provado que C começou a trabalhar para a mesma em 03.06.1985.
O relator,
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José Maria Dias Azedo
Processo nº 324/2011
(Autos de recurso penal)
ACORDAM NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
Relatório
1. Por sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. decidiu-se condenar “”A LIMITADA”, pela prática de uma contravenção prevista e punida pelo art. 48°, n.° 1 e 50°, n.° 1, al. a) do Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril, na multa de três mil e cem patacas (MOP$3.100,00) e no pagamento a C de uma indemnização de MOP$260.636,00; (cfr., fls. 247 a 247-v e 299 a 299-v que como as que se vierem a referir, dão-se aqui como reproduzidas para todos os efeitos legais).
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Inconformado com o decidido a arguida recorreu para, em sede da sua motivação, produzir as conclusões seguintes:
“a) Foi a ora recorrente condenada em processo contravencional de trabalho no seguinte:
• “… pela prática de uma contravenção prevista no art. 48°, n° 1 da Lei n° 24/89/M, de 3 de Abril, na multa de MOP$3.000,00, nos termos do art° 50°, n° 1, al. a) do mesmo diploma”; e
•“…pagar a C uma indemnização de MOP$260.636,00, cujo montante corresponde ao do mapa de apuramento calculado pela DSAL.”
b) Dão-se aqui por reproduzidos os factos provados e os factos não provados, no decurso da audiência de julgamento;
c) Não se conforma a recorrente com a decisão em apreço porquanto, salvo o devido respeito, verifica-se um erro notório na apreciação da prova que conduz a erro de julgamento, nos termos da alínea c) do n.° 2 e n.° 1 do art.° 400 do C.P.P ..
Na verdade,
d) Encontra-se provado documentalmente nos autos (cfr. fls. 73 a 75) que a recorrente - A Limitada, uma sociedade por quotas - foi constituída no dia 15 de Janeiro de 2007.
e) Assim sendo, dando a sentença recorrida como provada a constituição de uma relação laboral entre o trabalhador C e a recorrente, com início em 3 de Junho de 1985, deu-se como assente um facto impossível.
De facto,
f) A sociedade recorrente nunca poderia ter constituído uma relação laboral com o citado trabalhador quando, na referida data, inexistia.
g) Entende, por isso, a recorrente que todo o processo instrutório - aquele que consta dos autos processado pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais - enferma “ab initio” de um manifesto erro que foi o de considerar o vínculo laboral do trabalhador C, desde 3 de Junho de 1985 e até à cessação do contrato (em 28 de Junho de 2008), com uma única entidade patronal.
h) A recorrente, A Lda., e a firma “B” são pessoas jurídicas diferentes, subsistindo ambas de facto e de direito, não se tendo processado nunca a substituição de uma por outra, nem sendo a mesma empresa.
Consequentemente,
i) Deste, salvo o devido respeito, erro notório na apreciação da prova resultou em erro de julgamento.
j) Não constando da sentença recorrida a apreciação pelo Tribunal “a quo” da situação supra referida - ou seja, a impossibilidade jurídica manifesta de uma das partes numa relação laboral não ter existência à data do alegado início da mesma (3 de Junho de 1985) - todas as consequências jurídicas deste facto estão viciados, por erro de julgamento.
Assim sendo,
k) Tendo em conta que o Tribunal “a quo” julgou “não válida” a denúncia do contrato de trabalho efectivada pela recorrente; e a manifesta existência de uma relação de trabalho entre o trabalhador e a recorrente de apenas 1 ano (entre Janeiro de 2007 e Julho de 2008), a indemnização a que alude o n.° 1 do art.° 48° do D.L. n.° 24/89/M, deve ser reduzida, nos termos seguintes:
$283.30 (salário diário) x 10 (alínea b) do n.° 4 do art.° 47°) x 2; perfazendo a quantia total de MOP$5,666.00 - e não aqueloutra de MOP$260,636.00 em que a sentença recorrida condenou a recorrente.
Termos em que, nos termos peticionados, deverá ser dado provimento ao presente recurso”; (cfr., fls. 264 a 270).
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Respondendo, afirma o Exmo. Magistrado do Ministério Público que:
“1. C ingressou na empresa em 3 de Junho de 1985.
2. B mudou o nome para A Limitada em 15 de Janeiro de 2007.
3. O funcionamento da empresa e os seus empregados não tinham mudança, de facto, ainda foi a mesma empresa.
4. Mesmo que não entenda que B e A Limitada são a mesma empresa, tendo em conta o funcionamento normal desta bem como os factos de que esta não elaborou de novo contratos laborais com os seus empregados e só se encontrou alterado o registo do empresário, poder-mos-ia ter certeza de que se trata da alienação da empresa comercial.
5. Nos termos do art.° 111.° do Código Comercial, sucessão nos contratos de trabalho, mantêm-se os direitos e obrigações resultantes dos contratos de trabalho, pelos quais se responsabiliza a empresa nova,
salvo se tiver havido outro acordo.
6. As testemunhas da parte patronal confirmaram que C ingressou na empresa em 3 de Junho de 1985.
7. Na carta de demissão também se encontra o mesmo.
8. Nestes termos, a decisão do Tribunal está em conformidade com os dispostos legais e não há “erro notório na apreciação da prova”.
9. Deve manter-se o valor da indemnização”; cfr., fls. 278 a 280 e 301 a 306).
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Nesta Instância e em sede de vista, juntou o Ilustre Procurador Adjunto o seguinte douto Parecer:
“Cremos que assiste razão à recorrente quanto à verificação, “in casu”, do erro notório na apreciação da prova.
Vejamos.
O vício em apreço, como é sabido, pode resultar de uma incompatibilidade “entre o meio de prova invocado na fundamentação e os factos dados como provados com base nesse meio de prova - por exemplo, a incompatibilidade entre o conteúdo do documento invocado na fundamentação e o facto dado como provado com base nesse meio de prova” (cfr. Paulo Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, 33 Ed., pg. 1095).
E é isso que ocorre, a nosso ver, na hipótese vertente.
Como se frisa na motivação, na verdade, o documento de fls. 73 a 75 não se compagina com o facto dado como assente de o trabalhador em causa ter iniciado a sua relação laboral com a arguida em 3/6/1985.
E é certo, a propósito, que a convicção do Tribunal se baseou, além do mais, na “apreciação no julgamento das provas documentais”.
Esta Segunda Instância não pode, naturalmente, corrigir esse erro.
Daí, também, que o mesmo implique o reenvio do processo para novo julgamento (cfr. arts. 400°, n°, 2, al. c) e 418°, do C. P. Penal).
Um outro vício se divisa, entretanto, na douta sentença.
Deve entender-se, em nosso juízo, que “quando se verifique divergência entre o conteúdo do documento autêntico ou autenticado e a sentença, sem que essa divergência seja suficientemente fundamentada pelo tribunal, há nulidade da sentença derivada de uma omissão de pronúncia” (cfr. op. cit., pg. 452).
E tal nulidade pode ter-se como arguida pela recorrente, ao dizer que “não consta(ndo) da sentença recorrida a apreciação pelo Tribunal a quo da situação supra referida”.
Emerge, nessa perspectiva, a nulidade prevista no art. 571°, n°. 1, al. d), 1ª parte, do C. P. Civil, subsidiariamente aplicável em processo penal, por força do art. 4° do citado C. P. Penal.
Este o nosso parece”; (cfr., fls. 308 a 310).
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Cumpre decidir.
Fundamentação
Dos factos
2. Estão provados os factos seguintes:
“1) O empregado C (titular do BIRPM n.° XXXXXXX (X), residente na Rua Nova da Areia Preta, XXX, bloco 1, X/X, telefone n.° 66XXXXXX e 28XXXXXX), ingressou na empresa supra referida em 3 de Junho de 1985 como condutor, e foi demitido sumariamente em 2 de Julho de 2008, altura em que o seu rendimento mensal era de MOP$8.500,00.
2) C tinha recebido por duas vezes cartas de advertência emitidas pela empresa por causa do fumo e de não cumprimento de entrega, depois continuou a trabalhar como condutor na empresa.
3) Em 26 de Junho de 2008, C foi entregar cargos sob instruções ao Wynn Resorts, mas estes foram restituídos por razão não apurada.
4) O gerente da empresa A Limitada recebeu, quanto ao caso acima referido, email de queixa enviado pelo Wynn Resorts, no que foi indicado que C tinha ameaçado os funcionários do hotel e os tratado sem cerimónia.
5) A empresa A Limitada demitiu C pelas razões acima referidas”; (cfr., fls. 245 a 246 e 294 a 297).
Do direito
3. Vem a arguida “A Limitada” recorrer da sentença proferida pelo Mmo Juiz do T.J.B. que a condenou pela prática de uma contravenção prevista e punida pelo art. 48°, n.° 1 e 50°, n.° 1, al. a) do Decreto-Lei n.° 24/89/M, de 3 de Abril, na multa de três mil e cem patacas (MOP$3.100,00) e no pagamento a C de uma indemnização de MOP$260.636,00.
Em essência, diz que nunca poderia ter constituído uma relação laboral com o citado trabalhador quando, na referida data, inexistia, e que assim se incorreu “em erro notório na apreciação da prova” que resultou em erro de julgamento; (cfr., concl. f e i ).
Tem a recorrente razão, como infra se passa a expor.
Tem este T.S.I. entendido que o assacado vício de erro notório apenas ocorre “quando se dão como provados factos incompatíveis entre si, isto é, que o que se teve como provado ou não provado está em desconformidade com o que realmente se provou, ou que se retirou de um facto tido como provado uma conclusão logicamente inaceitável. O erro existe também quando se violam as regras sobre o valor da prova vinculada ou as legis artis. Tem de ser um erro ostensivo, de tal modo evidente que não passa despercebido ao comum dos observadores.”
De facto, “É na audiência de julgamento que se produzem e avaliam todas as provas (cfr. artº 336º do C.P.P.M.), e é do seu conjunto, no uso dos seus poderes de livre apreciação da prova conjugados com as regras da experiência (cfr. artº 114º do mesmo código), que os julgadores adquirem a convicção sobre os factos objecto do processo.
Assim, sendo que o erro notório na apreciação da prova nada tem a ver com a eventual desconformidade entre a decisão de facto do Tribunal e aquela que entende adequada o Recorrente, irrelevante é, em sede de recurso, alegar-se como fundamento do dito vício, que devia o Tribunal ter dado relevância a determinado meio probatório para formar a sua convicção e assim dar como assente determinados factos, visto que, desta forma, mais não se faz do que pôr em causa a regra da livre convicção do Tribunal.”; (cfr., v.g., Ac. de 27.01.2011, Proc. n° 470/2010, do ora relator).”
No caso, deu-se como provado que C começou a trabalhar para a ora recorrente em 03.06.1985 e que em 02.07.2008, foi sumariamente demitido, daí se concluindo pela prática da imputada transgressão laboral.
Porém, como resulta de documento autêntico junto aos autos, a arguida, como pessoa colectiva que é, foi apenas constituída em 15.01.2007; (cfr., fls. 73 a 75).
É assim, manifesto, o apontado erro, que, afigurando-se-nos insanável, leva, necessariamente, à anulação do julgamento efectuado, e ao reenvio dos autos para novo julgamento nos termos do art. 418° do C.P.P.M..
Decisão
4. Nos termos que se deixam expostos, acordam conceder provimento ao recurso, determinando-se o reenvio dos autos para novo julgamento.
Sem custas.
Macau, aos 23 de Junho de 2011
Jose Maria Dias Azedo
Chan Kuong Seng
Tam Hio Wa
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