ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:
I – Relatório
O Tribunal Colectivo do Tribunal Judicial de Base, por Acórdão de 21 de Julho de 2011, condenou o arguido A pela prática, em autoria material e na forma consumada, de quatro crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pelo artigo 198.º, n.º 2, alínea e), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão por cada um e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) anos de prisão.
O Tribunal de Segunda Instância (TSI), por Acórdão de 13 de Outubro de 2011, alterou a qualificação jurídica da sentença, condenando o arguido pela prática, em autoria material e na forma consumada de três crimes de furto, previstos e puníveis pelo artigo 197.º do Código Penal, na pena de 8 (oito) meses de prisão por cada um e manteve a condenação pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelo artigo 198.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 3 (três) anos de prisão.
Em cúmulo jurídico, fixou a pena única de 4 (quatro) anos de prisão.
Recorre agora o Ministério Público para este Tribunal de Última Instância (TUI), terminando a sua alegação com as seguintes conclusões:
1ª - A moldura penal dos crimes acusados e condenados no TJB mostra que é susceptível do recurso ordinário para o Alto TUI o douto Acórdão do TSI ora recorrido;
2a - Com este recurso, pretende-se impugnar apenas a subsunção pelo TSI dos factos dados por provados, subsunção recorrida que consiste em condenar o ora recorrido na prática de três (3) furtos simples e um (1) furto qualificado p.p. pelo art.198.º, n.º1, al, a) do Código Penal.
3a - A subsunção recorrida fundou-se nuclearmente no argumento de que: a expressão “outro espaço fechado”, (ínsita na mencionada “alínea e)”), não permite qualquer tentativa de se considerar como tal um “veículo automóvel”.
4a - Os factos dados como provados demonstram que a fim de cometer os crimes de furto, A (arguido e ora recorrido) quebrou janelas dos referidos automóveis.
5ª - Essas quebras danosas provocaram incontroversamente lesões distintas dos prejuízos causados pelos 4 furtos, lesões tais merecem protecção jurídica e deveriam ser atendas na qualificação jurídica.
6a - Sucede que a subsunção recorrida deixou despidas de protecção jurídica tais lesões, e nesta medida, não é adequada nem suficiente à finalidade de prevenção geral e especial.
7a - Em cumprimento da finalidade de prevenção geral e especial, “outro espaço fechado” aludido na alínea e) do n.º2 do art.198.º do CPM deve ser entendido e interpretado no sentido de abranger os automóveis com portas e janelas fechadas.
Ou,
8ª - Ao abrigo do n.º l do art.40º do CPM, deviam-se autonomizar as condutas de danificação e condenar A em furtos e, em concurso efectivo, também crimes de dano p.p. pelo art. 206.º do CPM.
9a - Do exposto supra decorre que o douto Acórdão do TSI na parte da subsunção recorrida fere do erro de direito, traduzido em incorrecta interpretação da alí. e) do n.º2 do art.198.º, ou em errado incumprimento da finalidade de prevenção geral e especial, por não observação in casu dos arts.40.º e 206.°, sendo todos do CPM.
No seu parecer, o Ex.mo Procurador-Adjunto manteve a posição já assumida na resposta à motivação.
II – Os factos
As instâncias consideraram provados os seguintes factos:
“Desde Setembro de 2009, ao anoitecer, o arguido costumava ir à Avenida Cidade Nova, na área aproximada da entrada oeste do [Hotel (1)], ou à Estrada do Istmo, na área aproximada de City of Dreams, procurando automóveis parados ao lado da rua como objectivos de furto. O arguido costumava usar uma lanterna eléctrica para iluminar o interior do automóvel para verificar se havia objectos de valor, e se descobrisse objectos tais como bolsa, computador portátil ou telemóvel, iria quebrar a janela do automóvel com a chave de fenda quando não havia transeuntes na volta, entrar no interior do automóvel e buscar objectos valorizados, e depois, iria trazer os objectos furtados para a rua na cidade de Zhuhai e vendê-los aos vendedores de rua.
Através de investigação policial, foram provados os seguintes factos:
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Em 3 de Setembro de 2009, pelas 19h30, B, o 1º lesado, melhor identificado nas fls. 18 dos autos, parou o seu automóvel ligeiro de matrícula MJ-XX-XX no estacionamento com parquímetro n.º WXXX na Avenida Cidade Nova e saiu.
Mais tarde, o arguido descobriu no supracitado automóvel uma bolsa de homem de cor preta (de marca Dunhill e no valor de MOP$4.000,00), quebrou a janela do assento dianteiro esquerdo quando não havia pessoas na volta e tirou a referida bolsa de cor preta.
Foram guardados na bolsa de cor preta os seguintes objectos:
1) Uma caneta esferográfica, de marca Chopard, de estilo Kam Sa, no valor de MOP$2.000,00;
2) Seis cadernetas registadas em nome de B, respectivamente do [Banco (1)], [Banco (2)], [Banco (3)], [Banco (4)], [Banco (5)] e [Banco (6)], cujos números são desconhecidos;
3) Três cadernetas do [Banco (7)], [Banco (8)] e [Banco (9)], cujos números são desconhecidos;
4) RMB¥750 em numerário.
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Em 13 de Dezembro de 2009, pelas 17h40, o trabalhador do Comissariado do Ministério dos Negócios Estrangeiros da RPC na RAEM, C, ou seja o 2º lesado, melhor identificado nas fls. 138 dos autos, parou o automóvel ligeiro de matrícula MH-XX-XX no estacionamento em frente do poste de iluminação n.º XXXAXX na Avenida da Nave Desportiva, e saiu junto com os seus colegas D e E, ou seja a 3ª e a 4ª lesadas melhor identificadas nas fls. 128 e 133 dos autos.
Mais tarde, o arguido descobriu três sacos de mão no supracitado automóvel ligeiro, quebrou a janela do assento dianteiro esquerdo quando não havia pessoas na volta (vide as fotos constantes das fls. 17, 116 a 118 dos autos) e tirou os referidos sacos de mão.
Os três sacos de mão acima referidos são propriedades de C, D e E.
Segundo C, ele perdeu os seguintes objectos:
1) Um saco de mão de cor azul e de marca desconhecida, no valor de cerca de MOP$100;
2) Um calção de banho, um par de óculos de natação e uns produtos de limpeza, no valor de cerca de MOP$300.
Segundo D, ela perdeu os seguintes objectos:
1) Um saco de mão de cor verde clara e de marca desconhecida, no valor de cerca de MOP$100;
2) Uma roupa de banho, um par de óculos de natação e uns produtos de limpeza, no valor de cerca de MOP$300.
Segundo E, ele perdeu os seguintes objectos:
1) Um saco de mão de cor branca e de marca desconhecida, no valor de cerca de MOP$100;
2) Um saco de cor azul clara e de marca desconhecida, no valor de cerca de MOP$100;
3) Um calção de banho, um par de óculos de natação e uns produtos de limpeza, no valor de cerca de MOP$300;
4) Uma carteira de cor de café, cujos valor e marca são desconhecidos;
5) MOP$1.300,00 em numerário;
6) Um telemóvel de marca NOKIA, cujos modelo e número de série são desconhecidos, com valor de MOP$850, contendo um cartão SIM de China Telecom, com o número de XXXXXXXX e XXXXXXXXXXX,
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Em 20 de Janeiro de 2010, pelas 19h00, F, melhor identificado nas fls. 185 dos autos, parou o mini-autocarro de matrícula ME-XX-XX da Agência de Turismo no estacionamento com parquímetro n.º WXXX na Avenida Cidade Nova.
Em seguida, quatro turistas coreanos G, H, I e J (os 5º a 8º lesados, melhor identificados nas fls. 175, 179 a 181 dos autos), colocaram as bagagens nos assentos traseiros do supracitado mini-autocarro, e seguiram F e o intérprete K, melhor identificado nas fls. 183 dos autos, para visitar Resort.
O arguido descobriu as bagagens guardadas no mini-autocarro acima referido, quebrou a janela da porta esquerda do mini-autocarro quando não havia pessoas na volta (vide as fotos constantes das fls. 15, 197 a 198 dos autos) e tirou as bagagens.
Segundo G, ele e H, I e J perderam os seguintes objectos:
1) Um saco de mão de cor preta e de marca LECAF, no valor de cerca de HKD$300;
2) Vários souvenirs no valor de HKD$6.000,00;
3) Uma chave do carro de marca HYUNDAI, no valor de USD$1.800,00;
4) Dois leitores MP3, de marca desconhecida e no valor de USD$1.000,00;
5) Dois tocadores de média portátil, de marca desconhecida e no valor de USD$820;
6) Um USB flash drive no valor de USD$15.000,00;
7) USD$300 e KRW₩50.000,00 em numerário;
8) O passaporte coreano n.º MXXXXXXXX de G;
9) O passaporte coreano n.º JNXXXXXXX de H;
10) O passaporte coreano n.º JNXXXXXXX de J;
11) O passaporte coreano n.º JNXXXXXXX de I;
12) O bilhete de identidade n.º XXXXXX-XXXXXXX de I.
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Em 11 de Abril de 2010, pelas 7 horas da noite, L, o 9º lesado, melhor identificado nas fls. 1 dos autos, parou o seu automóvel ligeiro de matrícula ML-XX-XX perto do poste de iluminação n.º XXXAXX em frente de City of Dreams, e saiu.
Mais tarde, o arguido descobriu um saco de pano de cor preta no supracitado automóvel, quebrou a janela do automóvel quando não havia pessoas na volta, e tirou um saco, um casaco de cor preta e o instrumento de navegação por satélite adeso aos pára-brisas do automóvel (de marca MIO, de cor branca e de modelo MIOP350) junto com o suporte de cor preta.
O arguido encontrou no supracitado saco de cor preta RMB¥2.300,00 em numerário.
Em seguida, o arguido dirigiu-se ao Casino, trocou RMB¥1.000,00 por HKD$1.100,00, jogou no casino e ganhou HKD$1.000,00.
A seguir, o arguido trocou o dinheiro ganho por cupão no valor de HKD$990 do Casino.
Pelas 23h45 da noite, o arguido trouxe os objectos furtados e pretendeu voltar à sua residência na cidade de Zhuhai, mas foi interceptado por guardas no Posto Fronteiriço das Portas do Cerco.
Com o consentimento do arguido, os guardas encontraram na posse deste um saco de cor preta, de marca FRENCH CONNECTION, bem como os seguintes objectos e instrumentos da prática do crime (vide os autos de revista e de apreensão constantes das fls. 5 e 6 dos autos) no referido saco:
1) Um saco de cor de café e de marca desconhecida;
2) Um cartão informatizado dos Serviços de Saúde n.º XXXXXX.X, cujo portador é L;
3) Um cartão de acesso a cuidados de saúde do SS, n.º XXXX/XXXXX/T, cujo portador é L;
4) Dois cartões de poupança n.º XXXX-XXXX-XXXX-XXXX-XXX e n.º XXXX-XXXX-XXXX-XXXX-XXX, do [Banco (10)];
5) Uma licença de condução da RPC n.º MXXXXXXXXX, cujo portador é L;
6) Uma carteira de cor de café e de marca Fortune;
7) Uma carteira de cor azul e de marca Podia;
8) Uma saqueta de cor de café e de marca Plume, uma saqueta de cor azul e sem marca e uns cartões sem valor;
9) Uma máquina de navegação por satélite, de marca Mio, de cor branca e de modelo MIOP350, junto com um suporte de cor preta;
10) Um cartão de serviço de paragem única no posto fronteiriço de Zhuhai n.º XCTF-XXXX-XXXXXXXXX, cujo portador é L;
11) RMB¥1.321,20 em numerário;
12) HKD$1.150,00 em numerário;
13) Um cupão no valor de HKD$990 do Casino;
14) Um casaco de cor preta e de marca Izzue;
15) Uma chave de fenda;
16) Uma pequena lanterna eléctrica;
17) Um telemóvel de marca Asus, de cor branca e de modelo P535, cujo número de série é XXXXXXXXXXXXXXX, e um cartão GSM n.º XXXXX-XXXXX-XXXXX-XXXXX.
Através de reconhecimento feito por L, o saco de cor preta, de marca French Conection e os objectos indicados nos supracitados artigos 1.º a 11.º encontrados na posse do arguido são propriedades de L (vide o auto de reconhecimento do objecto constante das fls. 4 dos autos).
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O arguido agiu de forma livre, consciente e dolosa ao praticar as condutas acima referidas.
O arguido tinha a intenção ilegítima de apropriação para si de coisa móvel alheia, quebrou as janelas de carros alheios, introduziu-se ilegitimamente nos carros (espaço fechado) e tirou coisas móveis alheias por 4 vezes.
O arguido sabia bem que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.
Antes da entrada na prisão, o arguido era trabalhador de construção, auferindo mensalmente cerca de MOP$7.000,00 a MOP$9.000,00.
O arguido é casado e tem a seu cargo a esposa e um filho.
O arguido é delinquente primário e confessou sem reservas a prática de todos os factos.
Os lesados B e L declararam que queriam ser indemnizadas.
III - O Direito
1. As questões a resolver
A questão a resolver é a de saber se os factos pelos quais o arguido foi condenado pela prática de três crimes de furto previstos e puníveis pelo artigo 197.º do Código Penal, integram antes a prática de três crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pelo artigo 198.º, n.º 2, alínea e) do mesmo diploma legal.
Fundamentalmente, importa decidir se um automóvel com as portas e os vidros fechados, que é arrombado, dele se retirando objectos, é um espaço fechado, para efeitos daquela alínea e) do n.º 2 do artigo 198.º.
Outra questão, subsidiária da anterior, que é a de saber se, suposta a correcção da qualificação feita pelo Acórdão recorrido, o arguido deveria ter sido condenado pela prática de três crimes de dano, por ter arrombado os três veículos, em concurso real com a condenação pela prática de três crimes de furto, não pode ser conhecida, atento o disposto nos artigos 206.º do Código Penal e 390.º, n.º 1, alínea e) do Código de Processo Penal.
2. Crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos
Preliminarmente, importa considerar a recorribilidade da decisão.
Não há recurso dos acórdãos proferidos, em recurso, pelo Tribunal de Segunda Instância, em processo por crime a que seja aplicável pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos [alínea f) do n.º 1 do artigo 390.º do Código de Processo Penal].
A penalidade de pena de multa ou pena de prisão não superior a oito anos, aplicável ao crime em abstracto, refere-se à acusação, à sentença de 1.ª instância ou à decisão do Tribunal de Segunda Instância?
Quando a decisão do Tribunal de Segunda Instância se refere a crime a que se aplica, em abstracto, pena de prisão de superior a oito anos, não há dúvida de que é admissível o recurso.
Mas naqueles casos, em que a sentença de 1.ª instância condena o arguido por crime a que se aplica, em abstracto, pena de multa ou pena de prisão superior a oito anos, mas por via do recurso do arguido, do Ministério Público no exclusivo interesse do arguido, ou por alteração oficiosa da qualificação jurídica, como foi o caso dos autos, o Tribunal de Segunda Instância condena por crime a que se aplica, em abstracto, pena de multa ou pena não superior a oito anos de prisão, mas em que se pretende recorrer desta decisão, com o fim de que o arguido seja condenado por crime a que caiba a penalidade de prisão superior a oito anos, haverá recurso?
Afigura-se-nos ter de ser positiva a resposta.
Por um lado, a sentença de 1.ª instância condenou por crime a que é aplicável pena de prisão superior a oito anos. É certo que o Tribunal de Segunda Instância alterou a qualificação para crime a que é aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mas o que é essencial é ter em conta que o recorrente recorre com o fundamento em que o arguido deve ser punido por crime a que é aplicável pena de prisão superior a oito anos, pelo que se justifica a admissão do recurso.
Já assim não seria se o recorrente não impugnasse a qualificação do Tribunal de Segunda Instância, isto é, concordasse que ao crime seria aplicável pena de prisão não superior a oito anos, mas pretendesse impugnar outros aspectos da decisão, como a medida da pena ou outro. Sendo a ratio da lei apenas permitir 2.º grau de recurso nas situações consideradas mais graves e, portanto, mais severamente punidas pelo ordenamento jurídico, não se justificaria o recurso se a pena de prisão nunca pudesse ultrapassar oito anos.
Já se o fim do recurso é precisamente obter uma pena mais grave, daquelas que cabem aos crimes, relativamente aos quais se admite recurso para o TUI, já faz todo o sentido admitir o recurso.
É, aliás, o que sucede, ressalvadas as diferenças, com o recurso cível da decisão respeitante ao valor da causa, em causa com valor inferior à alçada do tribunal de que se recorre, com fundamento de que o valor da causa excede aquela alçada [artigo 583.º, n.º 2, alínea b) do Código de Processo Civil]. Neste caso, é admissível o recurso para impugnar a decisão sobre um elemento definidor da admissibilidade do recurso.
Decide-se, assim, ser admissível o recurso. Contudo, se a tese do recorrente, no sentido de o arguido ser condenado por crime a que é aplicável pena de prisão superior a oito anos, não vingar, não se admitiria impugnação de outros aspectos da decisão recorrida.
3. Furto em espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas
O presente recurso tem por fim revogar a decisão do TSI que entendeu que um automóvel fechado não constitui o espaço fechado a que se refere a alínea e) do n.º 2 do artigo 198.º.
O artigo 198.º do Código Penal dispõe o seguinte:
“Artigo 198.º
(Furto qualificado)
1. Quem furtar coisa móvel alheia
a) de valor elevado,
b) transportada em veículo, colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação ou cais,
c) afecta ao culto religioso ou à veneração da memória dos mortos e que se encontre em lugar destinado ao culto ou em cemitério,
d) explorando situação de especial debilidade da vítima, de desastre, acidente, calamidade pública ou perigo comum,
e) fechada em gaveta, cofre ou outro receptáculo, equipados com fechadura ou outro dispositivo especialmente destinado à sua segurança,
f) introduzindo-se ilegitimamente em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, ou aí permanecendo escondido com intenção de furtar,
g) com usurpação de título, uniforme ou insígnia de funcionário, ou alegando falsa ordem de autoridade pública;
h) fazendo da prática de furtos modo de vida, ou
i) deixando a vítima em difícil situação económica, é punido com pena de prisão até 5 anos ou com pena de multa até 600 dias.
2. Quem furtar coisa móvel alheia
a) de valor consideravelmente elevado,
b) que possua significado importante para o desenvolvimento tecnológico ou económico,
c) que, por natureza, seja altamente perigosa,
d) que possua importante valor científico, artístico ou histórico e se encontre em colecção ou exposição públicas ou acessíveis ao público,
e) introduzindo-se em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas,
f) trazendo, no momento do crime, arma aparente ou oculta, ou
g) como membro de grupo destinado à prática reiterada de crimes contra o património, com a colaboração de pelo menos outro membro do grupo, é punido com pena de prisão de 2 a 10 anos.
3. Se na mesma conduta concorrerem mais do que um dos requisitos referidos nos números anteriores, só é considerado, para efeitos de determinação da pena aplicável, o que tiver efeito agravante mais forte, sendo o outro ou outros valorados na determinação da medida da pena.
4. Não há lugar à qualificação se a coisa furtada for de valor diminuto”.
A qualificação do furto, na alínea em causa, tem lugar sempre que o furto de coisa móvel alheia ocorra por meio de introdução em habitação, ainda que móvel, estabelecimento comercial ou industrial ou outro espaço fechado, por arrombamento, escalamento ou chaves falsas.
O recurso assenta, por um lado, na consideração de que um automóvel, com as portas e janelas fechadas, é um espaço fechado. E, por outro, que a não se entender assim, ficaria sem punição o arrombamento nos veículos, já que a punição por simples furto, crime previsto e punível pelo artigo 197.º do Código Penal se limita a punir o furto de coisa móvel alheia.
Mas em sentido contrário, se afirma que a referência a outro espaço fechado, na sequência do texto da alínea e), significa outro espaço fechado, semelhante a habitação, imóvel ou móvel ou estabelecimento comercial ou industrial, ou dependente destes. Portanto, que se encontra fora do âmbito da alínea a interpretação do outro espaço fechado como um automóvel. Acresce que o furto em tais locais só é qualificado se o meio utilizado for o arrombamento, escalamento ou chaves falsas, sendo que as definições de arrombamento e escalamento, constantes das alíneas d) e e) do artigo 196.º do Código Penal, estatuem expressamente que se trata de romper, fracturar ou destruir dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada, exterior ou interiormente, de casa ou de lugar fechado dela dependente (arrombamento) ou introdução em casa, ou em lugar fechado dela dependente, por local não destinado normalmente à entrada, nomeadamente por telhados, portas de terraços ou de varandas, janelas, paredes, aberturas subterrâneas ou por qualquer dispositivo destinado a fechar ou impedir a entrada ou passagem (escalamento).
É desta opinião FARIA COSTA1, explicando que a noção de arrombamento nunca abrangeu o rompimento, fractura ou destruição de carros.
Neste sentido, igualmente, o nosso Acórdão de 17 de Dezembro de 2008, no Processo n.º 49/2008, onde, referindo-nos à noção de outro espaço fechado constante da previsão da alínea e) do n.º 2 do artigo 198.º do Código Penal, dissemos «E o elemento “outro espaço fechado” previsto ainda na referida alínea também deve ser entendido no âmbito da mesma alínea e das definições legais de arrombamento e escalamento, ou seja, como espaço fechado semelhante à habitação, ao estabelecimento comercial ou industrial, ou dependente de um destes tipos de “casa”».
Mantendo nós este entendimento, está excluído que o furto de objectos em automóvel, por meio de arrombamento, constitua o crime previsto e punível pela alínea e) do n.º 2 do artigo 198.º, improcedendo, assim, o recurso.
4. Furto de coisa transportada em veículo
O Acórdão recorrido, afastando, e bem, a incriminação de três dos furtos dos autos pelo tipo da alínea e) do n.º 2 do artigo 198.º do Código Penal, concluiu que se tratavam de crimes de furto não qualificados ou simples, previstos e puníveis pelo artigo 197.º do mesmo Código.
Não se concorda com este entendimento.
Na verdade, a alínea b) do n.º 1 do artigo 198.º do Código Penal pune como furto qualificado, embora de gravidade inferior ao acima mencionado, o furto de coisa móvel alheia “transportada em veículo, colocada em lugar destinado ao depósito de objectos ou transportada por passageiros utentes de transporte colectivo, mesmo que a subtracção tenha lugar na estação ou cais”.
Ora, é indiscutível que os objectos subtraídos pelo arguido estavam no interior de veículos automóveis, que ele arrombou, partindo os vidros das janelas.
É certo que se os automóveis se encontravam estacionados, não estando em movimento. Mas a melhor doutrina entende, com base em preceito semelhante do Código português, anterior à revisão de 2007, que a alínea “abrange o transporte em quaisquer veículos, motorizados ou não, ainda que não estejam em movimento, como é o caso do furto de um fato de dentro de um automóvel estacionado na via pública”2.
Sendo de sufragar a opinião exposta, impõe-se a condenação do arguido pela prática de três crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pela alínea b) do n.º 1 do artigo 198.º do Código Penal.
Nada obsta ao conhecimento desta matéria porque estamos perante questão atinente à qualificação jurídica dos factos – expressamente objecto de recurso – e nada obsta à convolação, porque se trata de crime de furto, punível menos severamente, do que pretendia o recurso do Ministério Público.
Nada tendo a censurar aos critérios seguidos na fixação da medida da pena pelo Acórdão recorrido, condenamos o arguido, como autor material e na forma consumada de três crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pelo artigo 198.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão, por cada um.
E, em cúmulo jurídico com a pena de 3 (três) anos de prisão, fixada pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelo artigo 198.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, vai condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
IV – Decisão
Face ao expendido, nega-se provimento ao recurso, mas alterando-se a qualificação jurídica dos crimes objecto de recurso, condenamos o arguido, como autor material e na forma consumada de três crimes de furto qualificado, previstos e puníveis pelo artigo 198.º, n.º 1, alínea b), do Código Penal, na pena de 15 (quinze) meses de prisão, por cada um.
E, em cúmulo jurídico com a pena de 3 (três) anos de prisão, fixada pela prática de um crime de furto qualificado, previsto e punível pelo artigo 198.º, n.º 2, alínea a), do Código Penal, vai condenado na pena única de 5 (cinco) anos de prisão.
Sem custas.
Macau, 19 de Janeiro de 2012.
Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai
1 FARIA COSTA, em anotação jurisprudencial na Revista de Legislação e Jurisprudência, ano 133.º, p. 248.
2 M. M. MAIA GONÇALVES, Código Penal Português Anotado e Comentado, Coimbra, Almedina, 17.ª edição, 2005, p. 685 e 686. Também neste sentido, especificamente quanto ao Código de Macau, LEAL-HENRIQUES e M. SIMAS SANTOS, Código Penal de Macau, Macau, 1996, p. 541.
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Processo n.º 62/2011