打印全文
Processo nº 876/2010
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 02/06/2011
Descritores: Contrato a favor de terceiro
Contratação de mão-de-obra não residente


SUMÁRIO:

A celebração de um “contrato de prestação de serviços” entre uma empresa fornecedora de mão-de-obra não residente em Macau e outra empregadora dessa mão-de-obra, no qual esta assume desde logo um conteúdo substantivo mínimo das relações laborais a estabelecer com os trabalhadores que vier a contratar, tal como imposto por despacho governativo, representa para estes (beneficiários) um contrato a favor de terceiro, cuja violação por parte da promitente empregadora gera um correspondente direito de indemnização a favor daqueles.




Processo nº 876/2010


Acordam no Tribunal de Segunda Instância da RAEM

I- Relatório


A, de nacionalidade filipina com os demais sinais dos autos, intentou no TJB contra Guardforce (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança – Limitada, acção de processo comum laboral pedindo a condenação da ré a pagar-lhe a importância de Mop$ 266.307,00, acrescida de juros legais até efectivo e integral pagamento.
*
Por sentença de 16/07/2010 foi a acção julgada parcialmente procedente e a ré condenada a pagar à autora a quantia de 229.577,76.
*
É dessa sentença que agora recorre Guardforce, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da Sentença proferida pelo douto Tribunal a quo, em 16 de Julho de 2010, e pela qual foi a ora Recorrente condenada a pagar ao Autor, ora Recorrido, os seguintes montantes:
• MOP$99,020.00 (noventa e nove mil e vinte patacas) a título de diferenças salariais;
• MOP$18,612.16 (dezoito mil, seiscentas e doze patacas e setenta e seis avos) a título de diferença retributiva por trabalho extraordinário prestado;
• MOP$57,225.00 (cinquenta e sete mil, duzentas e vinte e cinco patacas) a título de subsídio de alimentação;
• MOP$54,720.00 (cinquenta e quatro mil, setecentas e vinte patacas) a título de subsídio de efectividade;
• Juros moratórios sobre cada uma das aludidas quantias, à taxa legal a contar do trânsito em julgado da sentença.
II. O Despacho n.º 12/GM/88, de 01 de Fevereiro não constitui a fonte das normas especiais que regem as relações laborais que se estabeleçam entre empregadores de Macau e trabalhadores não residentes, a que alude a alínea d) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M.
III. As normas específicas constantes do Despacho n.º12/GM/88 regulam apenas o procedimento administrativo para admissão em Macau de trabalhadores não residentes e não determinam um regime jurídico regulador das relações laborais que se estabeleçam entre o empregador e um trabalhador não residente, porquanto, tratando-se de um Despacho, nos termos do então vigente Estatuto Orgânico de Macau, o mesmo foi proferido pelo Governador no âmbito das suas funções executivas, (cfr. artigo 16.º, n.º 2 do Estatuto Orgânico de Macau).
IV. O Despacho do Secretário para a Economia e Finanças mais não é do que um acto administrativo proferido no âmbito do procedimento previsto no Despacho 12/GM/88, de 01 de Fevereiro.
V. O Despacho 12/GM/88 estabelece um processo e um conjunto de condições administrativas para efeitos de obtenção de autorização de contratação de mão-de-obra estrangeira que culmina na prolação de um Despacho de Autorização, mas deste processo e condições administrativas não resulta a obrigatoriedade para a Requerente de contratar em determinadas condições, uma vez que o diploma em apreço carece da imperatividade subjacente ao direito do trabalho.
VI. E, ainda que resultasse de tais condições administrativas aquela obrigatoriedade, por estarmos perante um puro processo administrativo, também as consequências da sua violação se poderiam apenas reflectir no campo administrativo, não tendo qualquer reflexo na relação contratual de trabalho celebrada entre a Recorrente e o Recorrido.
VII. Face à natureza jurídica do Despacho 12/GM/88 não poderá o mesmo, ou qualquer acto administrativo ao abrigo do mesmo praticado, coarctar a liberdade contratual das partes, e gerar na esfera jurídica de qualquer delas direitos ou deveres que não tenham sido livre e reciprocamente acordados.
VIII. Nem as normas do Despacho n.º 12/88/GM, que o douto Tribunal a quo considerou tratarem-se das normas especiais a que alude a alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei 24/89/M, de 03 de Abril, e nem as condições constantes do contrato de prestação de serviços celebrado com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda. e sobre o qual recai o Despacho de Aprovação do Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos, são passíveis de regular o conteúdo das relações laborais que se venham a estabelecer na sequência da contratação autorizada.
IX. A relação laboral que se estabeleceu entre a ora Recorrente e o Recorrido rege-se somente pelo princípio da liberdade contratual, princípio esse que foi devidamente observado aquando da celebração do contrato de trabalho entre a Recorrente e o Recorrido, o qual foi integralmente cumprido pela ora Recorrente.
X. A Sentença ora em recurso padece do vício de erro na aplicação do direito, tendo incorrectamente interpretado e aplicado as disposições constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 01 de Fevereiro, sendo que deveria ter considerado que tal diploma legal, ou qualquer acto ao abrigo do mesmo praticado, não consitui o regime especial regulador da relação laboral que se estabeleceu entre a Recorrente e o Recorrido (entidade empregadora de Macau e trabalhador não residente).
XI. Por outro lado, afastado que está o entendimento de que o Despacho n.º 12/88/GM, de 01 de Fevereiro ou qualquer acto administrativo ou contrato de prestação de serviços ao abrigo do mesmo celebrado e aprovado, constituem a fonte das condições especiais reguladoras das relações laborais que se estabeleçam entre entidade patronal residente e trabalhador não-residente, para que o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau pudesse produzir efeitos na esfera jurídica do Recorrido havia que afastar o princípio “res inter alios acta aliis neque nocet neque prodest”, enquadrando-o num dos “casos especialmente previstos na lei” (artigo 400º, nº 2 do CC).
XII. Atenta a natureza das obrigações assumidas pelos outorgantes do contrato de prestação de serviços, como seja o recrutamento e importação de mão-de-obra estrangeira e a contratação dessa mão-de-obra estrangeira, resulta por demais óbvio que o Autor não poderia assumir a posição de nenhuma das partes originais, pelo que o contrato em apreço não é enquadrável na figura do contrato para pessoa a nomear.
XIII. O contrato em apreço também não é enquadrável na figura do contrato a favor de terceiros porquanto neste tipo de contratos o benefício do terceiro nasce directamente do contrato e não de qualquer acto posterior e a obrigação do promitente é a de efectuar uma prestação e não celebrar outro contrato, ao passo que do contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau resulta que esta se comprometia a recrutar determinado número de pessoas para virem a ser contratadas pela Ré para lhe prestarem determinada actividade manual ou intelectual mediante o pagamento de determinada retribuição e outras condições.
XIV. Para que o contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau pudesse ser qualificado como um verdadeiro contrato a favor de terceiro, sempre seria necessário que resultasse dos autos a intenção dos contratantes de atribuir directamente ao Autor (terceiro beneficiário) um crédito ou uma vantagem patrimonial, de tal modo que este adquirisse o direito à prestação prometida de forma autónoma, por via directa e imediata do contrato, podendo, por isso, exigi-la do promitente.
XV. O contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, não produz quaisquer efeitos na esfera jurídica do Autor, que do mesmo não é parte, e por não o conhecer nunca lhe criou qualquer expectativa de vir a ser beneficiário do mesmo, pelo que está definitivamente afastada a figura do contrato a favor de terceiro.
XVI. Também não estamos perante um contrato de cedência de trabalhadores uma vez que entre a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, que ocuparia a posição de empresa cedente, e o Autor, não foi celebrado qualquer contrato de trabalho.
XVII. Finalmente, poder-se-ia defender que estamos perante um contrato promessa, nos termos do qual a ora Recorrente se teria obrigado perante e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau a celebrar contratos de trabalho com os trabalhadores não residentes que aquela recrutasse, e que tal promessa se estendeu aos termos em que tais contratos de trabalho deveriam ter sido celebrados, mas ainda que assim fosse, o que não se concede, tal promessa apenas foi assumida perante a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau e não perante o Autor, ora Recorrido, donde para este nunca resultariam quaiquer direitos.
XVIII. O contrato de prestação de serviços celebrado entre a ora Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau não produz quaisquer efeitos na esfera jurídica do Autor, que do mesmo não é parte e que nem a aprovação administrativa a que foi sujeito tal contrato de prestação de serviços não lhe conferiu a virtualidade de produzir efeitos jurídicos na esfera do Autor.
XIX. O Autor, ora Recorrido, apenas poderia reclamar da ora Recorrente créditos que lhe adviessem da concreta violação das obrigações assumidas por força da celebração entre as partes do contrato individual de trabalho, o que em caso não sucedeu, porquanto a ora Recorrente sempre pagou ao Autor, ora Recorrido, os valores acordados em tais contratos, e suas sucessivas renovações, a título de salário e horas extraordinárias - conforme resulta das alíneas L) a X) dos factos assentes, bem como da prova documental junta aos autos.
XX. O pedido do Autor nunca poderia ter sido considerado procedente porquanto: (i) foi afastada a passibilidade do Despacho 12/GM/88 ou de qualquer acto administrativo ou contrato de prestação de serviços ao abrigo do mesmo celebrado e aprovado, constituírem fonte de normas especiais que regulam a relação laboral estabelecida entre a Recorrente e o Recorrido; (ii) foi afastada a integração do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio as Empresas de Macau em qualquer um dos contratos especiais passíveis de afastar o principio “res inter alios acta aliis neque nocet neque prodest”, previsto no artigo 400.º, n.º 2 do Código Civil, não podendo por isso produzir quaisquer efeitos na esfera jurídica do Autor, que do mesmo não é parte.
XXI. Andou mal a Sentença ora em recurso ao condenar a ora Recorrente a pagar ao Recorrido os valores referentes às diferenças sala rias, subsídios de alimentação e efectividade, existentes entre o contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda. e o contrato individual de trabalho celebrado entre a Recorrente e o Recorrido.
XXII. Termos em que deve o presente recurso ser julgado procedente e, em consequência, ser revogada a Sentença recorrida e substituída por Douto Acórdão a ser proferido por esse Venerando Tribunal que julgue improcedente a acção e conclua pela absolvição da Ré ora Recorrente de todo os pedidos na mesma formulados.
XXIII. Sem conceder, e para o caso de se entender que as condições do contrato de prestação de serviços têm de ser aplicáveis à relação contratual estabelecida entre Recorrente e Recorrido, como fez o douto Tribunal a quo sempre se diga que terá de improceder o pedido de diferenças retributivas por alegado trabalho extraordinário prestado.
XXIV. Conforme clausulado no referido contrato de prestação de serviços “(...) sendo a prestação de trabalho extraordinário remunerado de harmonia com o disposto na legislação do tabalho em vigor em Macau para os operários residentes.
XXV. A Recorrente nunca se obrigou a pagar o trabalho extraordinário à razão de MOP11.25/hora, mas antes a paga-lo nos termos previstos na legislação em vigor para os trabalhadores residentes, ou seja, o Decreto-lei 24/89/M de 3 de Abril.
XXVI. O acréscimo salarial pela prestação do trabalho extraordinário corresponde ao acordado entre empregador e trabalhador, não tendo sido alegado pelo Autor, ora Recorrido que não tivesse sido pago de acordo com o acordado com a Recorrente, nem que seria outra a sua vontade negocial, pelo que, ao contrário do decidido pelo Douto Tribunal a quo nunca poderia proceder a pretensão do Recorrido quanto ao pagamento das diferenças salariais pelo trabalho extraordinário prestado, por inexistir fonte geradora da obrigação.
XXVII. Termos em que deverá a Recorrente ser absolvida do pagamento das diferenças salariais pelo trabalho extraordinário prestado, por inexistir fonte geradora da obrigação.
XXVIII. A Sentença proferida pelo Douto Tribunal de Primeira Instancia e ora posta em crise violou o disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 3.º do Decreto-Lei 24/89/M, de 03 de Abril, as disposições do Despacho 18/GM/88, de 1 de Fevereiro, artigos 399º e 400.º n.º 2 do Código Civil e bem assim o artigo 11º, nº 2 do Decreto-lei 24/89/M de 3 de Abril.
*
O ora recorrido apresentou contra-alegações, que concluiu da seguinte maneira:
1. Ao contrário do alegado pela Recorrente, a Sentença posta em crise procedeu a uma correcta interpretação dos factos e das normas legais aplicáveis e, bem assim, a uma correcta aplicação da Lei e do Direito, cuja fundamentação merece, aliás, ser louvada, pelo rigor, clareza e objectividade com que o douto Juiz do 1.º Juízo do Tribunal Judicial de Base da RAEM mostrou;
2. É mais do que pacífico que o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro fixa as condições de contratação (procedimento) e de trabalho (conteúdo) em que devem ser contratados os trabalhadores não residentes;
3. O mesmo é dizer que o Despacho n.º 12/ GM/ 88, de 1 de Fevereiro constitui a fonte das normas especiais que regem as relações laborais que se estabelecem entre empregadores de Macau e trabalhadores não residentes, a que alude a alínea d) do art. 3.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril;
4. A “a via do simples despacho” foi justificada pelo próprio Governador no Preâmbulo do Diploma, afirmando que a mesma se justifica face à “extrema complexidade da matéria e pela urgência que havia em dar-lhe encaminhamento” e que “(...) se introduz por via de simples despacho, aproveitando a feliz circunstância de não parecer que algum normativo de grau superior a tal se oponha” ;
5. O Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro torna de forma clara e expressa uma natureza assumidamente normativa e de cariz imperativo na medida em que nele se fixa uma disciplina substantiva e processual com vista à contratação, por empregadores de Macau, de trabalhadores não residentes (trabalhadores este que estão excluídos do Regime Geral das Relações Laborais apenas aplicável aos trabalhadores residentes - DL 24/89/M, de 3 de Abril e LRT) obrigando a uma contratação em condições mínimas acordadas com a empresa prestadora de serviços (in casu, a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.) (cfr. neste exacto sentido o Ac. do TSI, de 6 de Janeiro de 2010, Proc. N.º 739/2009, p. 14 - Relator: João Gil de Oliveira);
6. Do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, resulta que o despacho (leia-se, despacho da «entidade governamental competente» que autoriza a contratação de trabalhadores não residentes) condiciona a mesma à apresentação prévia de um «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a “entidade interessada” e uma “terceira entidade fornecedora de mão-de-obra não residente” (cfr. n.º 3 e n.º 9 c) do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro);
7. In casu, quer o «despacho da autoridade governamental» quer o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, vincularam imperativamente a Recorrente a contratar os trabalhadores não residentes - e, em concreto, o Recorrido - em conformidade com as condições mínimas constantes do «contrato de prestação de serviços» celebrado com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.;
8. Ademais, o referido «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Recorrida e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda., foi sempre remetido ao Gabinete para os Assuntos de Trabalho para efeitos de verificação e aprovação dos requisitos tidos como mínimos exigíveis para o efeito, “designadamente - os indicados na al. d) do n.º 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro”;
9. A fixação legal de condições tidas como mínimas, em si mesma constitui um direito que escapa à liberdade da autonomia das partes, visto terem sido consagradas por uma razão - de ordem pública - maxime de protecção dos interesses da generalidade dos trabalhadores residentes (cfr. preâmbulo do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro);
10. Do mesmo modo, o direito às condições mínimas fixado no despacho de autorização configura um direito indisponível e, porquanto, subtraído ao domínio da vontade das partes;
11. Em suma, qualquer entidade interessada - e in casu a Recorrente - só poderia celebrar contratos com trabalhadores não residentes desde que o tivesse feito ao abrigo do respectivo «despacho de autorização governamental», tendo por base as condições tidas por mínimas constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, as quais, por seu turno, se deverão incorporar no clausulado do «contrato de prestação de serviços» a celebrar com uma entidade fornecedora de mão de obra não residente (in casu, a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.);
12. O «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., não foi invocado pelo Recorrido como fonte directa dos seus direitos;
13. Foi somente enquanto fonte material indirecta dos conteúdos mínimos dos direitos anteriormente referidos que o «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Recorrente e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda. foi invocado pelo Recorrido;
14. In casu, não se revela útil ou necessário à boa decisão da causa a qualificação jurídica do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Recorrente e a «Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda.», porquanto o Tribunal a quo fez assentar o seu raciocínio jurídico e respectiva fundamentação no próprio Regime Legal de Contratação de Trabalhadores Não Residentes; Isto é,
15. Na imperatividade das regras constantes do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, posteriormente incorporadas no clausulado mínimo do «contrato de prestação de serviços» supra referido e exigidas pela alínea c) do n.º 9 do mesmo diploma legal;
Sem conceder,
16. Tão só para o caso de se entender ser necessário proceder a uma qualificação jurídica do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Recorrente e a Sociedade de Apoio Lda. - o que só por mera cautela de patrocínio se concebe - salta à vista que o mesmo se destinava a regular as relações jurídicas dos outorgantes com terceiros, maxime com os trabalhadores não residentes (de entre os quais se inclui o Recorrido);
17. Se é certo que a Recorrente teria liberdade de estipulação de cláusulas contratuais que não se encontrassem “cobertas” pelos limites mínimos constantes do «contrato de prestação de serviços» que a mesma submeteu à aprovação da Entidade Governativa, não é menos certo que também estas outras cláusulas (mesmo que livremente aceites) em caso algum poderão contrariar os mínimos constantes do Regime Jurídico das Relações Laborais (maxime o disposto no art. 6.º do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril);
18. Dispondo o n.º 2 do art. 11.º Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril que “nos casos de prestação de trabalho extraordinário, o trabalhador terá direito a um acréscimo de salário”..., já se deixa ver que este acréscimo em caso algum se poderá converter em decréscimo por força de um mero acordo entre empregador e trabalhador;
19. Em concreto, tendo sido fixado em Mop$90.00 por dia (o que perfaz Mop$11,25 por hora) o valor mínimo aprovado para a contratação e admissão do Recorrido, não poderia depois a Recorrente pretender pagar àquele uma quantia inferior, à razão de Mop$8.00, por hora de trabalho extraordinário prestado, porquanto tal se traduziria na aplicação de um regime menos favorável do que o constante do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril e, nesta medida, tal acordo ou cláusula contratual seria nulo ou inexistente.
*
Cumpre decidir, colhidos os vistos legais.

***

II- Os Factos

A sentença deu por provada a seguinte factualidade:
1) A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores. (A)
2) Desde o ano de 1993, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior». (B)
3) Desde 1992, a Ré celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., os «contratos de prestação de serviços»: n.º 9/92, de 29/06/1992; nº 6/93, de 01/03/1993; nº 2/94, de 03/01/1994; nº 29/94, de 11/05/1994; nº 45/94, de 27/12/1994. (C)
4) O contrato de prestação de serviços com base no qual a Ré outorgou o contrato individual de trabalho com o Autor foi o “Contrato de Prestação de Serviços n.º 2/94”, ao abrigo do Despacho do Secretário para a Economia e Finanças de 11 de Dezembro de 1993, de admissão de novos trabalhadores vindos do exterior. (D)
4) Do contrato aludido em D) resultava que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam direito a auferir no mínimo MOP$90,00 diárias, acrescidas de MOP$15,00 diárias a título de subsídio de alimentação, um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço, sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, sendo o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau. (E)
5) A Ré sempre apresentou junto da entidade competente, maxime junto da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), cópia dos «contratos de prestação de serviço» supra referidos, para efeitos de contratação de trabalhadores não residentes. (F)
6) Entre 13 de Setembro de 1995 e 31 de Maio de 2008, o Autor trabalhou sob as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré exercendo funções de “guarda de segurança”. (G)
7) Era a Ré quem fixava o local e horário de trabalho do Autor, de acordo com as suas exclusivas necessidades. (H)
8) Durante todo o período de tempo anteriormente referido, foi a Ré quem pagou o salário ao Autor. (I)
9) A Ré e o Autor acordaram nos termos constantes dos documentos juntos aos autos a fls. 138 a 139 e 143 a 183, cujos teores aqui se dão por integralmente reproduzidos. (J)
10) Entre 13 de Setembro de 1995 e Junho de 1997, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,700.00 mensais. (L)
11) Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$1,800.00 mensais. (M)
12) Entre Abril de 1998 e Fevereiro de 2005, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,000.00 mensais. (N)
13) Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,100.00 mensais. (O)
14) Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou ao Autor, a título de salário, a quantia de MOP$2,288.00 mensais. (P)
15) Entre 13 de Setembro de 1995 e 30 de Junho de 1997 a Ré sempre remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$ 8.00 por hora. (Q)
16) Entre 1 de Julho de 1997 e 30 de Junho de 1999 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$ 9.30 por hora. (R)
17) Entre 1 de Julho de 1999 e 30 de Junho de 2002 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$ 9.30 por hora. (S)
18) Entre Julho de 2002 e Dezembro de 2002 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$10.00 por hora. (T)
19) Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$11.00 por hora. (U)
20) Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$11.30 por hora. (V)
21) Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pelo Autor à razão de MOP$11.50 por hora. (X)
22) A Ré nunca pagou ao Autor qualquer quantia a título de subsídio de alimentação nem a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias». (Z)
23) O Autor só teve conhecimento do efectivo e concreto conteúdo de um «contrato de prestação de serviços» assinado entre a Ré e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, já depois de cessada a relação de trabalho com a Ré, mediante informação por escrito prestada pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL), a pedido do Autor em Julho de 2008. (resposta ao quesito 1.º)
24) Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e o Autor, sempre que este queria faltar ao trabalho tinha de dar conhecimento e pedir autorização prévia da Ré (2º).
25) Entre 13 de Setembro de 1995 a 30 de Junho de 1997, o Autor trabalhou em turnos de 12 horas de trabalho por dia (3º).
26) Entre 1 de Julho de 1999 a 30 de Junho de 2002, o Autor recebeu da Ré pela prestação de trabalho extraordinário a quantia total de MOP$46.895,00, que corresponde a 5042 horas de trabalho extraordinário prestadas (5º).
27) Entre Julho de 2002 e Dezembro de 2002, o Autor recebeu da Ré pela prestação de trabalho extraordinário a quantia total de MOP$8.120,00, que corresponde a 812 horas de trabalho extraordinário prestadas. (6º)
28) Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005, o Autor recebeu da Ré pela prestação de trabalho extraordinário a quantia total de MOP$38.445,00, que corresponde a 3495 horas de trabalho extraordinário prestadas. (7º)
29) Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006, o Autor recebeu da Ré pela prestação de trabalho extraordinário a quantia total de MOP$9.650,00, que corresponde a 854 horas de trabalho extraordinário prestadas. (8º)
30) Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006, o Autor recebeu da Ré pela prestação de trabalho extraordinário a quantia total de MOP$16.042,00, que corresponde a 1395 horas de trabalho extraordinário prestadas. (9º)

  
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
***
II- Os Factos
A sentença recorrida deu por assente a seguinte factualidade

***


III- O Direito

1- O retrato factual do presente caso é o seguinte:

Em 11/12/1993 O Ex.mo Secretário Adjunto para A Economia e Finanças autorizou à “Guardforce (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Limitada” (de ora em diante referir-nos-emos a esta entidade como Guardforce) e a admitir ao seu serviço novos trabalhadores do exterior, autorização condicionada à apresentação de contrato de prestação de serviços com a entidade habilitada como fornecedora de mão-de-obra não residente, nos termos da alínea c), do nº 9, do Despacho nº 12/GM/88, de 1 de Fevereiro (cfr. fls. 24/25).

Na sequência disso, entre “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, ldª” e “Guardforce (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança, Limitada” (de ora em diante referir-nos-emos a esta entidade como Sociedade de Apoio) foram celebrados vários contratos de prestação de serviços (v.g. nº 2/94; ver tb, fls. 26 e sgs.). Por ele, ficou clausulado que a Guardforce deveria proceder à contratação de mão-de-obra não residente, estabelecendo-se aí as condições remuneratórias mínimas diárias dos trabalhadores a contratar (90 patacas por dia) e a determinação do pagamento de subsídio de alimentação (3.1), de bonificações adicionais iguais às pagas pela Guardforce aos trabalhadores residentes (3.3) e um subsídio de efectividade mensal igual ao salário de 4 dias, sempre que o trabalhador não tivesse dado no mês anterior qualquer falta ao serviço (3.4). Além dessas estipulações, também foi acordado o regime do horário de trabalho e alojamento, de assistência, dos deveres dos trabalhadores, da cessação da relação laboral e repatriamento, o prazo de duração do contrato, entre outras obrigações vinculativas para a Guardforce.

O autor foi contratado pela Guardforce em 13 de Setembro de 1995, tendo no início assinado um contrato individual de trabalho que, posteriormente, foi sendo objecto de renovações, até à data da cessação da relação labora, o que viria a verificar-se em 31 de Maio de 2008.

A acção que foi intentada no TJB teve por fundamento o pagamento de valores salariais inferiores ao clausulado naquele contrato de prestação de serviços, tendo a sentença, cuja bondade jurídica ora avaliamos, decidido que o contrato de prestação de serviços celebrado entre Guardforce e Sociedade de Apoio era imperativo no que respeita às contratações a efectuar à sua sombra, tanto porque assim o havia imposto o despacho governativo de autorização condicionada, como porque assim o estabelecia o regime decorrente do Despacho nº 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
.

2- Vejamos.

1ª questão
Que tipo de relação administrativa se estabeleceu entre Guardforce e a Administração?

Quando a ora recorrida se dirigiu à Administração pedindo admissão, nos termos do Despacho nº 12/GM/88 (leia-se autorização) para contratar não residentes, fê-lo como mero interessado particular que, para ver proferido o acto permissivo, deveria observar certos requisitos.

Superados os primeiros obstáculos através dos pareceres pertinentes favoráveis (cfr. nº9, a, b, do referido Despacho), a entidade competente proferiu despacho de admissão, condicionando-a, porém, à apresentação do contrato a celebrar entre requerente (Guardforce) e entidade fornecedora de mão-de-obra não residente (Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, lda).

Aquele despacho disse ainda que a autorização implicava a sujeição da requerente a determinadas obrigações específicas: a)-manter um número de trabalhadores residentes igual à média dos que lhe prestaram serviço nos últimos três meses; b)- garantir a ocupação diária dos trabalhadores residentes ao seu serviço e manter-lhes os respectivos salários a um nível igual à média verificada nos três meses anteriores; c)- observar uma conduta compatível com as legítimas expectativas dos trabalhadores residentes).

Estamos, portanto, perante um acto administrativo cuja eficácia foi diferida para momento posterior, em virtude de os seus efeitos dependerem da verificação do requisito ulterior (arts. 117º, nº1 e 119º, al.c), do CPA): apresentação do contrato de prestação de serviço com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente.

Ora, este contrato é, para este efeito, um contrato-norma com estipulações vinculantes para ambas as partes.

Ou seja, a Administração, satisfez-se com a celebração daquele instrumento negocial em que o futuro empregador (contratante Guardforce) declarava contratar futuros trabalhadores não residentes e prometia conceder-lhes as condições e regalias a que ali mesmo, livremente, se deixou subjugar. Claro está que, em nossa opinião, deveria ser mais natural e lógico que a condição fosse mais longe ao ponto de se exigir de todo e qualquer interessado na aquisição de mão-de-obra não residente em Macau a demonstração da efectiva contratação nos moldes em que o compromisso foi assumido perante a entidade fornecedora. Faria mais sentido, realmente, que a condição do acto não se ficasse pela realização de uma mera “declaração de intenções” ou de uma simples “promessa de facere”, que podia não ser, como não foi, cumprida. Na verdade, a vinculação entre as partes contratantes iniciais (Guardforce e Sociedade de Apoio) podia bem ser quebrada sem conhecimento do Governo, o qual assim nada podia fazer para repor as condições de trabalho que estiveram na base da autorização, ou até mesmo para a cancelar. Isto é, parece absurdo que se estabeleçam requisitos de contratação, que as partes iniciais acolheram no contrato-norma para que o despacho autorizativo adquirisse eficácia, e depois o autor do acto se desligue completamente da sorte dos contratos de aplicação dando azo a toda a sorte de incumprimentos e eventuais abusos. Não se deveria esquecer que os contratos de aplicação devem obediência não só ao contrato-norma, como ao acto autorizativo. E por isso mesmo é de questionar quais as consequências derivadas da violação dos contratos celebrados com o trabalhadores e quais os efeitos para estes (futuros e incertos) decorrentes desse contrato-norma. À primeira questão – sem sermos muito categóricos – somos de parecer que nem o Despacho 12/GM/88, nem o contrato firmado na sequência do despacho autorizativo estabelecem sanções. À segunda questão já somos obrigados a responder, e essa é tarefa que nos ocupará já de seguida.
.
2ª Questão
Quais os direitos para os trabalhadores contratados na sequência daquele contrato de prestação de serviços celebrado entre Guardforce e Sociedade de Apoio?

Tal como a sentença o afirma, ao caso não pode ser aplicável o DL nº 24/89/M, de 3/04, uma vez que este diploma se aplica aos trabalhadores residentes.

E também é certa, em parte, a ideia que emana da mesma decisão, segundo a qual o Despacho nº 12/GM/88 não visa estatuir sobre os contratos a celebrar entre empregadores e trabalhadores não residentes. Visa sim, e nessa medida reflecte-se sobre eles, determinar um conjunto de conteúdos mínimos que o empregador deve respeitar nos contratos a celebrar. Contudo, não desce ao pormenor dos direitos e regalias concretas, embora se refira no art. 9, d.2 ao dever de ser averiguado no contrato de prestação de serviços se se encontra satisfeita a garantia do pagamento do salário acordado com a empresa empregadora. Ora, como pode ser prestada esta garantia se depois do contrato com o trabalhador ninguém mais controla o cumprimento do clausulado! E como garantir no contrato-norma algo que só no contrato de aplicação pode ser constatado! Por conseguinte, só indirectamente se pode dizer que os contratos celebrados com os trabalhadores têm no referido despacho a sua regulação normativa.

A Lei nº 4/98/M, de 29/97, por seu turno, também não passa de um conjunto de normas programáticas inseridas naquilo que é uma Lei de Bases (Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais), não preenchendo as necessidades de regulação as normas que constam do art. 9º, uma vez que aí igualmente nada é estabelecido sobre o conteúdo das relações laborais entre aqueles.

Só a Lei nº 21/2009/M de 27/10, sim, define um conjunto de regras a que deve obedecer a contratação de trabalhadores não residentes, mas escapa ao nosso raio de alcance, atendendo ao momento em que surge a lume.

De qualquer modo, assentem os contratos celebrados com os trabalhadores não residentes indirectamente no Despacho nº 12/GM/88, ou derivem eles directamente do contrato firmado entre Guardforce e Sociedade de Apoio, a verdade é que ninguém se atreve a dizer que aquele instrumento contratual e o Despacho em causa são de todo inertes e indiferentes ao clausulado que viesse a integrar o contrato entre empregador e trabalhadores. A questão só se complica na medida em que se trata de pessoas que não intervieram no referido instrumento. Daí que se pergunte a que título dele nasceram direitos para a sua esfera.

Não se pode dizer com total tranquilidade que há lacuna de regulamentação, se for de pensar que a vinculação do instrumento entre Guardforce e Sociedade de Apoio é suficiente, isto é, se for de considerar que, mesmo que por causa do despacho autorizativo e do Despacho 12/GM/88, os direitos nascem com aquele instrumento. Faltaria apurar somente a que título.

A sentença em crise isola o contrato de prestação de serviços, radicando nele a fonte dos direitos do trabalhador, com base no Despacho 12/GM/88 e no despacho de autorização que a Guardforce obtivera por parte da autoridade administrativa, desconsiderando, desse modo, a qualificação jurídico-contratual da posição substantiva que o referido contrato depositava nos terceiros beneficiários. Por outras palavras, sobrelevou a fonte do feixe de vínculos derivados daquele contrato, independentemente da natureza jurídica dele no que à extensão dos seus efeitos a terceiros concerne.

Pensamos, no entanto, que essa questão não pode ser secundarizada e deve, portanto, merecer alguma atenção da nossa parte. E porque os seus contornos mais se assemelham a um contrato a favor de terceiros, vejamos se disso realmente se trata.

Vejamos.

Segundo o art. 437º do CC:

“1. Por meio de contrato, pode uma das partes assumir perante outra, que tenha na promessa um interesse digno de protecção legal, a obrigação de efectuar uma prestação a favor de terceiro, estranho ao negócio; diz-se promitente a parte que assume a obrigação e promissário o contraente a quem a promessa é feita.
2. Por contrato a favor de terceiro, têm as partes ainda a possibilidade de remitir dívidas ou ceder créditos, e bem assim de constituir, modificar, transmitir ou extinguir direitos reais”.

Claro que na composição do tipo ali inscrito, o preceito consagra a favor de terceiro uma “prestação”. E o que pergunta é se no conceito caberá a possibilidade de celebração de um negócio e, ainda, se ele será compatível com a assunção de deveres ou obrigações para o trabalhador. Dois obstáculos, em tese, portanto, que impediriam o preenchimento dos elementos-tipo desta espécie contratual.

Mas, a solução a dar a ambos os eventuais impedimentos agora equacionados resolvem-se, cremos nós, em bloco e na mesma direcção. Expliquemo-nos.

No contrato a favor de terceiro, como se viu na definição, existem três elementos pessoais a considerar: dois contraentes e um beneficiário; de um lado, o promitente, a pessoa que promete realizar a prestação e o promissário, a pessoa a quem é feita a promessa; do outro, o terceiro beneficiário, estranho à relação contratual, mas que adquire direito à prestação. Eis aqui um bom exemplo de desvio à relatividade dos contratos ou ao princípio do efeito relativo (inter-partes) dos contratos1.

Claro que se poderia alvitrar que, para valer perante um qualquer terceiro, este deveria ser designado no contrato como beneficiário, o que implicava desde logo a sua identificação. Todavia, este eventual obstáculo tomba sob o peso da norma criada pelo art. 439º, ao permitir que a prestação pode ser estipulada a favor de terceiro indeterminado, bastando que o beneficiário seja determinável no momento em que o contrato vai produzir efeitos a seu favor.

Regra geral, portanto, do contrato nasce um direito a uma prestação2, a uma vantagem3, não uma obrigação4. Por isso se diz que o efeito para a esfera do “beneficiário” deva ser positivo5.

A questão está, agora, em saber duas coisas:

Uma, se esse efeito positivo ou de vantagem é incompatível com a atribuição de deveres; outra, como deve esse efeito ser conferido, isto é, qual a forma de manifestação da prestação.

A primeira questão, é respondida com relativa facilidade. É certo que através de um contrato entre duas partes não pode impor-se apenas uma obrigação a outra pessoa que nele não tenha figurado, enquanto objecto único dos efeitos pretendidos em relação a ela. Isso contraria o espírito da relatividade contratual na sua essência mais pura e escapa, pela letra do preceito transcrito, à sua mais estrita previsão. Não é disso, porém que aqui se trata.

Por outro lado, a imposição de deveres, num quadro mais alargado de uma posição jurídica que também envolva vantagens, não tem qualquer eficácia se o terceiro não os aceitar dentro da sua livre determinação e no quadro do exercício da sua vontade. De resto, é hoje pacífico que podem ser fixados ónus e deveres ao terceiro, sem que com isso resulte afectada a sua margem de liberdade. As partes atribuem-lhe vantagens, se de benefícios o negócio unicamente tratar. Mas, se a atribuição do efeito positivo carecer de uma atitude posterior do beneficiário da qual resulte a assunção de deveres, através da sua adesão por qualquer facto6, não se vê em que isso contrarie o objectivo do contrato. A vantagem é, para este efeito, cindível ou autonomizável. Por conseguinte, tudo ficará cometido ao seu livre arbítrio e alto critério pessoal: o terceiro é livre de acatar ou não os deveres, sendo certo que se a sua resposta for negativa, perderá o direito à vantagem e ao efeito positivo7 resultante daquele contrato.

A segunda pode ser mais problemática, mas a solução acaba por ser pacífica, segundo se crê, se for de entender que “dar trabalho”, isto é, conceder um posto de trabalho, proporcionar emprego a alguém nas condições estipuladas no contrato-norma é uma prestação de facere ou uma prestação de facto8, mesmo que incluída numa relação jurídica a constituir. O contrato a celebrar com o terceiro não seria o fim último da situação de vantagem reconhecida e prometida pelo contrato entre Guardforce e Sociedade de Apoio, mas sim e apenas o instrumento jurídico através do qual se realizaria o benefício, a vantagem, o direito.

De resto, também se não deve negar que, para além do efeito positivo traduzido no próprio emprego prometido oferecer, qualquer cláusula que ali o promitente assumiu em benefício do trabalhador a contratar (v.g, valor remuneratório, garantia de assistência, etc.) ainda representa uma prestação positiva a que Guardforce se obrigou.

Por conseguinte, os possíveis obstáculos, salvo melhor opinião, não têm já qualquer consistência. O que vale por dizer que, contra a tese da sentença sob censura, o contrato a favor de terceiro será aquele que melhor se adequa à situação em apreço e é nesse pressuposto que avançaremos para as consequências daí emergentes.
.

3- A compensação devida

3.1- Diferenças salariais

O autor defendia na petição inicial que o salário a considerar é aquele que resulta do “contrato a favor de terceiro” (90 patacas ao dia: nº 4 da matéria de facto), não o que foi estipulado entre si e Guardforce.

Tem, efectivamente, razão. Na verdade, se daquele contrato de prestação de serviços advém uma vinculação da parte que promete contratar com o ora recorrente nos termos ali convencionados, será, obviamente, a partir das suas cláusulas e do direito correspondente que lhe nasce o direito de accionar o incumpridor.

Assim, tendo os contratos celebrados entre o trabalhador e Guardforce estabelecido valores remuneratórios abaixo dos mínimos além fixados e tendo sido pagas quantias inferiores (factos nºs 10 a 14)) àquelas que deveriam ter sido observadas, o ora recorrido terá direito à respectiva diferença (a diferença que deverá estabelecer-se entre clausulado no contrato de prestação de serviços e aquilo que foi efectivamente pago).

A este respeito, o então autor, apurando a diferença entre o devido e o prestado, encontrou o valor de Mop$ 99.020.00. Valor que não foi posto em causa na impugnação vertida na contestação, a qual se limitou a afirmar ter pago aquilo a que se sujeitou no contrato de trabalho celebrado com o aqui recorrente. Será, pois, esse o valor a considerar neste capítulo, que de resto coincide com o apuramento da sentença.
*
3.2- Trabalho extraordinário

O autor tinha apurado o valor total de Mop$ 42,712,00 a título de diferença de remuneração do trabalho prestado em serviço extraordinário, diferença resultante entre o valor de cada hora efectivamente paga e o valor por que devia ser paga à luz do salário diário normal de 90 patacas estipulado no contratado celebrado entre Guardforce e Sociedade de Apoio, com o acréscimo de mais uma pataca (Mop$1.00) a título de justo diferencial especial.

Sucede que, não tendo empregador e trabalhador acordado o valor do trabalho remunerado, como podia ter acontecido (art. 11º, nº1, al. b), do DL nº 24/89/M, de 3/04), aquele acréscimo não pode ser levado em consideração, por falta de base legal, nem sequer a título de equidade por falta dos respectivos pressupostos (art. 3º do Código Civil).

Assim sendo, as diferenças a levar em linha de conta devem apurar-se em função somente do valor pago e do valor da remuneração horária calculada a partir do vencimento diário) constante do contrato a favor de terceiro (90:8). Por outro lado, haverá que considerar também a circunstância de, face à matéria assente e ao ónus de prova não satisfeito, não haver a certeza sobre o trabalho prestado em dias de descanso semanal, feriado ou anual, tal como a sentença refere acertadamente.

Assim, o cômputo das importâncias apuradas neste item ascende a Mop$18.612,76, tal como concluído na decisão da 1ª instância.
*
3.3- Subsídio de alimentação

Do contrato de prestação de serviços ficou clausulado que os trabalhadores não residentes teriam direito a receber o valor de Mop$ 15,00 a título de subsídio de alimentação (ponto 3.1 do contrato).
A este respeito, o autor peticionava a importância de Mop$ 69.855,00, que a sentença reduziu para Mop$ 57.225,00, considerando os dias de trabalho, descontados os dias de descanso semanal, anual e feriados obrigatórios.
Ora, esta matéria não foi posta em causa no recurso em termos definidos, já que a questão a que foi prestada atenção se prendeu com a natureza do contrato e a não vinculação dele resultante. Isto é, a recorrente acha que nada deve pagar, mas apenas porque se não acha vinculada ao contrato de prestação de serviços na sua relação laboral estabelecida com o trabalhador autor. Quanto aos factos concretos de que poderia derivar a atribuição do dito subsídio, e sobre os quais podia a recorrente tecer críticas sobre o modo como a decisão da 1ª instância foi tomada, nem uma palavra. Significa que nesta parte, se tem que manter a sentença, ao atribuir aquele valor de Mop$ 57.225,00.
*
3.4- Subsídio de efectividade

Do mesmo contrato (cláusula 3.4) resulta que o trabalhador teria direito a auferir um subsídio mensal de efectividade igual ao salário de 4 dias, sempre que no mês anterior não tivesse dado qualquer falta ao serviço.

Sobre esta matéria, outra vez o silêncio da recorrente nas suas alegações e conclusões respectivas. Valem, por conseguinte, neste passo as considerações breves que aduzimos quanto ao anterior subsídio a propósito da sua (não) efectiva impugnação no presente recurso.

Significa isto que acompanhamos a sentença no que concerne á fixação do valor de Mop$ 54.720,00, tal como, de resto, vinha peticionado.
*

Em suma, o valor a considerar será a soma dos valores parcelares acima mencionados, tudo ascendendo a Mop$ 229.577,76, tal como decidido na sentença ora recorrida.


***


IV- Decisão

Face ao exposto, embora com parcialmente diferente fundamentação, acordam em negar provimento ao recurso e confirmar a sentença recorrida.
Custas no TSI pela recorrente.



TSI, 02 de Junho de 2011


_________________________
José Cândido de Pinho
(Relator)

_________________________
Lai Kin Hong
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
Choi Mou Pan
(Segundo Juiz-Adjunto)
1 Margarida Lima Rego, Contrato de Seguro e Terceiros, Estudos de Direito Civil, pag. 492
2 Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, I, pag. 410;
3 Digo Leite de Campos, Contrato a favor de terceiro, 1991, pag. 13.
4 Ob. cit, pag. 417
5 Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 493. Também, E. Santos Junior, Da Responsabilidade Civil de Terceiro por Lesão do Direito de Crédito, Almedina, pag. 165.
6 Inclusive pela forma que as partes contraentes entendam indicar: Autor e ob. cit, pag. 519. Nós entendemos que isso pode ser feito pela via do contrato a celebrar.
7 Neste sentido, por outras palavras, ver Margarida Lima Rego, ob. cit, pag. 494.
8 Neste sentido, ver Ac. do TSI no Proc. nº 574/2010, de 19/05/2011 e referências ali feitas à noção de prestar por Pessoa Jorge, in Obrigações, 1966, pag. 55, e Menezes Cordeiro, in Direito das Obrigações, 1º, pag. 336 e 338.
---------------

------------------------------------------------------------

---------------

------------------------------------------------------------