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Processo n.º 776/2010
(Recurso Laboral)
Data: 2/Junho/2011
Recorrente: A
Recorrida: Guardforce (Macau) – Serviços e sistemas de Segurança Lda.

    ACORDAM OS JUÍZES NO TRIBUNAL DE SEGUNDA INSTÂNCIA DA R.A.E.M.:
    I - RELATÓRIO
    A melhor identificada nos autos, vem instaurar a presente acção de processo comum do trabalho contra GUARDFORCE (Macau) - Serviços e Sistemas de Segurança – Limitada, com os demais sinais dos autos, pedindo a condenação da Ré a pagar à Autora a quantia de MOP$226.231,00 acrescida de juros legais vincendos até efectivo e integral pagamento.
Contestada a acção, por se ter entendido na douta sentença aí proferida que não seria aplicável ao caso o contrato celebrado entre a Ré e uma outra Sociedade, devendo o caso ser regulado pelo contrato directamente assinado entre A., a trabalhadora, e a Ré (a empregadora) julgou-se a acção parcialmente procedente porque parcialmente provada e em consequência condenou-se a R a pagar à A. a quantia de MOP$1.533,41, acrescida dos juros moratórios à taxa legal a contar da data da sentença, sendo a R. absolvida do remanescente do pedido.
    2. Inconformada, recorre a trabalhadora, alegando em sede conclusiva:
     Ao contrário do que terá concluído o Tribunal a quo não será correcto entender-se que o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, veio definir os requisitos formais para a contratação de trabalhadores não residentes, contudo, não define o regime legal a que os respectivos contratos estão sujeitos;
    Do mesmo modo, não será exacto afirmar que até à publicação da recente Lei n.º 21/2009 não tinha sido legalmente definido o regime da contratação dos não residentes;
    Ao invés, basta ver que, desde 1988, o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, fixa(va) as condições de contratação (procedimento) e de trabalho (conteúdo) em que devem ser contratados os trabalhadores não residentes, assumindo claramente uma natureza normativa e de cariz imperativo na medida em que nele se fixa uma disciplina substantiva e processual com vista à contratação, por empregadores de Macau, de trabalhadores não residentes e que, em caso algum, poderá ser afastada pelas partes;
    Neste sentido, a fixação legal de condições tidas como mínimas, em si mesma constitui um direito que escapa à liberdade da autonomia das partes, visto terem sido consagradas por uma razão - de ordem pública - maxime de protecção dos interesses da generalidade dos trabalhadores residentes (cfr. preâmbulo do Despacho n.º 12/GM/88 de 1 de Fevereiro);
    Do mesmo modo, o direito às condições mínimas fixado no despacho de autorização configura um direito indisponível e, porquanto, subtraído ao domínio da vontade das partes;
    Assim, da natureza "especial" do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, não deveria ter resultado qualquer dúvida ou receio por parte do Tribunal a quo quanto à sua directa aplicabilidade à relação sub judice e, bem assim, quanto à circunstância de se tratar de um regime imperativo que respeita à contratação de trabalhadores não residentes, afastando as regras gerais que o contrariem e que se encontrem estabelecidas no Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
    Sem prescindir, sempre se dirá que,
    Mesmo que aos autos se entende ser de aplicar as disposições do Decreto-Lei n.? 24/89/M, de 3 de Abril - por analogia - haveria então que retirar daquela aplicação todas as suas legais consequências, maxime em matéria de descanso semanal, feriados obrigatórios, férias, salário justo e, bem assim, de indemnização rescisória por denúncia unilateral por parte da Ré, porquanto em causa estariam preceitos inderrogáveis constantes do Regime Jurídico das Relações Laborais, o que igualmente não terá sido feito;
    A construção jurídico-civilistica constante da Sentença revela-se desnecessária em face da relação material controvertida apresentada pelo Autor, pelo que a decisão se revela incorrecta, por errada qualificação jurídica;
    Porém, caso se entenda que a qualificação jurídica operada pelo Tribunal a quo se revelava necessária, ainda assim a conclusão enferma de um vício de raciocinio, visto que, em qualquer dos casos, os únicos beneficiários da promessa seriam os trabalhadores e, in casu o Autor, ora Recorrente, e nunca a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau;
    Ao contrário do que terá entendido o Tribunal a quo, a questão central dos presentes autos traduz-se no desrespeito pela Ré do procedimento legal e positivo, designadamente o constante do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro e, bem assim o Despacho do Secretário para a Economia e Finanças que in casu autorizou a Ré a admitir trabalhadores não residentes, nos quais se incluiu o Autor, ora Recorrente;
    Assim, a premissa na qual se fundou a decisão do Tribunal a quo para julgar os presentes autos é incorrecta e em muito se afasta dos factos e fundamentos trazidos aos autos quer pelo Autor, quer pela Ré, sendo a mesma nula nos termos da al. c) do n.º 1 do art. 571.° do Código do Processo Civil;
    Por outro lado, ao contrário do que erradamente concluiu o Tribunal a quo, em caso algum é verdade que a concreta causa de pedir apresentada pelo Autor tenha consistido na violação das cláusulas do contrato de trabalho
    Assim, tendo o Tribunal a quo se afastado do quid decisório, sem que para tal apresente as razões de facto ou de Direito, é a Sentença nula por ausência de fundamento legal;
    Não é correcto concluir que das condições administrativas exigidas pela Região Administrativa Especial de Macau relativamente à contratação de mão de obra estrangeira não resulta a imposição de contratar nestes ou noutros termos, pois dali não resultam imperativos legais para a entidade patronal e/ou empregado de contratar em determinados termos;
    Pelo contrário - uma vez mais se sublinha - o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, toma de forma clara e expressa uma natureza assumidamente normativa e de cariz imperativo na medida em que nele se fixa uma disciplina substantiva e processual com vista à contratação, por empregadores de Macau, de trabalhadores não residentes, obrigando a uma contratação em condições mínimas acordadas com a empresa prestadora de serviços (Cfr. neste exacto sentido, o Ac. do TSI, de 15 de Dezembro de 2009, Processo de Recurso n.º 739/2009);
    Tendo na Sentença ficado prejudicada a análise da matéria relativa ao subsídio de alimentação e subsídio de efectividade e constante da matéria de facto dada por provada e não tendo o Tribunal a quo se pronunciado sobre a totalidade do pedido, a decisão deverá ser nula, por violação da al. d) do n.º 1 do art. 571° do Código de Processo Civil.
    Na concreta forma de cálculo utilizada para compensar o Autor, ora Recorrente, pelo trabalho prestado em dia de descanso semanal, a douta decisão procede a uma errada aplicação quer do disposto na al. a) do n.º 6, quer do n.º 4 do art. 17° do Decreto-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
    Nestes termos, entende, deverá a sentença do 3.° Juízo Cível do Tribunal Judicial de Base ser declarada nula pelas razões supra expostas e substituída por outra que julgue nos termos pedidos pela Autora na sua petição inicial.
    
    3. A Ré GUARDFORCE (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança – Limitada, contra-alega, em síntese:
    Veio o presente recurso interposto da douta sentença proferida pelo Tribunal "a quo" que decidiu julgar a acção parcialmente procedente porque parcialmente provada e em consequência condenar a Ré a pagar ao Autor a quantia de MOP$1.533,41 acrescida de juros moratórios à taxa legal, sendo a Ré absolvida do remanescente do pedido;
    Não merece reparo o entendimento do douto Tribunal a quo de que o Despacho n.º 12/GM/88 cuida apenas dos requisitos formais para a contração de trabalhadores não residentes, não definindo o regime legal a que ficam sujeitos os contratos de trabalho com os mesmos posteriormente celebrados, e que, até à publicação da Lei 21/2009 existia uma lacuna no que respeita ao regime jurídico das relações laborais estabelecidas entre empregadores residente e trabalhadores não residentes.
    O Despacho n.º 12/GM/88 não tem uma natureza normativa e de cariz imperativo, destinando-se as suas normas apenas a conformar o processo administrativo de contratação de trabalhadores não residentes, pelo que, o mesmo não afecta a relação laboral estabelecida entre Recorrente e Recorrida.
    O Despacho n.º 12/GM/88 é um acto normativo proferido pelo Governador no âmbito da respectiva função executiva, e não no domínio da sua função legislativa derivada.
    O Despacho n.º 12/GM/88 cuida apenas dos procedimentos a adoptar para a contratação de trabalhadores não residentes, e não do conteúdo da concreta relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
    Face à natureza jurídica do Despacho não poderá o mesmo coarctar a liberdade contratual das partes, e gerar na esfera jurídica de qualquer delas direitos ou deveres que não tenham sido livre e reciprocamente acordados.
    Do mesmo modo, o Despacho do Secretário para a Economia e Finanças emitido ao abrigo e no seguimento das normas procedimentais estabelecidas no referido Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro pela sua natureza jurídica não poderá também criar na esfera jurídica do Autor quaisquer direitos.
    Não obstante, o Recorrente demonstrar o seu desacordo com a sentença recorrida, a verdade é que, desse mesmo desacordo não retira qualquer consequência e nem identifica qual o vício de que padece a decisão em recurso, por haver decidido da forma como decidiu.
    Para que tivesse havido condenação em quantidade superior ao pedido teriam necessariamente que ter sido alegados factos que conduzissem a essa condenação, nomeadamente no que respeita a matéria de descanso semanal, feriados obrigatórios, férias, salário justo e, bem assim, de indemnização rescisória por denúncia unilateral por parte da Ré, o que a Recorrente não fez, pelo que, deve também quanto a este ponto improceder o Recurso por si apresentado.
    Não merece reparo o exercício de determinação da natureza jurídica do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré, ora Recorrida, e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada, afastada que foi a imperatividade e o carácter normativo do Despacho 12/GM/88 e consequentemente do Despacho de autorização govemativa,
    No que concerne à alegada contradição entre os fundamentos e a decisão, o referido vício não ocorre quando a decisão está em oposição com os fundamentos trazidos aos autos quer pelo Autor, quer pela Ré, mas antes quando ocorre uma contradição lógica entre os fundamentos da própria sentença e a decisão.
    No caso dos autos o douto Tribunal a quo fez um louvado percurso lógico, decidindo de modo coerente com o raciocínio expedido ao longo do aresto.
    O douto Tribunal a quo nunca poderia ignorar a natureza jurídica do contrato de prestação de serviços e os efeitos jurídicos produzidos pelo mesmo, uma vez que, por um lado, anteriormente já havia afastado a natureza normativa e imperativa do Despacho n.º 12/GM/88, e por outro, é no referido contrato de prestação de serviços que o Autor fundamenta o seu direito a uma alegada diferença salarial e outros créditos de que se arroga titular.
    O Recorrente descontextualiza a afirmação contida na sentença em Recurso de que a causa de pedir apresentada pelo Autor consistiu na violação das cláusulas do contrato de trabalho, acusando assim douto Tribunal a quo de se afastar do quid decisório, quando, o douto Tribunal a quo apenas faz a mencionada afirmação, após afastar um a um os vários fundamentos que constituíam a causa de pedir do Autor.
    Não sendo o Autor parte do contrato de prestação de serviços celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Limitada, para que o mesmo pudesse produzir efeitos na sua esfera jurídica havia que afastar o princípio “res inter alios acta aliis neque nocet neque prodest”, enquadrando-o num dos "casos especialmente previstos na lei" (artigo 400°, n.º 2 do CC).
    À celebração do contrato de prestação de serviços não esteve subjacente a criação de direitos/deveres na esfera jurídica de outrem que não os seus originais outorgantes, ao que acresce o facto da aprovação administrativa a que foi sujeito não lhe ter conferido tal virtualidade.
    A análise realizada pelo douto Tribunal a quo dos vários tipos contratuais em que se poderia enquadrar o contrato de prestação de serviços celebrado entre a ora Recorrida e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Limitada por forma a produzir efeitos na esfera jurídica do Autor não merece reparo, tendo ficado devidamente demonstrado que as partes primitivas não tiveram qualquer intenção de atribuir a terceiros quaisquer vantagens decorrentes desse mesmo contrato.
    Tem sido entendimento unânime da doutrina e da Jurisprudência do Tribunal de Última Instância que, caso o trabalhador tenha já recebido em singelo o pagamento do trabalho que prestou em dia de descanso semanal, só lhe resta receber o pagamento do valor correspondente a outro dia de trabalho.
    A questão sobre o direito do Recorrente em ser compensado por não lhe ter sido concedido dia de descanso compensatório está prejudicada porquanto, não obstante mencionada nas suas alegações, tal afirmação/pedido não consta das Conclusões, pelo que, não poderá o douto Tribunal ad quem, salvo devido respeito por melhor opinião, conhecer da mesma.
    A falta de análise de uma questão por parte do Tribunal a quo por considerar que a apreciação da mesma ficou prejudicada pela solução dada a qualquer outra questão colocada no âmbito do mesmo processo, não é recondutível ao vicio de omissão de pronúncia previsto na alínea d), do n.º 1 do artigo 571° do Código de Processo Civil.
    Nestes termos, conclui, deve o recurso interposto pelo recorrente ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida.
    4. Foram colhidos os vistos legais.
    
    II - FACTOS
   Vêm provados os factos seguintes:
A Ré é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, vigilância, transporte de valores;
Desde o ano de 1993, a Ré tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de «guarda de segurança», «supervisor de guarda de segurança», «guarda sénior»;
Desde 1992, a Ré celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau Lda., os «contratos de prestação de serviços»: n.° 9/92, de 29/06/1992; nº 6/93, de 01/03/1993; nº 2/94, de 03/01/1994; nº 29/94, de 11/05/1994; nº 45/94, de 27/12/1994;
O contrato de prestação de serviços com base no qual a Ré outorgou o contrato individual de trabalho com a Autora, era o “Contrato de Prestação de Serviços n.º 02/94”;
Do contrato referido em d) cuja cópia está a de fls. 34 a 39 e aqui se dá por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, consta que os trabalhadores não residentes ao serviço da Ré teriam direito a auferir no mínimo MOP$90,00 diárias, acrescidas de MOP$15,00 diárias a titulo de subsidio de alimentação, um subsídio mensal de efectividade «igual ao salário de quatro dias», sempre que no mês anterior não tenha dado qualquer falta ao serviço, sendo o horário de trabalho de 8 horas diárias, sendo o trabalho extraordinário remunerado de acordo com a legislação de Macau;
A Ré sempre apresentou junto da entidade competente, maxime junto da Direcção dos Serviços de Trabalho e Emprego (DSTE), cópia dos «contratos de prestação de serviço» supra referidos, para efeitos de contratação de trabalhadores não residentes;
Entre 22.05.1997 e 31.05.2008, a Autora esteve ao serviço da Ré, exercendo funções de “guarda de segurança”;
Trabalhando sobre as ordens, direcção, instruções e fiscalização da Ré;
Era a Ré quem fixava o local e horário de trabalho da Autora, de acordo com as suas exclusivas necessidades;
Durante todo o período de tempo anteriormente referido, foi a Ré quem pagou o salário à Autora;
A Ré apresentou à Autora um contrato individual de trabalho o qual foi assinado pelo Autor, assim como outros cinco contratos individuais de trabalho, cujas cópias constam de fls. 48 a 64 e aqui se dão por integralmente reproduzidas para todos os efeitos legais;
Entre 22 de Maio de 1997 e 30 de Junho de 1997, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou à Autora, a título de salário mensal, a quantia de MOP$1,700.00;
Entre Julho de 1997 e Março de 1998, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou à Autora, a título de salário, a quantia de MOP$1,800.00 mensais;
Entre Abril de 1998 e Fevereiro de 2005, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou à Autora, a título de salário, a quantia de MOP$2,000.00 mensais;
Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou à Autora, a título de salário, a quantia de MOP$2,100.00 mensais;
Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006, como contrapartida da actividade prestada, a Ré pagou à Autora, a título de salário, a quantia de MOP$2,288.00 mensais;
Entre 22 de Maio de 1997 e Junho de 1997 a Ré sempre remunerou o trabalho extraordinário prestado pela Autora à razão de MOP$8.00 por hora;
Entre Julho de 1997 e Junho de 1999 a Ré sempre remunerou o trabalho extraordinário prestado pela Autora à razão de MOP$9.30 por hora;
Entre Julho de 1999 e Junho de 2002 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pela Autora à razão de MOP$9.30 por hora;
Entre Julho de 2002 e Dezembro de 2002 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pela Autora à razão de MOP$10.00 por hora;
Entre Janeiro de 2003 e Fevereiro de 2005 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pela Autora à razão de MOP$11.00 por hora;
Entre Março de 2005 e Fevereiro de 2006 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pela Autora à razão de MOP$11.30 por hora.
O Autor só teve conhecimento do efectivo e concreto conteúdo de um «contrato de prestação de serviços» assinado entre a Ré e Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, já depois de cessada a relação de trabalho com a Ré, mediante informação por escrito prestada pela Direcção dos Serviços para os Assuntos Laborais (DSAL), a pedido do Autor em 2008;
Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006 a Ré remunerou o trabalho extraordinário prestado pela Autora à razão de MOP$11.50 por hora;
Entre 22 de Maio de 1997 e Junho de 1999, a Autora trabalhou em turnos de 12 horas de trabalho por dia;
Entre 22 de Maio de 1997 e Junho de 1999, a Autora prestou 4 horas de trabalho extraordinário por dia;
Entre 01.07.1999 e 30.06.2002 a A. prestou 3177 horas de trabalho extraordinário;
Entre 01.07.2002 e 31.12.2002 a A. prestou 556 horas de trabalho extraordinário;
Entre 01.01.2003 e 28.02.2005 a A. prestou 3542 horas de trabalho extraordinário;
Entre 01.03.2005 e 28.02.2006 a A. prestou 1655 horas de trabalho extraordinário;
Entre Março de 2006 e Dezembro de 2006 a A. prestou 1644 horas de trabalho extraordinário;
A Ré nunca pagou à Autora qualquer quantia a título de subsídio de alimentação;
Durante todo o período da relação laboral entre a Ré e a Autora, nunca a Autora - sem conhecimento e autorização prévia pela Ré - deu qualquer falta ao trabalho;
A Ré nunca pagou à Autora qualquer quantia a título de «subsídio mensal de efectividade de montante igual ao salário de 4 dias»;
Entre 12.04.2000 e 04.03.2002 a Autora gozou 76 dias de descanso e 149 dias por maternidade;
Pela prestação de trabalho pela Autora nos dias de descanso semanal, a Autora sempre foi remunerado pela Ré com o valor de um salário diário, em singelo e não lhe foi concedido um dia de descanso compensatório.

    III - FUNDAMENTOS
    1. O objecto do presente recurso passa pela análise das seguintes questões:
    - Enquadramento jurídico da relação laboral estabelecida entre as partes.
    - Regime jurídico aplicável ao caso
    - Valor do contrato celebrado entre a Ré e e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau. Lda, enquanto empresa fornecedora de mão-de-obra não residente
    - Determinação dos montantes em dívida
    2. Que se tratou de um contrato de trabalho entre a A. e a Ré parece não haver quaisquer dúvidas.
    Em face do artigo 1079.º do Código Civil, decorre, vista a factualidade apurada, que parece não restarem quaisquer dúvidas de que nos encontramos perante um verdadeiro e puro contrato de trabalho, em que o trabalhador, mediante uma retribuição, sob autoridade, orientações e instruções da entidade patronal, começou a trabalhar como guarda de segurança.
    Dispõe o artigo 1079º do CC:
    1. Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua actividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direcção desta.
2. O contrato de trabalho está sujeito a legislação especial.
    
    3. A questão está em saber qual o regime aplicável a tal relação laboral.
    Enquanto o Mmo Juiz a quo entendeu dever ser tal relação regulada apenas pelo contrato de trabalho celebrado entre o A. e Ré, defende a trabalhadora ora recorrente que essa relação laboral decorre, para além do regulado nesse contrato, pelo regime legal aplicável mais favorável ao trabalhador e que decorre de um contrato celebrado entre a Ré e uma Sociedade prestadora de serviços, ao abrigo do qual o trabalhador foi contratado, ao abrigo do qual, enquanto não residente, foi autorizado a trabalhar em Macau, regime esse devidamente enquadrado por uma previsão normativa constante do Despacho 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
    
    4. Importa atentar no regime da contratação dos não residentes.
    Não sem que se observe que, em princípio, só em relação aos residentes há liberdade negocial. A contratação dos não residentes está condicionada a uma autorização administrativa e se é assim actualmente, também o foi no passado.
    Esta nota é muito importante para a abordagem do caso vertente, na medida em que os termos e condicionamentos de uma contratação como a presente não dependem ou não podem depender por e simplesmente da vontade dos contratantes, empregador e trabalhador.
    Ora, na lógica do defendido pela recorrida e de certa forma com acolhimento na douta sentença recorrida este condicionalismo é marginalizado.
    A Lei de Bases da Política de Emprego e dos Direitos Laborais, Lei n.º 4/98/M, de 27 de Julho, publicada no BO de Macau n.º 30, I série, no artigo 9.° admite a contratação de trabalhadores não residentes quando se verifiquem determinados pressupostos, estatuindo que essa contratação fica dependente de uma autorização administrativa a conceder individualmente a cada unidade produtiva.
    Por sua vez, o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n." 24/89/M, de 03 de Abril, vigente até 01 de Janeiro de 2009 (altura em que entrou em vigor a Lei n." 7/2008, Lei das Relações de Trabalho) e aprovado para definir os condicionalismos mínimos que devem ser observados na contratação entre os empregadores directos e os trabalhadores residentes, tal como resulta do seu artigo 1.º, n.º 2, esclareceu ele próprio que não seria aplicável a alguns conjuntos de relações de trabalho, entre os quais as relações de trabalho entre empregadores e trabalhadores não residentes, que seriam reguladas por normas especiais que se encontrem em vigor, nos termos do artigo 3.°, n." 3, alínea d).
    Essas normas especiais foram (não se conhecem outras), até à entrada em vigor da Lei n." 21/2009 de 27.10, no dia 25 de Abril de 2010, as previstas no Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, considerando que o Dec.-Lei n.º 101º/84(M, de 25 de Agosto, onde no capítulo VII se previa a contratação de trabalhadores estrangeiros, apátridas e no capítulo VIII a de cidadãos chineses provenientes da RPC, aí se regulando os pressupostos de contratação e, em relação ao primeiro grupo ainda um conjunto de princípios que deviam enformar essa contratação, em particular a não discriminação baseada na nacionalidade (artigo 51º), foi revogado pelo já referido Decreto-lei n." 24/89/M, de 03 de Abril.
    5. Convém aqui fazer um parêntesis e analisar a pretensa invalidade desse Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, até porque é questão que vem colocada em sede de contra-alegações pela ora recorrida.
    Defende a recorrida que esse Despacho foi proferido pelo então governador no âmbito das suas funções executivas (art. 16º, n.º 2 do estatuto Orgânico de Macau - EOM - então em vigor), que a função legislativa que ao Governador então incumbia e devia ser exercida por Decreto-Lei, conforme dispunha o artigo 13º e que a regulamentação das relações laborais, ainda que com não residentes não podiam caber dentro das funções executivas e ser regulada por um simples Despacho.
    Cita até, em abono da sua tese, António dos Santos Ramos, mas o que este autor refere é uma questão algo diferente e que se prende com o facto de tal despacho ser regulamentador de uma lei, na altura, o DL 101/84/M, entretanto revogado, perdendo sentido a sua eficácia regulamentar quando já não havia lei a regular. Embora seja esse mesmo autor a reconhecer que não havia outras disposições atinentes ao regime a observar na contratação dos não residentes e que ao longo dos anos foi esse diploma que enquadrou as contratações dos não residentes.1
    Bom, sobre isto, o que dizer?
    Muito sumariamente que, aliás como a própria recorrida reconhece, o Despacho 12/GM/88 cuida tão somente do procedimento administrativo conducente à obtenção de autorização para a contratação de trabalhadores não residentes e não do conteúdo concreto da relação laboral a estabelecer entre os trabalhadores não residentes e as respectivas entidades patronais.
    Não se trata de um regime jurídico de determinadas relações laborais, antes de um prontuário procedimental a que devem obedecer as contratações de um determinado grupo de trabalhadores, traduzindo-se muitas das normas em condicionamentos e instruções dirigidas aos respectivos Serviços, não tendo ma natureza normativa instituidora de direitos e obrigações para os sujeitos da relação laboral.
    As normas específicas, constantes desse Despacho normativo, vigente enquanto esteve em execução o contrato de trabalho junto aos autos, regulam o procedimento para admissão em Macau de mão-de-obra não residente, impondo, nomeadamente, à Ré, enquanto empresa empregadora, elencam as condições mínimas de contratação que estava disposta a conceder ao trabalhador não residente, para obter a necessária
aprovação do Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos, mas esse Despacho nada refere quanto aos princípios, às condições, aos direitos, deveres e garantias a que fica sujeita essa relação de trabalho.
    Esta questão não se coloca na actualidade uma vez que o artigo 20.° da Lei n.º 21/2009 de 27/Out. (Lei da contratação de trabalhadores não residentes) estabelece a aplicação subsidiária do regime geral das relações de trabalho aos contratos com trabalhadores não residentes (aplicação subsidiária essa que já é consentânea com a redacção do artigo 3.°, n." 3, 1) da Lei n." 7/2008, Lei das Relações de Trabalho), mas no âmbito do Despacho n.º 12/GM/88 de 01 de Fevereiro, não existia qualquer remissão para o Regime Jurídico das Relações de Trabalho estabelecido pelo Decreto-lei n.? 24/89/M, de 03 de Abril, sendo certo que este último diploma mesmo referia, como supra se consignou, que os contratos de trabalho celebrados entre empregadores e trabalhadores não residentes não seriam por ele abrangidos por estarem reguladas pelas normas especiais que se encontrem em vigor, como já acima dito.
    Perante este quadro, não temos grande dificuldade em superar as críticas quanto a uma pretensa ineficácia por invalidade formal do dito Despacho, uma vez que não se trata de um diploma legislativo - no sentido estrito e formal de lei, enquanto disposição genérica provinda do órgão competente no limite da sua competência legislativa2 - e não tem razão a recorrida ao pretender ver nele força bastante para coarctar a liberdade negocial dos cidadãos pois que tal argumento não colhe pela razão simples de que a limitação e condicionamento do trabalho de não residentes em Macau resulta de diplomas legislativos próprios, sob pena de ter de se considerar que como não se podia limitar a liberdade contratual dos empregadores por essa via seria a franqueada a porta de Macau para qualquer pessoa não residente que aqui pretendesse trabalhar. Ou seja, não é esse Despacho que condiciona a admissão de não residentes. Estes não podem trabalhar, em princípio, pela razão simples de que aqui não podem residir.
     Como perde alguma razão o autor citado, enquanto pretende ver no referido Despacho uma natureza regulamentadora de um outro diploma, sendo certo que tal diploma tem força autónoma relativamente aos condicionamentos e procedimentos enformadores da autorização de mão-de-obra não residente.
    Temos, por conseguinte, por inabalada a eficácia do Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro.
    6. Importa, então, apurar sobre o regime jurídico aplicável a este contrato de trabalho, sabido que o mesmo se iniciou em 22 de Maio de 1997 e cessou em 31 de Maio de 2008.
    Não é difícil perceber que ele deve ser iluminado por um conjunto de fontes reguladoras do regime jurídico aplicável ao caso - contratação administrativamente condicionada -, a saber:
- o Despacho n." 12/GM/88 de 01 de Fevereiro;
- o contrato celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.
- o contrato celebrado entre o A. e a Ré;
- o RJRL ( DL24/89/M, de 3/Abril), na medida em que remissivamente aplicável.
Tanto mais que está provado que a Ré foi autorizada a contratar trabalhadores não residentes, entre os quais o ora Autor, para a prestação de funções relacionadas com a actividade de segurança privada.
O que foi feito ao abrigo do artigo de um contrato de prestação de mão de obra com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda, conforme previsto nos artigos 3º, 7º, 8º, 9º do Despacho n.º 12/GM/88.
Isto é, o contrato com a A. só foi celebrado porque a Administração autorizou a celebração daquele contrato, devidamente enquadrado por um outro contrato que devia ser celebrado com uma empresa fornecedora de mão-de-obra e onde seriam definidas as condições mínimas da contratação, como flui do artigo 9º, d), d.2) do aludido despacho 12/GM/88:

“9. O procedimento para a admissão de mão-de-obra não-residente observará os trâmites seguintes:
a) O requerimento da entidade interessada será presente no Gabinete do Secretário-Adjunto para os Assuntos Económicos que despachará, mandando ouvir sobre o mesmo o Gabinete para os Assuntos de Trabalho e a Direcção dos Serviços de Economia, ou determinará a prestação dos esclarecimentos que julgue convenientes;
b) O Gabinete para os Assuntos de Trabalho e a Direcção dos Serviços de Economia pronunciar-se-ão sobre o pedido no prazo de 10 dias úteis;
c) Obtidos os pareceres referidos na alínea anterior, será proferido despacho que decidirá da admissão solicitada, determinando à requerente que, em caso afirmativo, faça presente o contrato de prestação de serviços com entidade habilitada como fornecedora de mão-de-obra não-residente, tal como previsto no n.º 7;
d) O contrato será remetido ao Gabinete para os Assuntos de Trabalho, a quem compete verificar e informar se se encontram satisfeitos os requisitos mínimos exigíveis para o efeito, designadamente os seguintes:
d.1. Garantia, directa ou indirecta, de alojamento condigno para os trabalhadores;
d.2. Pagamento do salário acordado com a empresa empregadora;
d.3. Assistência na doença e na maternidade;
d.4. Assistência em caso de acidentes de trabalho e de doenças profissionais;
d.5. Repatriamento dos trabalhadores considerados indesejáveis. (Os deveres mencionados em d.3. e d.4. serão obrigatoriamente garantidos através de seguro);
e) Fornecidos os elementos de informação referidos na alínea anterior será proferido despacho que decidirá da aprovação das condições de contratação dos trabalhadores não-residentes, fazendo remeter o processo ao Comandante das Forças de Segurança de Macau;
f) O Comandante das Forças de Segurança de Macau proferirá despacho, determinando lhe seja presente a lista nominativa dos trabalhadores a recrutar, e decidindo, posteriormente, sobre a sua entrada e permanência no Território.”
    É assim que as condições previstas no aludido contrato ganham força, sendo, como é óbvio, vista a natureza da relação laboral e os contornos administrativos a que é sujeita, que as condições de trabalho menos favoráveis para o trabalhador, resultantes do contrato de trabalho entre este e o empregador, hão-de ceder necessariamente perante as resultantes do contrato celebrado entre o empregadora e a empresa fornecedora mão-de-obra, condição decorrente da autorização de relação laboral em causa.
    É certo que o contrato de trabalho, como negócio jurídico obrigacional, se baseia na autonomia privada, a qual engloba para além da liberdade de celebração, a liberdade de estipulação. Como ensina Pedro Romano Martinez, “como em qualquer negócio jurídico, as partes têm, liberdade de conformar as regras contratuais aos interesses que pretendem prosseguir. Todavia, no domínio laboral, a liberdade de estipulação contratual encontra-se limitada; a especial protecção do trabalhador, que o Direito do Trabalho pretende conferir, leva a que, frequentemente, se condicione a liberdade das partes na conformação das regras contratuais, até porque, não raras vezes, a situação factual de desigualdade entre as partes potenciaria o estabelecimento de regras desfavoráveis para o trabalhador”.
    Razões estas, se não apodípticas, observáveis na nota preambular do referido Despacho n.º 12/GM/88, em que para além da contemplação dos interesses protagonizados pela defesa da mão-de-obra local e dos protagonizados pelos interesses empresariais se sublinhou o seguinte:
    
    “Da parte do Governador há ainda a considerar um terceiro aspecto da questão, que é o de não consentir no Território situações que contendam com o padrão mínimo, ou que como tal seja aceite pela consciência social, relativamente às condições de alojamento da população trabalhadora, Entendeu-se assim que Q solução do problema passava por uma clara destrinça. entre as situações de emprego dos residentes, estas reguladas pela lei aplicável entre empregador e empregado como sujeitos autónomos de direitos e obrigações, e as situações de emprego de não-residentes, que, ao contrário das primeiras, traduzirão um vínculo de contrato de prestação de serviços com terceiras entidades. Estas tem que se responsabilizar pelo alojamento dos trabalhadores ocasionais e pelo pagamento dos salários que lhes sejam devidos, bem como pelo seu repatriamento quando os considerem dispensáveis. Fica claro, de qualquer forma, que esses trabalhadores ocasionais não têm qualquer direito de permanência em Macau. Nem de outra forma seria possível avançar, como é firme propósito do Governador, em defesa dos interesses dos trabalhadores residentes no Território. Para tal, estes hão-de constituir uma massa determinada, com peso específico próprio.
    
    Nesta primeira fase, tal defesa consiste na regulação das condições de oferta do mercado, pedindo que os trabalhadores sob custódia de uma terceira entidade contratados por via de contrato de prestação de serviços possam constituir-se numa pressão que resulte em prejuízo dos trabalhadores residentes, quer no que diz respeito à estabilidade do emprego, quer no que diz respeito ao nível dos salários. E trata-se, é bom que se diga, de uma solução que se aceita a titulo experimental, determinada pela extrema complexidade da matéria e pela urgência que havia em dar-lhe encaminhamento. Por isso, aliás, se introduz por via do simples despacho, aproveitando a feliz circunstância de não parecer que algum normativo de grau superior a tal se oponha.”
    Torna-se assim mais claro o enquadramento que deve presidir ao estabelecimento do regime jurídico da relação em apreço e que passa pela aplicação das normas mais favoráveis que de qualquer um dos contratos em referência resulte, até em nome do princípio do favor laboratoris, entendido este como um princípio geral do Direito do Trabalho, entendido este com assento na concepção das opções legislativas pro operario e não como derrogando as regras imperativas da interpretação das normas decorrentes do Direito Civil.3
    7. Face à defesa, por banda da empregadora, aqui recorrida, das posições desenvolvidas na douta elaboração presente na sentença recorrida a propósito da incursão pelo Direito das Obrigações, para excluir em termos de caracterização do contrato entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda, a natureza ínsita a qualquer dos contratos-tipo analisados - contrato de trabalho, contrato para pessoa a nomear, contrato a favor de terceiro, contrato de cedência de trabalhadores, contrato de promessa - não nos eximiremos a algumas poucas palavras sobre o assunto.
    Antes de mais, reafirmamos que a força da vinculação a tal regime resulta das normas condicionantes da autorização de trabalho, administrativamente contempladas. Isto é, só o trabalho prestado naquele condicionalismo seria autorizado. Donde, tais cláusulas, previstas nesse contrato serem condição de concessão de autorização de trabalho para aquela situação em concreto.
    Não se pode proceder a uma análise desgarrada desse enquadramento e desse condicionalismo, donde, repete-se, o regime jurídico aplicável resultar desse acervo clausulado.
    Mas, mesmo numa perspectiva de direito obrigacional puro, não somos a acompanhar, sem escolhos a leitura, aliás com mérito, que o Mmo Juiz faz dos diferentes institutos, muito particularmente no que se refere ao contrato a favor de terceiro.
    Mas antes de prosseguirmos importa referir que não poucas vezes a realidade da vida é mais rica do que a realidade conceptualizada e, assim, as soluções do legislador não são bastantes para abarcar toda a factualidade.
    Isto, para enfatizar que, por isso mesmo, os institutos previstos pelo legislador não são o bastante para regular toda a realidade negocial e daí que se devam conjugar, até em nome da liberdade contratual, diferentes contratos, surgindo-nos as situações de negócios mistos ou inominados.
    É a partir desta constatação que nos damos a perguntar a nós próprios o que impede, em termos meramente de autonomia privada e de liberdade contratual, que alguém assuma perante outrem a obrigação de dar trabalho a um terceiro, mediante certas condições e estipulações. Sinceramente que não nos ocorre nenhum obstáculo.
    Estamos perante um contrato a favor de terceiro quando, por meio de um contrato, é atribuído um benefício a um terceiro, a ele estranho, que adquire um direito próprio a essa vantagem.4
    Esta noção está plasmada no artigo 437º do CC, aí se delimitando o objecto desse benefício que se pode traduzir numa prestação ou ainda numa remissão de dívidas, numa cedência de créditos ou na constituição, transmissão ou extinção de direitos reais.
    O objecto imediato do contrato a favor de terceiro pode ter, na verdade, diversa natureza jurídica e os mais diferentes conteúdos económicos, bastando que a aquisição pelo terceiro seja de um benefício ou de uma vantagem.5
    A razão excludente da configuração de um contrato a favor de terceiros, na tese do Mmo Juiz a quo, parece-nos algo limitativa.
    Porque a obrigação assumida consiste numa prestação e não na celebração de um contrato, tal enquadramento não caberia ao caso.
    Não estamos certos desta aparente linearidade.
    A Ré compromete-se com uma dada Sociedade a dar trabalho ao A. e assume o compromisso de o fazer em determinadas condições.
    Sinceramente que não vemos onde não exista aqui a assumpção de uma prestação, qual seja a de dar trabalho a A, a de contratar com ele e a de lhe pagar X.
    Prestação é a conduta a que o devedor está obrigado ou seja o comportamento devido, na expressão lapidar de Pessoa Jorge.6
    Ora o facto de a Ré ter assumido a obrigação de dar trabalho, tal não é incompatível com uma prestação de contratar, relevando aí a modalidade de uma prestação de facere. Uma prestação de facto, na verdade, pressupõe o desenvolvimento, em prol do credor, de determinada actividade e pode até traduzir-se numa prestação de um facto jurídico quando as actividades desenvolvidas são jurídicas.7
    As coisas, postas assim, tornam-se agora mais claras e o instituto em referência mais se encaixa no nosso caso.
    Nem o facto de a Ré se ter comprometido a celebrar um contrato exclui o enquadramento que se persegue.
    O benefício para o terceiro está, como bem se alcança, não só na chance de obter trabalho (para mais enquanto não residente) e das utilidades e vantagens materiais que daí decorrem para o trabalhador, parte terceira nesse contrato, bem como das condições que a Ré se compromete a observar em benefício do trabalhador.
    Aliás, esta possibilidade de acopulação entre o contrato primitivo e o contrato de trabalho posteriormente celebrado entre A. e Ré resulta como uma decorrência das obrigações primitivamente assumidas. É a primeira relação contratual, a relação de cobertura, que origina e modela a segunda relação, a relação entre o promitente e o terceiro.8
    Ora, nada obsta que desta relação entre o promitente e o terceiro, para além do assumido no primitivo contrato entre o promitente e o promissário, nasçam outras obrigações como decorrentes de um outro contrato que seja celebrado entre o promitente (Ré, empregadora) e o terceiro (A., trabalhador).9
    Esta aproximação encontramo-la também em Pires de lima e A. Varela, enquanto anotam que “o artigo 443º(leia-se 437º) trata não só dos casos em que todo o contrato estabelecido a favor de terceiro, como daqueles em que o contrato ou negócio a favor de terceiro se insere no contexto de um outro contrato, ao lado dele, sem prejuízo de um e outro se integrarem unitariamente na mesma relação contratual. É o que sucede, por exemplo, na doação ou no legado com encargo a favor de terceiro que pode ser um direito de preferência sobre a coisa doada ou legada, ou ainda na instituição de uma fundação com encargo a favor de pessoa ou pessoas determinadas.”10
    Quanto ao argumento avançado na sentença, aliás douta, de que do contrato a favor de terceiros não podem nascer obrigações para o terceiro beneficiário, como está bem de ver, elas não resultam desse contrato, mas sim do contrato de trabalho entre o patrão e o empregado.
    Nem se diga que esta posição contraria o sufragado por este Tribunal quando chamado a decidir sobre a excepção relativa à competência do Tribunal, nos termos da qual a ré propugnava pelo cometimento ao tribunal arbitral.
    Como nessas decisões já se afirmou, configurar uma ou mais cláusulas do referido contrato, estranho ao trabalhador, como estipuladas a favor de terceiro (neste caso o A.), daí não decorre que essa qualificação se projecte, sem mais, sobre todo o contrato (cfr. art. 400.°, n.º 2 e 437º, n.º 1 do Código Civil).
    O Código Civil, no artigo 438.°, n.º 1, dispõe que "O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação"
    Ora o direito que se estabelece traduz-se num concreto direito à prestação, independentemente de aceitação; nada mais.
    Nem outros direitos a favor de outrem estabelecidos no contrato, muito menos deveres, encargos ou sujeições integrarão a esfera jurídica do terceiro a favor de que tenha sido concretamente instituído um determinado direito.
    Para além de que será de entender que essa cláusula compromissória de competência abrange apenas a relação de cobertura ou de provisão entre o promitente e o promissário e não já relação provisionada entre o promitente e o terceiro, ou a relação de valuta entre o promissário e o terceiro.
     8. Estamos, pois, em condições de aplicar ao caso os valores reclamados com base naquele contrato celebrado entre a Ré e a dita Sociedade, aliás, nos termos previstos e condicionados pela necessária autorização administrativa, normativamente enquadrada.
    Antes dos cálculos apenas uma referência quanto à aplicação do RJRL.
    Pretende-se em certas posições e decisões até que nos têm chegado que esse regime seria supletivo do regime contratualizado.
    Mas não é preciso, pelo menos no presente caso, pelo menos por ora, enveredar por aí, tecer tão elaborado engenho interpretativo, porquanto vem comprovado nos autos que na relação estrita e directa estabelecida entre a empregadora e a trabalhadora, face aos contratos celebrados e juntos aos autos, vista a cláusula 24, em todos os outros termos e condições não expressamente ali previstas seriam reguladas de acordo com o regime legal laboral comum, ou seja, ao tempo, o Dec.-Lei n.º 24/89/M, de 3 de Abril.
    9. Quanto às fórmulas de compensação dos descansos não gozados, considerando que se trata de matéria mais do que analisada e decidida na Jurisprudência deste TSI, vamo-nos remeter para a Jurisprudência quase uniforme deste Tribunal, com a redacção que foi dada no recente acórdão deste TSI, no proc. n.º 780/2007, de 31 de Março de 2011, onde aquela uniformidade sofreu apenas uma ligeira inflexão.
    Resta, pois, proceder aos cálculos em função do pedido e dos valores que lhes servirão de padrão, a partir dos montantes definidos, tendo em conta o aludido contrato entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.
    10. Diferenças salariais
    Vem contabilizada a quantia de MOP 78.757,00, montante esse não posto em crise face à matéria dada como provada e análise dos documentos não impugnados e dados como reproduzidos, relativo ao período entre 22 de Maio de 1997 e 31 Maio de 20086 e que se tem, face a tudo o que ficou exposto, como devido.
    11. Horas extraordinárias
    Vem contabilizada a este título a quantia de MOP$20.169,00, montante esse posto em crise, já que a Ré diz ter pago o que era devido, donde implicitamente se opor a uma remuneração extra para além do valor da hora normal e que o A. ficciona em mais uma pataca por hora.
    Cremos não haver aqui base legal para este acréscimo, a título de trabalho extraordinário, não sendo aqui de entrar com critérios de equidade - apenas possível quando legalmente prevista, convencionda ou mediante acordo das partes (cfr. art. 3º do CC) - , face à matéria dada como provada.
    Assim sendo, importa apenas pagar as diferenças salariais, excluindo o pretenso acréscimo de MOP$1,00, por hora.
    Computa-se assim esse montante, vistos os montantes devidos, face àquilo a que se tem a Ré por obrigada em MOP$8.989,60.
    12. Subsídio de alimentação
    Vem contabilizada a quantia de MOP$60.435,00 montante esse não posto em crise face à matéria dada como provada e análise dos documentos não impugnados e dados como reproduzidos, relativo ao período em que perdurou a relação laboral em apreço, montante esse que se tem como devido face ao acima exposto.
    
    13. Subsídio de efectividade
    Vem contabilizada a quantia de MOP$48.240,00, montante esse não posto em crise face à matéria dada como provada e análise dos documentos não impugnados e dados como reproduzidos, relativo ao período em que perdurou a relação laboral em apreço, montante esse que se tem como devido face ao acima exposto.
    14. Descansos semanais
    Importa recalcular a compensação por estes descansos, jogando agora com os valores devidos a título do salário que deviam ter sido pagos ao trabalhador, face ao que acima vem exposto e vista a aplicação remissiva do Regime do DL 24/89/M, de 3/Abril, face ao estipulado no contrato celebrado entre o A. e a Ré. Adopta-se a fórmula que tem seguida para estas compensações também face aos critérios acima enunciados: salário diário X número de dias devidos e não gozados X 2.
Ou seja, MOP $90 X 69 X2 = MOP$12.420,00.

Esta a compensação e não acrescida de qualquer outra, vista a citada Jurisprudência.

15. Apenas uma referência em relação à pretensa nulidade da sentença.
É o próprio requerente que, num dado passo das suas alegações, diz que o Mmo Juiz não se pronunciou sobre determinadas questões por as ter considerado prejudicadas, maxime, no que respeita à análise da matéria relativa ao subsídio de e constante das alíneas dd) e ff) da matéria dada como provada.
Essa pretensa omissão resulta da solução dada à questão principal e se prendia com o facto de se ter como vinculante ou não o contrato celebrado entre a empregadora e a referida Agência. Face à posição tomada, a acção seria julgada improcedente.
Nessa óptica não terá havido omissão de pronúncia, geradora da nulidade da sentença, apenas uma errada interpretação do direito e do regime aplicável ao caso, impondo-se aqui a prolação de uma outra decisão substitutiva da prolatada na 1ª Instância.

16. Tudo visto e ponderado, resta decidir em conformidade nos termos e fundamentos expostos, não sem que se responda a uma questão suscitada nas alegações da recorrida e que se prende com uma inexacta delimitação e enquadramento jurídico processual do objecto de recurso, seja por erro na identificação dos vícios da sentença, seja por não autonomização formal em sede de conclusões por parte do recorrente.

A solução dada ao presente caso, tratando-se o recurso cível como se trata, de um recurso de substituição, mesmo quando seja declarada a nulidade da sentença proferida - art. 630º, n.º 1 do CPC - não deixa de estar contemplada no desiderato do recorrente, como resulta do pedido que formula ainda que genericamente.

Por outro lado, jura novit curia e, assim, o Tribunal não deixou de identificar perfeitamente as razões que fundamentaram a interposição de recurso e qual o objecto do mesmo, donde ser irrazoável pretender usar uma pretensa irregularidade formal - que em bom rigor nem sequer se observa - quando daí resultou menor esclarecimento para a contraparte ou para o Tribunal.

Quanto aos juros observa-se o disposto no Ac. do TUI, proc. n.º 69/2010, de 2/3/2011

IV – DECISÃO
Pelas apontadas razões, acordam em julgar parcialmente procedente o recurso e, em consequência, em revogar a decisão proferida, condenando a Ré Guardforce (Macau) - Serviços de Segurança, Limitada a pagar à A., ora recorrente, A a quantia de MOP$ 208.841,60 (duzentos e oito mil oitocentas e quarenta e uma patacas e sessenta cêntimos), com juros a contar nos termos do Ac. do TUI, proc. n.º 69/2010, de 2/3/2011.
    Custas pelas partes em ambas as instâncias na proporção dos respectivos decaimentos.
Macau, 2 de Junho de 2011,

_________________________
João Augusto Gonçalves Gil de Oliveira
(Relator)

_________________________
Ho Wai Neng
(Primeiro Juiz-Adjunto)

_________________________
José Cândido de Pinho
(Segundo Juiz-Adjunto)
    
1 - in Formação do Contrato Individual de Trabalho, RAPM (Rev. Edm. Pública de Macau), n.º 8/9, 343 e segs
2 - Cfr. art. 1º do CC; Oliveira Ascensão, IAED, AAFDL, 1970, 241
3 - Pedro Romano Martinez, ob. cit., 220
4 - Diogo Leite Campos, Contrato a favor de terceiro, 2ª ed., 1991, 13
5 - Leite de Campos, ob. cit., 17
6 - Obrigações, 1966, 55
7 - Menezes Cordeiro, Dto Obrig., 1980, 1º, 336 e 338
8 - Leite de Campos, ob. cit.27
9 - Leite Campos, ob. cit. 79 e 115
10 - CCAnot. 4ª ed.,1987, vol I, 426
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776/2010 1/35