Processo n. 773/2009
Recurso jurisdicional
Relator: Cândido de Pinho
Data do acórdão: 02/06/2011
Descritores: Preterição de tribunal arbitral
SUMÁRIO:
Tendo um contrato de prestação de serviços sido celebrado entre uma empresa de importação de trabalhadores não residentes e uma outra de apoio às empresas de Macau, qualquer cláusula compromissória que nele estipule convenção arbitral para decidir quaisquer litígios entre as partes, não pode vincular terceiros, designadamente os trabalhadores posteriormente contratados, no que a esta cláusula se refere.
Processo n. 773/2009
Acordam no T.S.I. da R.A.E.M.
I- Relatório
A, de nacionalidade filipina, com os demais sinais dos autos, moveu uma acção comum de trabalho contra “Guardforce (Macau) – Serviços e Sistemas de Segurança – Limitada”, com sede na Av. Venceslau de Morais, s/n, Edifício Industrial Keek Seng, Fase III, 2º andar, “N”, Macau, pedindo o pagamento do quanto de Mop $ 302.884,00 e juros legais até efectivo e integral pagamento.
O despacho saneador (fls. 155 e sgs.), conhecendo de matéria exceptiva invocada pela contestante, julgou procedente a excepção de preterição de tribunal arbitral e absolveu a ré da instância.
Desse despacho interpôs recurso jurisdicional o então autor “Guardforce”, em cujas alegações formulou as seguintes conclusões:
1. Em sentido oposto ao que decidiu o douto Tribunal a quo, em caso algum se poderia ter concluído que o Autor, ora Recorrente, “terá invocado como fundamento da sua pretensão a eficácia do contrato de prestação de serviços que a ré celebrou com a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente”, levando à conclusão de que o “litígio dos presentes autos deverá ser solucionado pelos tribunais arbitrais”;
2. Bem pelo contrário, o Autor, ora Recorrente, plasmou o seu “raciocínio jurídico” na sua “causa de pedir” em quatro pressupostos, em caso algum autonomizáveis uns dos outros: i) no conteúdo do «despacho de autorização governativa» que terá permitido à Ré a importação e posterior contratação do Autor, enquanto trabalhador não residente; ii) no conteúdo imperativo do normativo constante do Despacho 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, enquanto diploma regulador da contratação de mão-de-obra não residente; iii) no conteúdo do «contrato de prestação de serviços» que a Ré celebrou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda., com vista à importação do Autor; iv) no conteúdo do «contrato individual de trabalho» celebrado com a Ré;
3. Com efeito, a importação de mão-de-obra não-residente encontra-se sujeita a concretas e determinadas regras de procedimento e de conteúdo constantes, desde logo, do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro;
4. Uma leitura do conteúdo do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, deixa clara a sua natureza assumidamente normativa, e de cariz imperativo, na medida em que nele se fixa uma disciplina substantiva e processual com vista à contratação, por empregadores de Macau, de trabalhadores não residentes e que, em caso algum, não pode ser afastada pelas partes; na verdade,
5. Do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, resulta que o despacho (leia-se, despacho da «entidade governamental competente» que autoriza a contratação de trabalhadores não residentes) condiciona a mesma à apresentação prévia de um «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a “entidade interessada” e uma “terceira entidade - fornecedora de mão-de-obra não residente” (cfr. n.º 3 e n.º 9 c) do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro);
6. In casu, quer o «despacho da autoridade governamental» quer o Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, vincularam imperativamente a Ré a contratar os trabalhadores não residentes e, em concreto, o Autor, em conformidade com as condições mínimas constantes do «contrato de prestação de serviços» celebrado com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.;
7. O referido «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda., foi sempre remetido ao Gabinete para os Assuntos de Trabalho para efeitos de verificação e aprovação dos requisitos tidos como mínimos exigíveis para o efeito, “designadamente - os indicados na al. d) do n.º 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro”;
8. Porém, ao contrário do que concluiu o Tribunal a quo, não é à eficácia obrigacional do «contrato de prestação de serviços» que se deve qualquer pretenso direito do Autor, ora Recorrente, ao cumprimento pela da Ré das prestações que ali figuram;
9. Pelo contrário, o que reiteradamente foi afirmado pelo Autor, ora Recorrente, foi antes que a Ré só poderia celebrar contratos de trabalho com trabalhadores não residentes (in casu, com o Autor), desde que o fizesse ao abrigo do respectivo «despacho de autorização», tendo por base as condições de contratação tidas por mínimas previamente aprovadas pelo Gabinete para os Assuntos do Trabalho e constantes do «contrato de prestação de serviços» que a Ré assinou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.;
10. Uma vez aprovadas as condições tidas como mínimas, designadamente, as constantes da al. e) do n.º 9 do Despacho 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, a Ré estava obrigada a contratar o Autor, na medida em que as referidas condições foram previamente aprovadas ou em condições que não poderiam, em caso algum, ser inferiores a elas;
11. Com efeito, a fixação legal de condições tidas como mínimas, em si mesma constitui um direito que escapa à liberdade da autonomia das partes, visto terem sido consagradas por uma razão - de ordem pública - maxime de protecção dos interesses da generalidade dos trabalhadores residentes (cfr. preâmbulo do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro);
12. Neste sentido, bastará atentar no preâmbulo do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, para concluir que a sua intenção normativa fundamental foi a de assegurar a estabilidade do emprego, bem como o nível dos salários dos trabalhadores residentes, face ao influxo de trabalhadores não residentes;
13. O que seria completamente inutilizada, caso o trabalhador não residente dispusesse da liberdade de contratar por condições inferiores às fixadas no referido despacho de autorização;
14. Assim, o direito às condições mínimas fixado no despacho de autorização será, pois, um direito indisponível e, porquanto, subtraído ao domínio da vontade das partes;
15. E, tratando-se as condições mínimas constantes do «contrato de prestação de serviço» de direitos indisponíveis, em caso algum será possível o recurso a um “tribunal arbitral”, porquanto tal não é permitido quer pelo disposto no n.º 1 do artigo 2.º do Decreto-Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho, como pelo disposto na al. a) do n.º 3 do art. 29.º do Código de Processo Civil;
16. De onde se retira que ao contrário do que concluiu o douto despacho, por estarem em causa direitos indisponíveis, sempre se leria de concluir pela incompetência de qualquer ''tribunal arbitral” em razão da matéria e, bem assim, pela competência do Tribunal a quo para julgar a causa. A não se entender assim, existe um erro de julgamento.
17. Exigir que o Autor tenha de suportar os custos com vista à constituição e funcionamento de um “tribunal arbitral”, implica uma inaceitável e intolerável dificultação do acesso ao direito e aos tribunais e, em último caso, uma verdadeira denegação de justiça.
Ao que se diz, acresce que,
18. Ao contrário do que foi decidido pelo douto Tribunal a quo, não é inteiramente correcto afirmar-se que no caso dos presentes autos se está no “âmbito do contrato afavor de terceiro em que a ré é promitente e o autor é terceiro”, sendo que “a ré pode opor ao autor os meios de defesa derivados do contrato (leia-se, do «contrato de prestação de serviços» que a Ré assinou com a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.), pelo que lhe pode opor a convenção de arbitragem que apôs”, porquanto “tal convenção estipula que o litígio que se discute nos presentes autos seja dirimido perante tribunal arbitral”;
19. Desde logo, porque não é útil à apreciação da competência do Tribunal a quo estabelecer-se se o «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a entidade fornecedora de mão-de-obra e o empregador é ou não um «contrato a favor de terceiros»;
20. Com efeito, estando meramente em causa a apreciação da excepção de incompetência do Tribunal a quo, e dependendo ela - segundo decorre do próprio despacho recorrido - da eficácia externa da cláusula compromissória, é desta - e apenas desta - que deve tratar-se;
21. A não ser assim, estaria o Tribunal a quo como, aliás, bem alertou o despacho recorrido, a pronunciar-se sobre o mérito da causa e já não sobre a excepção sub judice, o que conduz à nulidade da decisão, nos termos do disposto na al. d) do n.º 1 do art. 571.0 do Código de Processo Civil;
22. Mas mesmo que assim se não entenda, sempre se dirá que a qualificação do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a entidade fornecedora de mão-de-obra como sendo ou não um «contrato a favor de terceiro» não poderá estender-se em bloco a todas as cláusulas do mesmo contrato;
23. Em concreto, os próprios termos da “cláusula compromissória” registam uma vontade inequívoca de dirimir, por essa via, os conflitos eventualmente surgidos entre as partes do contrato em que se insere;
24. Ao que acresce que da mesma cláusula não se vislumbre uma qualquer referência à possibilidade de designação de árbitros por terceiros (in casu, pelo Autor), omissão essa que seria sempre insuprível, por ser indeterminável a vontade das partes quanto a este ponto;
25. Assim, e mesmo que - por mera hipótese - se admitisse que o caso sub judice devesse estar submetido a um ''tribunal arbitral”; seria, no mínimo, exigível que o Autor, ora Recorrente, tivesse a possibilidade de nomear um dos “árbitros” que formam o respectivo “colégio arbitral”;
26. Por outro lado, a “cláusula compromissória” ao estipular que os litígios devem ser decididos segundo a equidade conduz à pura e simples ablação do direito de acção inscrito no n.º 2 do artigo 1.º do Código de Processo Civil, já que - na ausência de um seu representante e perante a desnecessidade de julgar segundo as leis - tal acção jamais seria «adequada» a reparar a violação dos direitos do Autor, ora Recorrente;
27. Assim, ao contrário do que entendeu o Tribunal a quo, não foi a “favor de terceiro”, mas sim e exclusivamente no interesse das partes (inter partes) que a referida “cláusula compromissória” foi inserta no “contrato de prestação de serviços” celebrado entre a Ré e a entidade fornecedora de mão-de-obra;
28. Mas ainda que fosse pacífica a qualificação do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a entidade fornecedora de mão-de-obra como sendo um «contrato a favor de terceiros», nada consente que se oponham os seus efeitos ao terceiro que a ele não aderiu, muito menos a terceiro que a tal se opõe (cfr. art. 441.º, n.º 1 do Código Civil);
29. Ao que acresce que, a qualificação de cláusulas contratuais como a favor de terceiro depende ainda de que se refiram a direitos (vantagens ou créditos) e nunca a deveres;
30. De igual modo, ao nível das relações jurídico-públicas e no que especificamente se refere a “clausulas arbitrais” similares às dos presentes autos, entende-se que “o terceiro nunca é afectado pela cláusula arbitral contida num contrato, visto que esta não tem qualquer efeitos perante ele”.
31. Assim, ao contrário do que concluiu o douto Despacho de que se recorre, o conteúdo do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a entidade fornecedora de mão-de-obra não é “fonte directa” dos direitos invocados pelo Autor, ora Recorrente; e,
32. Mesmo que se tivesse de reconhecer que a fundamentação da “causa de pedir” se tivesse por “sintética”, ao ter por suficiente a referência ao n.º 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro, enquanto fonte da disciplina contratual invocada, e ao «contrato de prestação de serviços» enquanto repositório dos conteúdos mínimos que haveriam de preencher os «contratos de trabalho» celebrados sob a sua égide, não pode acompanhar-se o douto despacho recorrido quando conclui que o Autor, ora Recorrente, se terá meramente prevalecido do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda., como forma de reconhecer os seus direitos;
33. Não sendo o Autor, ora Recorrente, parte do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda., em caso algum a cláusula respeitante à “arbitragem” do mesmo constante se poderá aplicar de forma directa ao Autor.
Nestes termos, e nos demais de direito, e sempre com o douto suprimento de V. Exas., pelas razões supra expostas, deve o douto Despacho de que se recorre ser revogado e declarada a competência do Tribunal Judicial de Base para conhecer da causa, pois só assim se fará a já costumada JUSTIÇA!
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A recorrida, “Guardforce”, contra-alegou, concluindo as suas alegações do seguinte modo:
1.ª A sentença aqui recorrida não viola qualquer disposição legal, nomeadamente as que são invocadas pelo Recorrente;
2.ª Bem andou o despacho recorrido ao concluir que, “o ponto 9., al. e), por referência à al. d) d.2 do Despacho nº 12/GM/88 não configura a disposição legal de carácter imperativo que, nos termos do art. 2870 fere de nulidade o contrato que o autor celebrou com a ré”;
3.ª Em parte nenhuma do respectivo conteúdo se poderá concluir estarmos no domínio de normas imperativas;
4.ª Porquanto do Desp. n.º 12/GM/88, não resulta qualquer obrigação prepectiva para a entidade interessada, no sentido de ser proibida esta ou aquela conduta por parte das entidades interessadas;
5.ª Mas antes, a definição de um procedimento administrativo para obtenção da autorização para a importação de mão-de-obra não residente;
6.ª O Desp. n.º 12/GM/88, faz depender de acto administrativo proferido pelo órgão ou entidade com competência para esse efeito, da aprovação das condições de contratação dos trabalhadores não residentes,
e, a relação laboral a constituir entre a entidade interessada e o trabalhador não residente, pode ser definida em momento posterior,
no entanto, a autorização administrativa de aprovação das condições de contratação dos trabalhadores não residentes não é automaticamente incorporada no contrato de trabalho a outorgar entre a entidade interessada e o trabalhador não residente,
7.ª A própria natureza da relação laboral e o princípio basilar da liberdade contratual, ou da autonomia da vontade, não permite tal conclusão, porquanto isso consubstanciaria um manifesto abuso de direi to, sem qualquer razão ou fundamento;
8.ª Antes da outorga dos contratos de trabalho, não existem quaisquer direitos na esfera jurídica dos trabalhadores não residentes, ainda que haja uma autorização administrativa para contratação dos mesmos;
9.ª A autorização administrativa reveste a natureza de acto administrativo, e por isso decisão tomada para produzir efeitos jurídico administrativos numa situação individual concreta;
10.ª In casu, uma autorização administrativa para contratar trabalhadores não residentes;
11.ª E, em caso algum reconhece ao Recorrente, ou a outro trabalhador não residente, um alegado direito a condições mínimas;
12.ª Não estando no domínio de direitos indisponíveis, nem tão pouco do incumprimento por parte do empregador de qualquer obrigação legal em relação ao Recorrente, não colhe a alegada impossibilidade de recorrer à arbitragem para dirimir litígios emergentes que decorre do n.º 1 do artigo 2.º do Decreto - Lei n.º 29/96/M, de 11 de Junho;
13.ª Também não colhe a alegada dificuldade no acesso ao direito e aos tribunais e uma verdadeira denegação de justiça, decorrente da constituição de um tribunal arbitral para apreciação de eventuais litígios entre empregadores e trabalhadores não residentes, por ser infundada;
14.ª A qualificação do contrato de prestação de serviços como contrato a favor de terceiro não faz parte do objecto da presente impugnação, nem tão pouco alegada eficácia dos contratos da Administração Pública;
15.ª O que se trata é que o Recorrente funda a sua pretensão e direitos que invoca, no próprio contrato de prestação de serviços, dele pretendendo retirar o conteúdo que lhe interessa, deprezando aquilo que lhe possa ser de alguma forma desfavorável;
16.ª Não é legalmente admissível a aceitação de uma parte do contrato (alegadamente a favor de terceiro) e o repúdio de uma outra parte do contrato, porque comportaria uma incompreensível insegurança jurídica.
17.ª Deve por isso aplicar-se a cláusula contratual que estabelece o Tribunal Arbitral para dirimir litígios emergentes do mesmo;
18.ª Tendo por isso existido preterição do Tribunal Arbitral, é manifesta a incompetência do Tribunal Judicial de Base para decidir a presente lide
19.ª A sentença impetrada não comporta nenhum dos vícios que lhe são imputados pelo Recorrente, bem pelo contrário, fez uma correcta interpretação do regime legal aplicável.
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Cumpre decidir.
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II- Os Factos
1. “Guardforce”, ré na acção, aqui recorrida, é uma sociedade que se dedica à prestação de serviços de equipamentos técnicos e de segurança, transporte de valores, entre outros.
2- A recorrida tem sido sucessivamente autorizada a contratar trabalhadores não residentes para a prestação de funções de guarda de segurança, supervisor de guarda de segurança, guarda sénior, entre outros.
3- A recorrida celebrou com a “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda” os contratos de prestação de serviços n. 9/92, em 29 de Junho de 1992, n. 6/93, em 1 de Março de 1993, 2/94, em 3 de Janeiro de 1994, n. 29/94, em 11 de Maio de 1994, n. 45/94, de 27 de Dezembro de 1994.
4- Ao abrigo de um desses contratos de prestação de serviços o autor, ora recorrente, foi recrutado pela sociedade referida em 3 supra e, posteriormente, iniciou a sua prestação de trabalho para a recorrente.
5- O contrato cessou em 31 de Maio de 2008, tendo posteriormente o recorrido movido a presente acção contra a ora recorrente reclamando o pagamento de MOP$ 302.884,00.
6- No contrato de prestação de serviços celebrado entre “Guardforce” e “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda” consta a seguinte cláusula 12ª: “quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, composta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada uma das partes e o 3º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade”.
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III- O Direito
Pretende-se no presente recurso saber se o pedido indemnizatório formulado pelo aqui recorrido pode ser discutido no âmbito da acção que contra a recorrente foi movida no TJB da RAEM, isto é, se para a sua apreciação dispõe o tribunal de competência, face ao disposto no art. 30º do CPC de Macau1, ou se, face à convenção de arbitragem incluída na cláusula 12ª do Contrato de Prestação de Serviços celebrado entre “Guardforce” e a “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Limitada”, deveria o litígio ter sido submetido à decisão de uma “comissão arbitral”.
Ora, esta não é questão virgem. Com efeito, ela foi já objecto de ajuizamento, por exemplo, nos processos deste TSI números 739/2009, 749/2009, 841/2009,1027/2009 e 916/2009.
Com a devida vénia, a propósito de situação em tudo igual à que ora nos ocupa, transcrevamos o que diz o Ac. de 10/12, no Processo n. 749/2009:
“É inegável que como fundamento do seu pedido, alegou o A. o “contrato de prestação de serviços” que a R. celebrou com a “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.”, no qual consta a “cláusula 12.ª”, com base na qual invoca a R. a excepção de preterição do tribunal arbitral aqui em apreciação.
Porém, há que distinguir o seguinte:
Uma coisa é ter ou não o A. razão no que pede, em virtude das alegadas obrigações que a R. assumiu perante a dita “Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.”, outra, é a “oposição” que a R. faz ao pedido do A. com base na dita preterição do Tribunal arbitral.
De facto, se o pedido do A. deve ou não proceder, é questão que oportunamente se verá. (…)
(…) o facto de invocar o A. o referido contrato entre a R. e a mencionada empresa “Sociedade...”, não implica que aceite o A. todo o seu clausulado, como que “confirmando” tudo o que nele consta.
(…) De facto, sendo a “convenção arbitral”, no caso, “cláusula compromissória”, um “negócio jurídico bilateral”, (desde sempre) definido como “acordo de regulamentação coordenada de interesses contrapostos” – cfr., C. Mendes, in “Direito Civil, Teoria Geral”, III, pág. 723 – nele havendo duas (ou mais) declarações de vontade, de conteúdo oposto, mas convergente, ajustando-se à comum pretensão de produzir resultado jurídico unitário, embora com um significado para cada parte, havendo, assim, “uma oferta ou proposta e uma aceitação” – cfr., M. Pinto, in “Teoria Geral do Direito Civil”, pág. 387 – inviável se nos mostra outro entendimento, pois que, como também já se entendeu, “para que haja preterição do tribunal arbitral é necessário que da interpretação da cláusula contratual resulte que as partes quiseram submeter à decisão de um árbitro o litígio em causa” –cfr., Ac. do R.P. de 14.10.94, Proc. n° 9530929) (…)
No mesmo sentido, em situação equivalente e mais recentemente, consignou-se também no Ac. do S.T.J. de 27.11.2008, Proc. n° 08B3522, que “Não é oponível ao trabalhado/autor (terceiro) a cláusula compromissória incluída em contrato de seguro celebrado entre uma determinada seguradora (promitente) e a entidade empregadora do autor (promissária), em benefício dos seus trabalhadores”, já que, “partes no contrato são apenas o promitente e o promissário”.
Neste mesmo TSI foi dito ainda, noutra ocasião, o seguinte:
“As condições de trabalho em que devem ser contratados os trabalhadores não residentes, constam do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro.
Se o «despacho da autoridade administrativa» apenas vincula a Administração e a Ré e se o «contrato de prestação de serviços» apenas vincula a Ré e a entidade fornecedora de mão-de-obra não residente, então o trabalhador é alheio quer ao despacho, quer ao contrato e deles não se pode prevalecer – a não ser que para benefício ou direito instituído a seu favor - nem por eles pode ser obrigado – nomeadamente a recorrer ao tribunal arbitral.
O «despacho de autorização administrativa» não obriga a ré a contratar com "convenção de arbitragem", uma vez que se reporta apenas às condições de trabalho, nelas se não podendo incluir a obrigatoriedade de solucionar os conflitos através do recurso ao tribunal arbitral.
Nos termos da alínea c) do n.º 9 do Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro:
“(...)
3.º A autorização implica a sujeição da requerente a obrigações específicas determinadas, determinadamente, as seguintes (...).
Tal Despacho n.º 12/GM/88, de 1 de Fevereiro toma de forma clara e expressa uma natureza assumidamente normativa e de cariz imperativo na medida em que nele se fixa urna disciplina substantiva e processual com vista à contratação, por empregadores de Macau, de trabalhadores não residentes (trabalhadores estes que estão excluídos do Regime Geral das Relações Laborais apenas aplicável aos os trabalhadores residentes – DL 24/89/M, de 3 de Abril e LRT) obrigando a uma contratação em condições mínimas acordadas com a empresa prestadora de serviços (in casu, a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.).
Acresce que nem todo o clausulado incluído no «contrato de trabalho» celebrado entre a Ré e o Autor, ora Recorrente, se acha previsto no «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a Sociedade de Apoio às Empresas de Macau, Lda.
Nos termos do n.º 2 do art. 29º do Código de Processo Civil, - hoje, em assento próprio, artigo 2º, nº 1 da Lei 29/96/M, de 11 de Junho - a validade de uma "cláusula compromissória" só se mostra válida se disser respeito a litígio sobre direitos disponíveis.
Donde se realçar o facto de a relação controvertida submetida a juízo respeitar a matérias indisponíveis, subtraídas a convenção arbitral, excluídas de uma solução baseada em critérios de equidade, antes pelo contrário, a critérios de legalidade estrita.
(…) Configurar uma ou mais cláusulas do referido contrato, estranho ao trabalhador, como estipuladas a favor de terceiro (neste caso o A.), daí não decorre que essa qualificação se projecte, sem mais, sobre todo o contrato (cfr. art. 400.°, n.º 2 e 437º, n.º 1 do Código Civil).
O Código Civil, no artigo 438.°, n.º 1, dispõe que "O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação" Ora o direito que se estabelece traduz-se num concreto direito à prestação, independentemente de aceitação; nada mais.
Nada resulta do contrato que o direito eventualmente estabelecido a favor do terceiro, neste caso o trabalhador, esteja dependente da aceitação daquela cláusula compromissória.
Reafirma-se que o conteúdo do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a entidade fornecedora de mão-de-obra não é fonte directa dos direitos invocados pelo Autor, ora Recorrente, tão-somente parcialmente mediata, importando não esquecer o contrato de trabalho directamente celebrado entre o empregador e o trabalhador, sendo que aquele contrato podia nem sequer ser do conhecimento do trabalhador enquanto durou a relação laboral fonte das obrigações questionadas” (Ac. de 21/01/2010, Proc. n. 841/2009).
São arestos com os quais concordamos em absoluto e cujo conteúdo aqui, respeitosamente, fazemos nosso. Não são, aliás, os únicos. Na verdade, também nos processos números 739/2009, 916/2009 (ambos decididos por acórdão de 15/12/2009) e mais recentemente nos acórdãos lavrados em 14/04/2011, nos Processos 619/2010 e 562/2010, se chegou a igual conclusão.
E num destes, concretamente, no aresto pertencente ao Proc. 562/2010, enfrentando a questão da configuração de contrato a favor de terceiro, tema central na decisão sob censura, foi dito o seguinte:
“Configurar uma ou mais cláusulas do referido contrato, estranho ao trabalhador, como estipuladas a favor de terceiro (neste caso o A.), daí não decorre que essa qualificação se projecte, sem mais, sobre todo o contrato (cfr. art. 400.°, n.º 2 e 437º, n.º 1 do Código Civil). O Código Civil, no artigo 438.°, n.º 1, dispõe que "O terceiro a favor de quem for convencionada a promessa adquire direito à prestação, independentemente de aceitação".
Ora o direito que se estabelece traduz-se num concreto direito à prestação, independentemente de aceitação; nada mais.
Nem outros direitos a favor de outrem estabelecidos no contrato, muito menos deveres, encargos ou sujeições integrarão a esfera jurídica do terceiro a favor de que tenha sido concretamente instituído um determinado direito.
Nem sequer está em causa que a "cláusula compromissória" estipulada no mesmo se traduza em benefício ou desvantagem, não sendo isso que está em causa.
O terceiro beneficiário pode aceitar um direito e rejeitar outro.
Nada resulta do contrato que o direito eventualmente estabelecido a favor do terceiro, neste caso o trabalhador, esteja dependente da aceitação daquela cláusula compromissória.
Reafirma-se que o conteúdo do «contrato de prestação de serviços» celebrado entre a Ré e a entidade fornecedora de mão-de-obra não é fonte directa dos direitos invocados pelo Autor, ora Recorrente, tão-somente parcialmente mediata, importando não esquecer o contrato de trabalho directamente celebrado entre o empregador e o trabalhador, sendo que aquele contrato podia nem sequer ser do conhecimento do trabalhador enquanto durou a relação laboral fonte das obrigações questionadas”.
É jurisprudência que aponta a boa solução, com a qual se conforma, aliás, o despacho impugnado.
Em reforço desta tese, um só elemento acrescentaríamos, resultante, aliás, de expressão literal, tão simples, quanto cristalina, contida na própria cláusula 12ª. Com efeito, nela se diz que “quaisquer litígios ou questões emergentes da sua execução, serão decididos por uma comissão arbitral, composta por 3 membros, sendo dois escolhidos por cada uma das partes e o 3º designado pelos árbitros de parte, a qual decidirá de acordo com a equidade” (negrito nosso). Ora, como admitir que esta cláusula vincule um terceiro, se a própria composição da comissão arbitral só poderia resultar da escolha de cada uma das partes! Então não se vê que, em virtude de não ter sido interveniente no contrato de prestação de serviço, o ora recorrido nunca podia escolher o seu árbitro?! A circunstância de o autor na acção pretender extrair efeitos daquele contrato não é senão uma forma de a si estender o seu alcance material, isto é, de aproveitar as vantagens substantivas nele estabelecidas. Saber se tal é razoável ou legal é questão diferente que a seu tempo há-de ser discutida. Mas o que por ora está em causa é saber se uma cláusula compromissória como aquela, de efeitos adjectivos, pode vincular quem não a subscreveu. E nós, tal como os citados arestos, achamos que não (neste mesmo sentido, ainda o Ac. do TSI de 15/12/2009, Proc. n. 1027/2009; mais recentemente, os acórdãos do mesmo tribunal de 26/05/2011,nos Processos nºs 1035/2009 e 860/2009).
Eis a razão pela qual, nada mais havendo a discutir, se consideram improcedentes as conclusões do recurso.
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IV- Decidindo
Nos termos expostos, acordam em conceder provimento ao recurso, revogando o despacho recorrido, e em consequência declarar o Tribunal Judicial de Base o competente para conhecimento do litígio, salvo se a tal outra qualquer causa obstar.
Custas pela recorrida em ambas as instâncias (no TSI, por ter apresentado alegações).
TSI, 02 / 06 /2011.
José Cândido de Pinho
Lai Kin Hong
Choi Mou Pan
1 A consequência seria, para a resposta negativa, a absolvição da instância, nos termos dos arts. 413º, al. a) e 414º do CPCM, segundo a posição que a considera excepção dilatória
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