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ACORDAM NO TRIBUNAL DE ÚLTIMA INSTÂNCIA DA REGIÃO ADMINISTRATIVA ESPECIAL DE MACAU:

I – Relatório
O Consórcio formado por A e B, interpôs recurso contencioso do despacho do Chefe do Executivo, de 4 de Novembro de 2010, que indeferiu recurso hierárquico por ele interposto da deliberação da Comissão de Abertura de Propostas que excluiu a sua proposta apresentada ao Concurso Internacional para Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau.
Por Acórdão de 27 de Outubro de 2011, o Tribunal de Segunda Instância (TSI) concedeu provimento ao recurso.
Inconformados, interpõem o Chefe do Executivo e o Consórcio C, D e E recurso jurisdicional para o Tribunal de Última Instância (TUI).
O Chefe do Executivo termina a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
  - A exclusão da proposta do Concorrente n.º 2 do concurso deveu-se ao facto de aquele não conseguir provar que a entidade que certificou a sua alegada experiência mínima de 10 anos em estações de tratamento biológico de águas residuais, a F SCRL (sociedade cooperativa de responsabilidade limitada), fosse uma autoridade local, conforme exigido pelas cláusulas 13.1, alínea 1) e 6.3, ambas do programa do concurso.
  - Todavia, o Acórdão do Tribunal de Segunda Instância considerou, erradamente, que a comissão de abertura das propostas terá violado os artigos 9.° e 59.° do Código do Procedimento Administrativo (CPA), porque não teria analisado, devidamente, os documentos suplementares apresentados pelo Concorrente n.º 2 durante a sessão do acto público do concurso, só o tendo feito superficialmente, e que não teria procurado averiguar se a entidade emissora do certificado de experiência do concorrente era ou não autoridade pública local.
  - No entanto, a comissão de abertura das propostas apreciou os documentos suplementares apresentados - cópias de um contrato celebrado entre a G e o Governo da Valónia e de um extracto do relatório de actividades de 2008 da G, ambos retirados da Internet - ainda que aqueles não estivessem devidamente legalizados, pelo que não pode a comissão ter violado o princípio da colaboração entre a Administração e os particulares, vertido no supracitado artigo 9.º do CPA.
  - Só que, no contrato celebrado entre a G e o Governo da Valónia não existe qualquer referência à F, entidade certificadora da experiência da empresa A, razão pela qual o consórcio ora recorrido não terá junto cópia do mesmo à petição de recurso contencioso que apresentou.
  - E, igualmente, do extracto do relatório de actividades de 2008 da G também não havia qualquer indício que a F pudesse ser uma autoridade local, bem antes pelo contrário, como se verá adiante.
  - Ora, não tendo a comissão violado o disposto nos artigo 9.° e 59.º do CPA, foi o Acórdão ora posto em crise, ao considerar o contrário, que errou nos pressupostos de direito.
  - Mas, se do contrato celebrado entre a G e o Governo da Valónia não existe qualquer referência à F, ela existe no relatório de actividades de 2008 da G.
  - E o que nos revela este extracto de relatório da G é que a F não pode ter a qualidade de autoridade local.
  - Mas, além de ter examinado os documentos suplementares, não legalizados, apresentados pelo Concorrente n.° 2, a comissão de abertura das propostas ainda se viu confrontada com documentação (a tal legislação belga em francês) em língua não permitida pelo artigo 56.° do CPA, nem pela lei especial aplicável à contratação pública, nomeadamente pelo previsto no artigo 68.° do Decreto-Lei n.º 74/99/M, de 8 de Novembro em conjugação com o número 16 do aviso de abertura do concurso e com as cláusulas 7.3 e 13.3 do programa do concurso, pelo que se alguém violou o artigo 9.° do CPA só pode ter sido o próprio Concorrente n.º 2, ao apresentar, extemporaneamente, no acto público do concurso, legislação em língua (francesa) diversa da aceite pela lei e pelo programa do concurso, documentação esta que também não tinha sido entregue como documento suplementar, sem que, de qualquer modo, dela constasse qualquer referência à F, e nem isso o concorrente alegou.
  - Por outro lado, o Acórdão recorrido entende que está provada a qualidade de autoridade pública local da F, mas não fundamenta adequadamente tal entendimento, bastando-se numa alusão vaga, não nos diz em que factos reais ou em que provas se baseia para chegar a essa conclusão; não nos diz, nomeadamente, em que parte dos documentos suplementares está dito ou provado, sem margem para dúvidas, que a F é uma autoridade pública local, sendo certo que, dos factos dados como provados a folhas 10 a 12 do Acórdão, não consta que aquela prova tenha sido feita.
  - Deste modo, ao não fundamentar suficientemente a decisão tomada, o Acórdão violou o dever de fundamentação, devendo ser declarado nulo, por força do disposto na alínea b) do n.º 1 do artigo 571.° do Código de Processo Civil.

O Consórcio C, D e E termina a respectiva alegação com a formulação das seguintes conclusões úteis:
  - A declaração da F, não continha nem Apostila nem qualquer outro tipo de legalização (nomeadamente, certificação diplomática ou consular) que confirmasse tratar-se a mesma de uma autoridade local;
  - A Apostila aposta na referida declaração atestou unicamente, nos termos do artigo 5.° da Convenção, a assinatura e a qualidade do Notário que, na declaração, se limitou a apor uma simples menção de “Good for Legalisation”, sem ter procedido a qualquer certificação da alegada capacidade e autoridade pública da F;
  - As ora Recorridas, dentro do prazo concedido pela Comissão, limitaram-se a apresentar um conjunto de papéis avulsos, redigidos em francês, todos impressos da internet, com tradução realizada pelo seu mandatário, alegadamente relativos a um contrato, celebrado entre o Governo da Valónia e uma entidade denominada G, e a um relatório da actividade da tal G do ano de 2008, que não permitiam que a Comissão desse por cumprido o previsto nas cláusulas 6 e 13.1, alínea I) do Programa do Concurso;
  - Mesmo que se tratasse de tradução certificada de um documento legalizado realizada nos termos do disposto do disposto nos artigos 6.º do DL n.º 62/99/M, de 25 de Outubro, e dos artigos 182.º e 184.º do Código de Notariado legalizado - nada resulta do dito contrato celebrado entre o Governo da Valónia e a entidade denominada G ou do relatório da actividade desta G do ano de 2008 que permita concluir que a sobredita F é uma autoridade local;
  - As ora Recorridas também apresentaram à Comissão, para esclarecimento adicional sobre o alcance daqueles documentos, uma colectânea de outros papéis escritos em francês, sem qualquer tradução, também impressos da internet, alegadamente relativos a legislação belga;
  - Sendo certo que o parágrafo 16 do Anúncio do Concurso Público Internacional, publicado no Boletim Oficial, n.º 13, II Série, de 31 de Março de 2010, refere que “A proposta, assim como os documentos que a instruam deve ser numa das Línguas Oficiais ou em Inglês”, menção que se repete na cláusula 7.3 do Programa do Concurso;
  - Acresce que o artigo 87.°, n.º 2, alínea c), do DL n.º 77/99/M, de 8 de Novembro, impede a Comissão de aceitar documentos que não estejam redigidos numa das línguas oficiais;
  - A Comissão não tem a obrigação, nem a competência, para se substituir a uma autoridade local na interpretação de leis estrangeiras;
  - O exame formal dos documentos apresentados, a que a Comissão está vinculada nos termos do artigo 87.°, n.o 1 do DL n.º 77/99/M, de 8 de Novembro, não lhe permitia tomar decisão diferente da que efectivamente tomou, não tendo qualquer dever de estudar e analisar leis estrangeiras, uma vez que o princípio da colaboração não pode contrariar os limites estabelecidos na lei e no Programa do Concurso;
  - O Tribunal a quo, ao proclamar diferente entendimento, violou o disposto nos artigos 87.°, n.º 1 e n.º 2, alínea a) e c) do DL n.º 77/99/M, bem como o disposto nas cláusulas 6, 7.3, 13.1, alínea I) e 13.4 do Programa de Concurso.
O Ex.mo Magistrado do Ministério Público emitiu parecer em que se pronuncia pela procedência do recurso.

II - Os Factos
  Estão como provados os seguintes factos, dados como tal pelo Acórdão recorrido e outros que resultam do processo instrutor:
A) Foi aberto Concurso Público Internacional para a Modernização, Operação e Manutenção da Estação de Tratamento de Águas Residuais da Península de Macau, que se tornou público mediante o Aviso do Gabinete para o Desenvolvimento de Infra-estruturas de 31MAR2010 publicado no Boletim Oficial n.º 13, da II série;
B) Do Programa do Concurso constava o seguinte:
“...
6.3 Se o Concorrente for uma sociedade, possuirá, pelo menos dez anos de experiência relevante em instalações de tratamento biológico de águas residuais. A experiência mencionada deve ser directa ou obtida através de sociedade subsidiária em que o Concorrente seja maioritário. Se a experiência não tiver sido obtida na RAEM, essa experiência deve ser confirmada por declaração oficial emitida por uma autoridade local.
...
13. DOCUMENTOS QUE INSTRUEM A PROPOSTA
13.1 A proposta será instruída com os seguintes documentos:
    ...
    l) Se o Concorrente obteve a sua experiência fora da RAEM deve apresentar documentação de prova emitida por autoridades locais, onde a sua experiência foi obtida, de acordo com a Cláusula 6.3 do presente Programa do Concurso;
    ...”
C) Foram apresentadas ao concurso sete propostas, entre as quais se encontra a apresentada pelo concorrente n.º 2, que é a ora recorrida;
D) A Proposta n.º 2, da ora recorrida, para efeitos das Cláusula 6.3 e 13.1, alínea l), do Programa de Concurso, apresentou um certificado de experiência de 10 anos na Bélgica, emitido por F, Sociedade Cooperativa de Responsabilidade Limitada;
E) Em 25 de Junho de 2010, feita a abertura dos invólucros exteriores e assinados todos os documentos das propostas pela Comissão de Abertura das Propostas, a mesma comissão admitiu a proposta apresentada pelo concorrente n.º 2, ora recorrida;
F) Seguidamente, o concorrente n.º 4 (o Consórcio C, D e E) reclamou que o concorrente n.º 2 não apresentava documento comprovando os 10 anos de experiência, sendo que o documento é de uma entidade privada e não de uma autoridade local;
G) Sobre o assunto deliberou a comissão:
“Quanto ao Concorrente n.º 2, este deverá apresentar um documento suplementar que comprove que a organização de verificação da experiência é qualificada como uma autoridade local. O documento suplementar deverá ser apresentado no GDI antes das 17h00 do dia 28 de Junho de 2010”;
H) O Concorrente n.º 2 apresentou pelas 14h55 do dia 28 de Junho de 2010 documentos tendentes a provar que a documentação atestando a experiência fora emitida por autoridade local;
I) Em sessão de 30 de Junho de 2010 a comissão deliberou que o documento suplementar apresentado pelo Concorrente n.º 2 não prova que a F é uma autoridade local, pelo que deliberou não aceitar o documento suplementar submetido pelo Concorrente e anunciou a deliberação por unanimidade de exclusão da proposta do concorrente n.º 2 – A/B;
J) Não se conformando com essa deliberação da comissão da abertura das propostas, veio o concorrente n.º 2, ora recorrida, interpor recurso hierárquico necessário para o Chefe do Executivo;
K) Por despacho datado de 04NOV2010 do Chefe do Executivo, que acolheu o parecer do Secretário para os Transportes e Obras Públicas, lançado sobre a informação elaborada pelo Coordenador do GDI, foi indeferido o recurso hierárquico.
L) Nessa informação diz-se, designadamente, o seguinte:
“12 – Em resposta à solicitação da Comissão, o Concorrente n.º 2 tentou demonstrar que face à Lei da Bélgica, nos termos do contrato entre o Governo da Valónia e a G e em vista do extracto do relatório de actividades de 2008 desta última, estava claramente explicitado ser a F uma autoridade local. Todavia, não cabendo à Comissão, em pleno acto público do concurso, estar a interpretar leis estrangeiras ou contratos no qual determinadas empresas sejam parte, mas tão somente apreciar o documento solicitado, na sua falta a Comissão deliberou por unanimidade excluir a proposta do Concorrente n.º 2 (em rigor, a Comissão deliberou por unanimidade não admitir o concorrente, do que resultou a exclusão da respectiva proposta)”.
O despacho mencionado em K) é o acto recorrido.

III – O Direito
1. As questões a apreciar
Importa, fundamentalmente, decidir, duas questões:
- Exigindo o programa de concurso documento, emitido por autoridade local, de que os concorrentes possuíam 10 anos de experiência na matéria em apreço e tendo a comissão de abertura das propostas questionado a concorrente acerca da qualidade de autoridade local da entidade que emitiu o documento atestando aquela experiência, importa saber se a comissão tinha ou não o dever de estudar o direito (estrangeiro) invocado pela concorrente que atestaria tal qualidade de autoridade local;
- Se resultava da documentação e legislação belga junta pela concorrente a qualidade de autoridade local da entidade que emitiu o documento atestando aquela experiência.

2. Nulidade do Acórdão recorrido por insuficiente fundamentação
Não procede, desde logo, a imputação de nulidade ao Acórdão recorrido, nos termos do artigo 571.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Civil, por não ter fundamentado devidamente a sua conclusão de que a F é uma autoridade local. É sabido que a nulidade em causa apenas se refere a falta absoluta de fundamentação da sentença, de facto ou de direito. A nulidade é um vício formal. A insuficiência ou deficiência de fundamentação da sentença resolve-se em erro de julgamento1, que, como tal, será apreciado.
Improcede a arguição de nulidade.

3. Aplicação do direito do exterior pela Administração
Em relação à primeira questão não merece qualquer censura o Acórdão recorrido, no sentido de que cabia à Comissão de abertura do concurso apreciar o direito estrangeiro invocado pelo Concorrente e que ele juntou em cópias extraídas da Internet, para concluir se a entidade que atestava a experiência do concorrente era ou não uma autoridade local.
Recordemos que os concorrentes tinham de demonstrar possuir, pelo menos dez anos de experiência relevante em instalações de tratamento biológico de águas residuais. A experiência mencionada deve ser directa ou obtida através de sociedade subsidiária em que o Concorrente seja maioritário. Se a experiência não tiver sido obtida na RAEM, essa experiência deve ser confirmada por declaração oficial emitida por uma autoridade local.
Como é evidente, a qualidade de autoridade local é uma questão jurídica, pelo que parece pouco prudente que a Comissão pretendesse – sem qualquer sucedâneo - que o Concorrente apresentasse um documento atestando que aquela F era autoridade local. A ser assim, não estaria excluído que a Comissão, a seguir, exigisse um documento comprovando que a entidade que atestava a qualidade de autoridade local tinha competência para tal atestado e assim, sucessivamente, até ao princípio dos tempos. E esta suposição reside no facto de, mesmo após haver no recurso gracioso e no contencioso, um documento de um Ministro da Valónia atestando aquela qualidade, ele não parece ter convencido todos os intervenientes processuais.
Bem andou, pois, a Concorrente em ter disponibilizado legislação donde se retiraria aquela qualidade de autoridade local.
De resto, o programa de concurso não exige qualquer documento a atestar que a entidade que comprova a experiência é autoridade local. Se a Comissão tinha dúvidas sobre esta matéria deveria ter concedido à concorrente tempo necessário para a comprovação. Não o tendo feito violou o princípio da boa fé, como entendeu o Acórdão recorrido.
Por outro lado, é evidente que os órgão administrativos estão obrigados a estudar e, quando for caso disso, a aplicar direito estrangeiro, tal como os tribunais o fazem. Não há, aliás, qualquer diferença neste aspecto, ressalvadas as diferenças de âmbito de aplicação. Ambos aplicam o direito, aqueles no procedimento administrativo, os segundos no processo judicial. Ora, em procedimentos ou processos pendentes em Macau há, por vezes, que aplicar o direito do exterior (interior da China, Hong Kong e Taiwan) ou estrangeiro.
Por isso, dispõe o artigo 341.º do Código Civil:
“Artigo 341.º
(Direito consuetudinário ou exterior ao território de Macau)
    
    1. Àquele que invocar direito consuetudinário ou direito exterior ao território de Macau compete fazer a prova da sua existência e conteúdo; mas o tribunal deve procurar, oficiosamente, obter o respectivo conhecimento.
    2. O conhecimento oficioso incumbe também ao tribunal, sempre que este tenha de decidir com base no direito consuetudinário ou no direito exterior ao território de Macau e nenhuma das partes o tenha invocado, ou a parte contrária tenha reconhecido a sua existência e conteúdo ou não haja deduzido oposição.
    3. Na impossibilidade de determinar o conteúdo do direito aplicável, o tribunal recorrerá às regras do direito comum de Macau”.
Ora, este preceito aplica-se também à Administração Pública quando lhe caiba, como é o caso, aplicar direito estrangeiro, que, no caso, era apenas saber se uma entidade belga era pública (autoridade local) ou privada.
Não eram necessárias grandes indagações, já que o direito belga é da mesma família de direito de Macau, pelo que a qualificação de uma pessoa colectiva como pública ou privada, a partir de textos legislativos, deve estar ao alcance de um jurista médio.
Nem se diga que a legislação disponibilizada pela Concorrente fora retirada da internet. Mostra a experiência que esta é, normalmente, fidedigna, desde que retirada de sítios credíveis, como era o caso de departamentos oficiais e governamentais da Bélgica. Mas se a Comissão tivesse dúvidas sobre a correcção de tal legislação – o que não parece ter sido o caso, mas apenas de recusa em apreciar direito estrangeiro – deveria oficiosamente ter promovido a prova da existência e conteúdo do direito em causa, por meios mais oficiais. É isso que resulta do mencionado artigo do Código Civil e do disposto nos artigos 59.º e 86.º, n.º 1, do Código de Procedimento Administrativo. Ou, se não pretendesse utilizar os seus poderes oficiosos, a que está obrigada, no mínimo, deveria ter concedido prazo ao concorrente para apresentar legislação legalizada.
E se a questão fosse de tradução da legislação em francês para uma das línguas oficiais – o que não foi o caso – então que se concedesse à concorrente prazo para a tradução.
Claro que a aplicação do direito do exterior ou estrangeiro levanta sempre dificuldades ao aplicador, qualquer que ele seja, órgão administrativo ou tribunal, por razões óbvias, de falta de experiência e de preparação na aplicação de tal direito. Mas tais dificuldades não podem impedir a decisão. “Os órgãos administrativos têm o dever de se pronunciar sobre todos os assuntos da sua competência que lhes sejam apresentados pelos particulares...”, dispõe o n.º 1 do artigo 11.º do Código do Procedimento Administrativo.
E não é solução excluir proposta de um concorrente a um concurso, só porque é difícil aplicar o direito estrangeiro.
Também aqui se verifica violação do princípio da boa fé.

4. Se a F é uma autoridade local
Trata-se de saber se resultava da documentação e legislação belga submetida pela concorrente à Comissão de abertura de propostas a qualidade de autoridade local da entidade que emitiu o documento atestando experiência de 10 anos nas matérias em concurso.
F é a Intercomunal para a Gestão e Realização de Estudos Técnicos e Económicos da Região de Charleroi-Sud-Hainaut, na Valónia, Bélgica, designadamente na área de colecta e evacuação de águas pluviais (doc. de fls. 77).
As comunas são os municípios no direito belga.
Várias comunas podem formar associações tendo por fim objectos determinados de interesse comunal. Estas associações são designadas intercomunais (artigo L1512-4 do Livro V do Código da Democracia Local e da Descentralização belga, a fls. 92).
“§ 1.º Qualquer que seja o seu objecto, as associações de projecto e as intercomunais exercem missões de serviço público e a este título são pessoas morais2de direito público.
Elas não têm um carácter comercial.
O carácter público das associações de projecto e das intercomunais é predominante nas suas relações com os seus sócios, os seus agentes e todos os terceiros, bem como em toda a comunicação interna ou externa.
§ 2.º Nessa medida, as associações de projecto e as intercomunais podem prosseguir em seu nome expropriações por causa de utilidade pública, contratar empréstimos, aceitar liberalidades e receber subvenções dos poderes públicos. ...” (artigo L1512-6 do Livro V do Código da Democracia Local e da Descentralização belga, a fls. 92).
“As intercomunais adoptam a forma jurídica seja de sociedade anónima, seja de cooperativa de responsabilidade limitada, seja de associação sem fim lucrativo” (artigo L1523-1 do Livro V do Código da Democracia Local e da Descentralização belga, a fls. 94 v.).
A F é uma cooperativa de responsabilidade limitada.
Ora, das considerações e dispositivos legais retirados da documentação e legislação belga, retirados exclusivamente dos elementos que a concorrente submeteu à Comissão de abertura de propostas, para provar a qualidade de autoridade local da F, resultava indiscutivelmente que esta entidade é uma pessoa colectiva de direito público, isto é, que existe para a prossecução necessária de interesses públicos e exerce poderes de autoridade em nome próprio3, inclusivamente podendo proceder a expropriações por utilidade pública.
É, pois, autoridade local para efeitos do concurso.
Isto resultava já da documentação presente ao concurso.
E neste recurso contencioso não pode haver quaisquer dúvidas, pois, no recurso hierárquico (para o Chefe do Executivo), a concorrente juntou um documento de um Ministro do Governo da Valónia (uma das Regiões da Bélgica) a dizer expressamente que a F é uma pessoa jurídica de direito público, sendo responsável pelo tratamento das águas residuais da cidade de Charleroi e regiões circundantes (fl. 89).
Não se põe a questão da violação do disposto nos artigo 84.º e 87.º do Decreto-Lei n.º 74/99/M, por parte do Acórdão recorrido, porque a Comissão não admitiu a concorrente por este não ter os documentos legalizados ou redigidos em língua não oficial. O que resulta dos autos é que a Comissão não admitiu a concorrente por exigir um documento atestando a qualidade de autoridade local da F e porque se recusou a examinar o direito estrangeiro que provaria, como provava efectivamente, aquela qualidade.
Como se disse anteriormente, o programa de concurso não exige qualquer documento a atestar que a entidade que comprova a experiência é autoridade local. O que o programa exigia era experiência na matéria confirmada por declaração oficial emitida por uma autoridade local e nada mais. Mas se a Comissão tinha dúvidas sobre aquela qualidade deveria ter concedido à concorrente tempo necessário para a comprovação. Não o tendo feito violou o princípio da boa fé, como entendeu o Acórdão recorrido.
Improcede, portanto, este recurso.

IV – Decisão
Face ao expendido, negam provimento ao recurso.
Custas pelo Consórcio C, D e E nas duas instâncias, com taxa de justiça fixada para o TSI e TUI, em 3 UC.
Macau, 15 de Fevereiro de 2012.
  Juízes: Viriato Manuel Pinheiro de Lima (Relator) – Song Man Lei – Sam Hou Fai

O Magistrado do Ministério Público
presente na conferência: Vítor Manuel Carvalho Coelho

1 Por todos, J. LEBRE DE FREITAS, A. MONTALVÃO MACHADO E RUI PINTO, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, Coimbra Editora, 2.ª edição, 2008, p. 703 e 704.
2 Pessoas colectivas, como se expressa o direito de Macau.
3 Cfr. MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, Coimbra, Almedina, I Vol., 1980, 10.ª edição, (reimpressão), p. 184.
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Processo n.º 1/2012